Maio de 2013. Esta é a previsão
para o lançamento da nova edição do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Nomeado DSM-5 e aguardado
pelos profissionais da saúde, o documento já tem suscitado
questionamentos na comunidade acadêmico-científica e entre aqueles
que se dedicam à atividade clínica. Tal publicação é uma
iniciativa da American Psychiatric Association (APA) e define
critérios classificatórios que apoiam psiquiatras em sua rotina de
atendimento, além de servirem como referência para médicos de
outras especialidades e psicólogos. Porém, seu processo de
formulação e aplicação no diagnóstico e tratamento dos chamados
“transtornos” ou “distúrbios” mentais tem sido alvo de
críticas desde sua última publicação, o DSM-IV, entre
profissionais da área da saúde e de outras disciplinas.
A socióloga Tatiana Barbarini –
pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) –
dedica-se ao estudo do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) em crianças e se queixa da falta de espaço
dado à sociologia no debate. O pouco destaque oferecido pelas
ciências humanas às questões sociais relacionadas às doenças e
transtornos, assim como a falta de abertura das ciências médicas às
reflexões sociológicas faz com que todos percam com essa separação,
segundo a socióloga. Fato que a leva a propor uma mudança no DSM-5:
a aproximação de áreas aparentemente distantes, com o objetivo de
estabelecer diagnósticos e tratamentos, assim como compreender as
implicações que cada transtorno mental acarreta para o indivíduo e
para a sociedade.
O DSM aponta sintomas e aspectos
comportamentais que indicam potenciais transtornos mentais, porém,
Barbarini destaca que, ao se tratar de crianças surgem indagações
sobre a abrangência dos critérios diagnósticos. “Não prestar
atenção a detalhes; realizar trabalhos confusos, sem meticulosidade; aversão e reações de desagrado a
tarefas que exigem esforço mental e dedicação constantes e
prolongados; inquietação e constante movimento na cadeira;
dificuldade em brincar ou ficar em silêncio durante o lazer;
dificuldade de esperar sua vez; fazer palhaçadas” são algumas
especificações oferecidas pelo Manual que descrevem “tipos” de
comportamento facilmente observáveis em crianças que desenvolvem ou
não algum tipo de transtorno, o que dificulta a certeza diagnóstica.
A respeito do Manual, a
especialista em avaliação diagnóstica de anorexia e bulimia,
Beatriz Espírito Santo Nery Ferreira, aguarda o DSM-5 com
expectativa de que mudanças que considera necessárias sejam feitas.
Para ela, essas mudanças resumem-se na proposição da discussão de
uma única questão: “para que serve o DSM?”.
Médica pediatra, Ferreira afirma
conhecer muito bem as edições mais atualizadas da publicação da
APA e da OMS (Organização Mundial de Saúde), a CID (Classificação Internacional de Doenças, em sua décima edição,
que abrange os diagnósticos psiquiátricos e, também, outras
enfermidades em geral), inclusive “suas inúmeras falhas”, uma
vez que ambos os instrumentos podem levar o médico ao equívoco da
“padronização”. Uma grave situação no que se refere à
psiquiatria, diferente no caso dos distúrbios orgânicos (ligados à
biologia, fisiologia, anatomia etc) que permitem padronizações. Além
disso, esses manuais “tentam encaixar uma doença num doente” e
os médicos, por sua vez, têm demonstrado a tendência de segui-los
à risca, como se fossem protocolos, ao invés de os usarem como
base, alerta a pediatra.
O outro lado
Uma outra perspectiva sobre as
classificações é apresentada por Cristina Marta Del-Ben –
psiquiatra e pesquisadora dos transtornos do pânico e de ansiedade,
vinculada à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).
Segundo Del-Ben, “os atuais sistemas de classificação diagnóstica
melhoraram muito a confiabilidade do diagnóstico em psiquiatria”,
o que não descarta a necessidade de sanar deficiências ainda
existentes. Ela ressalta que “até a década de 70 havia uma grande
confusão a respeito dos critérios para definição de vários
transtornos mentais e os profissionais simplesmente não falavam a
mesma língua”. Depois do DSM, surgiu a possibilidade de compor
grupos homogêneos para a pesquisa da eficácia e efetividade de
intervenções terapêuticas, a partir da definição de critérios
diagnósticos operacionais.
Usualmente, o psiquiatra recorre
ao CID e ao DSM-IV, afirma Del-Ben. Em geral, há concordância entre
ambos com relação aos diagnósticos propostos; porém, quando a
discordância surge não há “grandes implicações para o
tratamento do paciente”. Por exemplo, o diagnóstico de
esquizofrenia: “a CID-10 tem o critério de pelo menos um mês de
sintomas, enquanto que o DSM-IV exige seis meses”, o que acontece
porque o manual da APA “leva em conta dados de estudos que mostram
que uma parcela de pacientes com diagnóstico de transtorno
esquizofreniforme pode ter recuperação completa do quadro, enquanto
que o diagnóstico de esquizofrenia estaria associado a uma
deterioração do funcionamento global. Por outro lado, a CID-10
considera que a esquizofrenia englobaria um grupo heterogêneo de
pacientes, com evoluções distintas, podendo ou não haver prejuízo
do funcionamento global”.
