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Reportagem
Diferentes perspectivas sobre um mesmo tema
Por Maria Clara Rabelo
10/03/2011

Maio de 2013. Esta é a previsão para o lançamento da nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Nomeado DSM-5 e aguardado pelos profissionais da saúde, o documento já tem suscitado questionamentos na comunidade acadêmico-científica e entre aqueles que se dedicam à atividade clínica. Tal publicação é uma iniciativa da American Psychiatric Association (APA) e define critérios classificatórios que apoiam psiquiatras em sua rotina de atendimento, além de servirem como referência para médicos de outras especialidades e psicólogos. Porém, seu processo de formulação e aplicação no diagnóstico e tratamento dos chamados “transtornos” ou “distúrbios” mentais tem sido alvo de críticas desde sua última publicação, o DSM-IV, entre profissionais da área da saúde e de outras disciplinas.

A socióloga Tatiana Barbarini – pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – dedica-se ao estudo do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em crianças e se queixa da falta de espaço dado à sociologia no debate. O pouco destaque oferecido pelas ciências humanas às questões sociais relacionadas às doenças e transtornos, assim como a falta de abertura das ciências médicas às reflexões sociológicas faz com que todos percam com essa separação, segundo a socióloga. Fato que a leva a propor uma mudança no DSM-5: a aproximação de áreas aparentemente distantes, com o objetivo de estabelecer diagnósticos e tratamentos, assim como compreender as implicações que cada transtorno mental acarreta para o indivíduo e para a sociedade.

O DSM aponta sintomas e aspectos comportamentais que indicam potenciais transtornos mentais, porém, Barbarini destaca que, ao se tratar de crianças surgem indagações sobre a abrangência dos critérios diagnósticos. “Não prestar atenção a detalhes; realizar trabalhos confusos, sem meticulosidade; aversão e reações de desagrado a tarefas que exigem esforço mental e dedicação constantes e prolongados; inquietação e constante movimento na cadeira; dificuldade em brincar ou ficar em silêncio durante o lazer; dificuldade de esperar sua vez; fazer palhaçadas” são algumas especificações oferecidas pelo Manual que descrevem “tipos” de comportamento facilmente observáveis em crianças que desenvolvem ou não algum tipo de transtorno, o que dificulta a certeza diagnóstica.

A respeito do Manual, a especialista em avaliação diagnóstica de anorexia e bulimia, Beatriz Espírito Santo Nery Ferreira, aguarda o DSM-5 com expectativa de que mudanças que considera necessárias sejam feitas. Para ela, essas mudanças resumem-se na proposição da discussão de uma única questão: “para que serve o DSM?”.

Médica pediatra, Ferreira afirma conhecer muito bem as edições mais atualizadas da publicação da APA e da OMS (Organização Mundial de Saúde), a CID (Classificação Internacional de Doenças, em sua décima edição, que abrange os diagnósticos psiquiátricos e, também, outras enfermidades em geral), inclusive “suas inúmeras falhas”, uma vez que ambos os instrumentos podem levar o médico ao equívoco da “padronização”. Uma grave situação no que se refere à psiquiatria, diferente no caso dos distúrbios orgânicos (ligados à biologia, fisiologia, anatomia etc) que permitem padronizações. Além disso, esses manuais “tentam encaixar uma doença num doente” e os médicos, por sua vez, têm demonstrado a tendência de segui-los à risca, como se fossem protocolos, ao invés de os usarem como base, alerta a pediatra.

O outro lado

Uma outra perspectiva sobre as classificações é apresentada por Cristina Marta Del-Ben – psiquiatra e pesquisadora dos transtornos do pânico e de ansiedade, vinculada à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Segundo Del-Ben, “os atuais sistemas de classificação diagnóstica melhoraram muito a confiabilidade do diagnóstico em psiquiatria”, o que não descarta a necessidade de sanar deficiências ainda existentes. Ela ressalta que “até a década de 70 havia uma grande confusão a respeito dos critérios para definição de vários transtornos mentais e os profissionais simplesmente não falavam a mesma língua”. Depois do DSM, surgiu a possibilidade de compor grupos homogêneos para a pesquisa da eficácia e efetividade de intervenções terapêuticas, a partir da definição de critérios diagnósticos operacionais.