O psicólogo e professor
assistente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(PUC-Goiás) e da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Felipe
Epaminondas, acredita que a nova proposta da APA “apresenta
alterações interessantes e outras controversas”, alertando para a
necessidade de que cuidados sejam tomados, como no caso do "risco
à esquizofrenia" – uma das inclusões pretendidas para 2013
pela Associação: “Ora, se hoje já é difícil diagnosticar um
esquizofrênico pela falta de evidências etiológicas concretas,
imagina diagnosticar um ‘risco’. E o pior: com o diagnóstico
feito, passar à medicação é só mais um passo”.
Em concordância com a posição
do psiquiatra Thomas Szasz – autor do livro O
mito da doença mental, de
1974 – ao considerar
que muitos dos diagnósticos realizados implicam no uso excessivo de
medicamentos que não são curativos, Epaminondas afirma que, ao
receber um diagnóstico, o paciente deveria ser informado sobre os
benefícios, os possíveis efeitos colaterais desses medicamentos. Além disso, deveria receber indicações sobre tratamentos alternativos (terapias comportamentais e
cognitivo-comportamentais), que, segundo ele, podem produzir total
desaparecimento dos “sintomas” de diversos transtornos.
Medicalização dos
transtornos mentais
Um alerta a respeito da grande
publicidade em torno dos transtornos, medicamentos e pesquisas
financiadas por laboratórios farmacêuticos, é feito por Tatiana
Barbarini, que exemplifica: “a Associação Brasileira de Déficit
de Atenção (Abda), um grupo de apoio a pais e crianças que
vivenciam o TDAH, é patrocinada pelos laboratórios que fabricam os
medicamentos mais usados no Brasil para o tratamento do TDAH”. Por
outro lado, os próprios “leigos” demandam diagnósticos e
tratamentos, acreditando que “se o médico não pede um exame ou dá
uma receita, é melhor procurar a opinião de outro”, fato que a
socióloga atribui à “ideia que vincula médico, doença e
receita, além do fato de que não mais se tolera a dor e o
sofrimento, sendo que qualquer problema cotidiano pode ser, pelo
menos, minimizado”. Essa “medicalização”, uma nomenclatura
adotada pela sociologia, caracteriza a expansão dos limites médicos
para outras esferas da sociedade, como a família e a escola, onde
problemas antes considerados não-médicos são redefinidos como
problemas médicos (doenças e transtornos) e tratados como tais,
através de medicação ou outros tratamentos. No consumo de um
desses medicamentos mais usados, o Brasil é um dos líderes
mundiais.
A opinião de Cristina Del-Ben
segue no mesmo sentido, diante do que ela chama de “momento fast
food das emoções e
das relações”, em referência ao desejo de satisfação imediata
e intolerância à frustração, que permeiam as relações humanas.
Para ela, sempre existe “a pressão de interesses econômicos para
o aumento de venda de produtos, incluindo psicofármacos”, e aponta
a seriedade nas investigações científicas e na prática baseada em
evidências como soluções para tal problema.
A propósito de uma passagem de
sua tese de doutorado, referente aos atos de “criar doenças”
para então se “apresentar medicamento”, Beatriz Ferreira afirma
que essa é uma realidade mundial, e considera que o fato do marketing
estar à frente da questão, mostra que se cria a demanda para se
oferecer uma solução, não se tratando de uma questão ligada a
saúde ou doença, nem mesmo à relação médico-paciente, trata-se sim de questões econômicas. E a pediatra questiona: “O DSM faz parte
dessa estratégia?”
Nos procedimentos diagnósticos
de seus pacientes, Ferreira parte de uma avaliação clínica,
levando em conta os pressupostos do filósofo Michel Foucault de
“acompanhamento atento do paciente”, no qual o médico o escuta e
o assiste, levando em conta suas experiências anteriores e
particularidades. No entanto, confessa estar “cansada de escutar
dos próprios leigos que eles mesmos descobriram que sofrem de
bipolaridade ou compulsão alimentar (...), porque preenchem os
critérios” – uma atitude que é reforçada pela ação da mídia
e de um setor da medicina que tem “substituído a observação
atenta de cada paciente pela massificação dos protocolos e exames”.