Usualmente, o psiquiatra recorre ao CID e ao DSM-IV, afirma Del-Ben. Em geral, há concordância entre ambos com relação aos diagnósticos propostos; porém, quando a discordância surge não há “grandes implicações para o tratamento do paciente”. Por exemplo, o diagnóstico de esquizofrenia: “a CID-10 tem o critério de pelo menos um mês de sintomas, enquanto que o DSM-IV exige seis meses”, o que acontece porque o manual da APA “leva em conta dados de estudos que mostram que uma parcela de pacientes com diagnóstico de transtorno esquizofreniforme pode ter recuperação completa do quadro, enquanto que o diagnóstico de esquizofrenia estaria associado a uma deterioração do funcionamento global. Por outro lado, a CID-10 considera que a esquizofrenia englobaria um grupo heterogêneo de pacientes, com evoluções distintas, podendo ou não haver prejuízo do funcionamento global”.

O psicólogo e professor assistente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás) e da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Felipe Epaminondas, acredita que a nova proposta da APA “apresenta alterações interessantes e outras controversas”, alertando para a necessidade de que cuidados sejam tomados, como no caso do "risco à esquizofrenia" – uma das inclusões pretendidas para 2013 pela Associação: “Ora, se hoje já é difícil diagnosticar um esquizofrênico pela falta de evidências etiológicas concretas, imagina diagnosticar um ‘risco’. E o pior: com o diagnóstico feito, passar à medicação é só mais um passo”.

Em concordância com a posição do psiquiatra Thomas Szasz – autor do livro O mito da doença mental, de 1974 – ao considerar que muitos dos diagnósticos realizados implicam no uso excessivo de medicamentos que não são curativos, Epaminondas afirma que, ao receber um diagnóstico, o paciente deveria ser informado sobre os benefícios, os possíveis efeitos colaterais desses medicamentos. Além disso, deveria receber indicações sobre tratamentos alternativos (terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais), que, segundo ele, podem produzir total desaparecimento dos “sintomas” de diversos transtornos.

Medicalização dos transtornos mentais

Um alerta a respeito da grande publicidade em torno dos transtornos, medicamentos e pesquisas financiadas por laboratórios farmacêuticos, é feito por Tatiana Barbarini, que exemplifica: “a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (Abda), um grupo de apoio a pais e crianças que vivenciam o TDAH, é patrocinada pelos laboratórios que fabricam os medicamentos mais usados no Brasil para o tratamento do TDAH”. Por outro lado, os próprios “leigos” demandam diagnósticos e tratamentos, acreditando que “se o médico não pede um exame ou dá uma receita, é melhor procurar a opinião de outro”, fato que a socióloga atribui à “ideia que vincula médico, doença e receita, além do fato de que não mais se tolera a dor e o sofrimento, sendo que qualquer problema cotidiano pode ser, pelo menos, minimizado”. Essa “medicalização”, uma nomenclatura adotada pela sociologia, caracteriza a expansão dos limites médicos para outras esferas da sociedade, como a família e a escola, onde problemas antes considerados não-médicos são redefinidos como problemas médicos (doenças e transtornos) e tratados como tais, através de medicação ou outros tratamentos. No consumo de um desses medicamentos mais usados, o Brasil é um dos líderes mundiais.

A opinião de Cristina Del-Ben segue no mesmo sentido, diante do que ela chama de “momento fast food das emoções e das relações”, em referência ao desejo de satisfação imediata e intolerância à frustração, que permeiam as relações humanas. Para ela, sempre existe “a pressão de interesses econômicos para o aumento de venda de produtos, incluindo psicofármacos”, e aponta a seriedade nas investigações científicas e na prática baseada em evidências como soluções para tal problema.

A propósito de uma passagem de sua tese de doutorado, referente aos atos de “criar doenças” para então se “apresentar medicamento”, Beatriz Ferreira afirma que essa é uma realidade mundial, e considera que o fato do marketing estar à frente da questão, mostra que se cria a demanda para se oferecer uma solução, não se tratando de uma questão ligada a saúde ou doença, nem mesmo à relação médico-paciente, trata-se sim de questões econômicas. E a pediatra questiona: “O DSM faz parte dessa estratégia?”

Nos procedimentos diagnósticos de seus pacientes, Ferreira parte de uma avaliação clínica, levando em conta os pressupostos do filósofo Michel Foucault de “acompanhamento atento do paciente”, no qual o médico o escuta e o assiste, levando em conta suas experiências anteriores e particularidades. No entanto, confessa estar “cansada de escutar dos próprios leigos que eles mesmos descobriram que sofrem de bipolaridade ou compulsão alimentar (...), porque preenchem os critérios” – uma atitude que é reforçada pela ação da mídia e de um setor da medicina que tem “substituído a observação atenta de cada paciente pela massificação dos protocolos e exames”.

Para a pediatra, o Manual da APA tende a dizer “todos são iguais”, enquanto, na realidade, o que se observa é que “os pacientes acabam encontrando outras formas de nos fazer observar que não são todos iguais”, e exemplifica: “Quando a anorexia foi descrita, pelos psiquiatras Lasegue e Gull no século XVII, houve um aumento enorme de casos, mas havia poucos casos de bulimia. A partir do momento em que a bulimia foi acrescentada no DSM, na década de 1970, houve um aumento enorme nos casos, mas não havia a drunkorexia, por exemplo. Quando a drunkorexia foi descrita, houve aumento nos casos, mas não havia ainda a.... E assim vamos...”

Os manuais e a clínica médica

Del-Ben, que também é coordenadora do Setor de Psiquiatria da Unidade de Emergência (EP) e da Enfermaria de Internação Breve (Epib), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP-USP), acredita que o conhecimento do Manual ajuda o profissional de saúde na realização de “entrevistas padronizadas com perguntas que guiam a investigação das alterações psicopatológicas”. Ela ressalta que “as classificações diagnósticas atuais não são mero checklist e que a definição quanto à presença de determinado diagnóstico depende da interpretação do médico, baseada em objetivos, definições e critérios claramente definidos”.

A inexistência de marcadores biológicos para as doenças mentais, que possam auxiliar no processo diagnóstico, como há em outras especialidades médicas, ainda fazem da avaliação psiquiátrica um processo complexo, que exige teoria e prática intensiva do médico a partir do treinamento, atualização e desenvolvimento de habilidades específicas, considera Del-Ben. Assim, o procedimento diagnóstico posto em prática pela sua equipe é baseado na história clínica psiquiátrica e no exame do estado mental do paciente, utilizando-se todas as fontes disponíveis para a coleta de informações relevantes, baseadas no julgamento clínico feito por um entrevistador a respeito da “presença ou não dos sinais e/ou sintomas” descritos pelo DSM.

De acordo com Felipe Epaminondas muitos profissionais da área não são treinados para desenvolver procedimentos de avaliação críticos, por isso muitos diagnósticos, sejam eles feitos por psicólogos ou psiquiatras, “servem apenas como rótulos”, aplicando tratamentos e técnicas de forma inadequada. Ele explica que, em geral, o psicólogo pergunta sobre a história de vida e realidade do paciente, podendo utilizar-se de questionários ou testes padronizados para tanto, com o objetivo de auxiliar na identificação dos problemas e suas possíveis causas. Nesse contexto, critérios de classificação como o DSM auxiliam na montagem de prognósticos e na seleção de técnicas terapêuticas, porém o problema reside na confiança excessiva no diagnóstico e consequente esquecimento de que há uma pessoa por trás dele, e ressalta: “dou ênfase nas relações do comportamento”.

Opinião próxima a de Barbarini que afirma que “quando se estabelece uma lista de critérios e evidências para comportamentos que, possivelmente, caracterizem transtornos mentais, cria-se uma distinção entre o aceito e o repudiado; por se tratar de transtornos mentais, cria-se uma distinção entre normal e patológico. Assim, não só os comportamentos são classificados, mas também os indivíduos que os possuem”. A amplitude de tais critérios diagnósticos é apontada pela socióloga como responsável pelo crescente processo de auto-reconhecimento entre indivíduos como portadores de transtornos mentais, destacando que “não se trata de questões meramente biológicas ou genéticas, (...) existem aspectos sociais, culturais, históricos, políticos e econômicos implicados”. Diante disso, ela propõe uma reflexão: “crianças agitadas, desatentas e impulsivas sempre existiram, mas eram chamadas de ‘desobedientes’, ‘ mal criadas’, ‘arteiras’ etc, porque, atualmente, diagnostica-se essas crianças como portadoras de um transtorno mental?

Especialista na identificação de transtornos psicopatológicos no contexto clínico, Epaminondas considera que, embora o DSM ajude a identificar um caso, muitos psicólogos preferem se valer da abordagem ligada à psicologia comportamental que, por sua vez, trabalha com a análise funcional, identificando sintomas ou comportamentos e estabelecendo relações com o mundo exterior do paciente. Alguns questionamentos, tais como " o que pode estar causando esse comportamento?", "em que momentos ele acontece?", "com quem ele acontece?", " qual é a duração dele?", "o que costuma acontecer com a pessoa quando ela emite este comportamento?", mostram ao profissional da psicologia “como o ambiente está relacionado com os problemas da pessoa e assim, alterando o ambiente, o comportamento é alterado”. Diante disso, o psicólogo destaca que as relações que a pessoa estabelece em sua vida são mais importantes do que o nome ou a categoria em que ela se encaixa.

Para saber mais:

Portal da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA): http://www.tdah.org.br/