Para a pediatra, o Manual da APA
tende a dizer “todos são iguais”, enquanto, na realidade, o que
se observa é que “os pacientes acabam encontrando outras formas de
nos fazer observar que não são todos iguais”, e exemplifica:
“Quando a anorexia foi descrita, pelos psiquiatras Lasegue e Gull
no século XVII, houve um aumento enorme de casos, mas havia poucos
casos de bulimia. A partir do momento em que a bulimia foi
acrescentada no DSM, na década de 1970, houve um aumento enorme nos
casos, mas não havia a drunkorexia, por exemplo. Quando a
drunkorexia foi descrita, houve aumento nos casos, mas não havia
ainda a.... E assim vamos...”
Os manuais e a clínica médica
Del-Ben, que também é
coordenadora do Setor de Psiquiatria da Unidade de Emergência (EP) e
da Enfermaria de Internação Breve (Epib), do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP-USP), acredita
que o conhecimento do Manual ajuda o profissional de saúde na
realização de “entrevistas padronizadas com perguntas que guiam a
investigação das alterações psicopatológicas”. Ela ressalta
que “as classificações diagnósticas atuais não são mero
checklist
e que a definição quanto à presença de determinado diagnóstico
depende da interpretação do médico, baseada em objetivos,
definições e critérios claramente definidos”.
A inexistência de marcadores
biológicos para as doenças mentais, que possam auxiliar no processo
diagnóstico, como há em outras especialidades médicas, ainda fazem
da avaliação psiquiátrica um processo complexo, que exige teoria e
prática intensiva do médico a partir do treinamento, atualização
e desenvolvimento de habilidades específicas, considera Del-Ben.
Assim, o procedimento diagnóstico posto em prática pela sua equipe
é baseado na história clínica psiquiátrica e no exame do estado
mental do paciente, utilizando-se todas as fontes disponíveis para a
coleta de informações relevantes, baseadas no julgamento clínico
feito por um entrevistador a respeito da “presença ou não dos
sinais e/ou sintomas” descritos pelo DSM.
De acordo com Felipe Epaminondas
muitos profissionais da área não são treinados para desenvolver
procedimentos de avaliação críticos, por isso muitos diagnósticos,
sejam eles feitos por psicólogos ou psiquiatras, “servem apenas
como rótulos”, aplicando tratamentos e técnicas de forma
inadequada. Ele explica que, em geral, o psicólogo pergunta sobre a
história de vida e realidade do paciente, podendo utilizar-se de
questionários ou testes padronizados para tanto, com o objetivo de
auxiliar na identificação dos problemas e suas possíveis causas.
Nesse contexto, critérios de classificação como o DSM auxiliam na
montagem de prognósticos e na seleção de técnicas terapêuticas,
porém o problema reside na confiança excessiva no diagnóstico e
consequente esquecimento de que há uma pessoa por trás dele, e
ressalta: “dou ênfase nas relações do comportamento”.
Opinião próxima a de Barbarini
que afirma que “quando se estabelece uma lista de critérios e
evidências para comportamentos que, possivelmente, caracterizem
transtornos mentais, cria-se uma distinção entre o aceito e o
repudiado; por se tratar de transtornos mentais, cria-se uma
distinção entre normal e patológico. Assim, não só os
comportamentos são classificados, mas também os indivíduos que os
possuem”. A amplitude de tais critérios diagnósticos é apontada
pela socióloga como responsável pelo crescente processo de
auto-reconhecimento entre indivíduos como portadores de transtornos
mentais, destacando que “não se trata de questões meramente
biológicas ou genéticas, (...) existem aspectos sociais, culturais,
históricos, políticos e econômicos implicados”. Diante disso,
ela propõe uma reflexão: “crianças agitadas, desatentas e
impulsivas sempre existiram, mas eram chamadas de ‘desobedientes’,
‘ mal criadas’, ‘arteiras’ etc, porque, atualmente,
diagnostica-se essas crianças como portadoras de um transtorno
mental?
Especialista na identificação
de transtornos psicopatológicos no contexto clínico, Epaminondas
considera que, embora o DSM ajude a identificar um caso, muitos
psicólogos preferem se valer da abordagem ligada à psicologia
comportamental que, por sua vez, trabalha com a análise funcional,
identificando sintomas ou comportamentos e estabelecendo relações
com o mundo exterior do paciente. Alguns questionamentos, tais como
" o que pode estar causando esse comportamento?", "em
que momentos ele acontece?", "com quem ele acontece?",
" qual é a duração dele?", "o que costuma acontecer
com a pessoa quando ela emite este comportamento?", mostram ao
profissional da psicologia “como o ambiente está relacionado com
os problemas da pessoa e assim, alterando o ambiente, o comportamento
é alterado”. Diante disso, o psicólogo destaca que as relações
que a pessoa estabelece em sua vida são mais importantes do que o
nome ou a categoria em que ela se encaixa.
Para saber mais:
Portal da Associação Brasileira
de Déficit de Atenção (ABDA): http://www.tdah.org.br/
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