Se perguntarmos para qualquer pessoa com uma ideia ou projeto do que ela precisa, grande parte das vezes a resposta será: DINHEIRO! Tradicionalmente, para colocar algum projeto em prática, recorremos a patrocínio, empréstimos bancários, ajuda da família com o “paitrocínio”, até mesmo a famosa “vaquinha”. São todas fontes de financiamento, algumas mais alternativas que as outras, mas que cumprem o papel a elas destinado.
Junto a isso, a coleta de pequenas quantias, de muitas pessoas diferentes, baseada em nossas redes sociais, é comum no âmbito da caridade e da cooperação social. Entretanto, a escala alcançada por essas alternativas é pequena quando a compararmos ao alcance proporcionado pela tecnologia de comunicação online. E, ainda, contribuir com algum projeto dessa forma promove, em geral, apenas o apoio financeiro, e não integra participação na tomada de decisões sobre ele.
Nesse contexto, o crowdfunding aparece como um modelo em que uma grande quantidade de pessoas pode contribuir financeiramente para o desenvolvimento de um projeto ou produto. Trata-se de um convite aberto, essencialmente pela internet, para o fornecimento de recursos financeiros, quer sob a configuração de doação ou troca por alguma forma de recompensa e/ou direitos de voto, com o propósito de apoiar as iniciativas para fins específicos (Schwienbacher; Larralde, 2010; Belleflamme; Lambert, Schwienbacher, 2014). Com conceito semelhante, Ordanini (2009) descreve o crowdfunding como um esforço coletivo por pessoas que juntam o dinheiro, geralmente pela internet, a fim de investir e apoiar os esforços iniciados por outras pessoas ou organizações.
Em alguns casos, a contrapartida de um investimento pode ser a participação no processo decisório (ações, recompensas, sugestões etc.) do projeto ou produto em questão. Essa participação dos consumidores na produção de um produto/serviço também é chamada de prosumer, uma prática mais comum no mercado, principalmente quando se fala em inovação aberta, em que o consumidor contribui com melhorias para as soluções desenvolvidas pelas empresas. O crowdsourcing, também considerado como economia colaborativa, permite essa produção conjunta de forma mais intensa e como fim em si mesma. Percebe-se, de acordo com Ordanini (2009), que o papel do consumidor se expandiu para incluir o apoio ao investimento.
Existem alguns modelos de crowdfunding. O mais tradicional, e que contempla várias plataformas no Brasil, é aquele que, em troca do dinheiro, o apoiador recebe uma recompensa. Ou ainda, pode ser na forma de doação pura, em que se contribui de forma espontânea, apenas pela satisfação de ajudar uma causa. A modalidade crowdsequity permite, em troca de dinheiro, participação acionária no negócio. Já a crowsddebt, também conhecida como social lending, inexiste no país por questões regulatórias. Essa modalidade viabiliza empréstimos entre pessoas físicas por meio da plataforma, os chamados empréstimos peer-to-peer.
Por se tratar de um fenômeno recente, as iniciativas de crowdfunding e suas consequências para as empresas e consumidores ainda não são inteiramente entendidas (Ordanini; Miceli; Pizzetti, 2011). O que se pode levantar sobre os benefícios está relacionado primeiramente ao acesso aos recursos financeiros sem burocracia, em que os fundadores das ideias precisam apenas de uma campanha transparente para viabilizar a criação/realização de produtos que estão fora da zona de interesse da grande indústria. Shows, filmes, peças de teatro e uma vasta gama de ideias criativas e de baixo orçamento são produzidos com o apoio do público interessado, a partir das redes estabelecidas pela internet.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o crowdfunding já é visto como um importante centro de inovação, com lançamento de novos produtos, artes e serviços diariamente. O financiamento para startups é recorrente, de forma que os financiadores podem aplicar o capital diretamente nos negócios em que mais acreditam, recebendo, em troca, uma participação acionária nessas empresas. Esse tipo de plataforma de investimento coletivo, ou equity crowdfunding, ainda é raro no Brasil.
Tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos, esse modelo de financiamento coletivo para startups tem sido utilizado com muito sucesso, sob regulamentação específica. Já no Brasil, quem regula a atividade é a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas há necessidade de leis específicas.
Outra aplicação para o crowdfunding é a análise de mercado, visto que se pode testar o interesse dos clientes em novos projetos ainda nas fases iniciais de desenvolvimento. Para os empresários, tem sido especialmente importante, pois permite validar ideias e protótipos sem, necessariamente, arcar com os custos de iniciar a produção. A falta de demanda permite que os empreendedores repensem o investimento ou esforço adicional, corrigindo falhas ou focando em alternativas com mais chance de sucesso (Mollick, 2014).
Gerber, Hui e Kuo (2012) apontam outras motivações, além das citadas, para os criadores dos projetos, como replicar experiências bem sucedidas e estabelecer relacionamentos com os financiadores por meio de uma interação de longo prazo, para além do momento da operação financeira.
Para quem financia os projetos, as autoras afirmam que as vantagens estão em consumir produtos e experiências, permitir conexão com uma comunidade cujos interesses e ideais são semelhantes, dar apoio à causa e aos criadores do projeto e conseguir recompensas em forma de produtos tangíveis e/ou serviços.
Uma pesquisa sobre o retrato do financiamento coletivo no Brasil (2013-2014), da plataforma Catarse, destacou que os elementos que compõem uma campanha completa de crowdfunding dividem-se em três momentos: o pré-projeto, quando são feitos o planejamento de campanha e a definição dos valores arrecadados e das recompensas; a etapa durante a arrecadação, quando se divulga a campanha e ativa-se a rede de contatos; e, por fim, o pós-venda, quando há a entrega das recompensas determinadas, a execução do projeto e a comunicação aos apoiadores. Logo, para aqueles que pensam em se valer dessa fonte de financiamento, preparar uma campanha com atenção a todos os detalhes é requisito imprescindível.
Cenário mundial e brasileiro
Mundialmente, a indústria do crowdfunding arrecadou US$ 16,2 bilhões apenas em 2014. Isso reflete um aumento de 160% quando comparado ao ano anterior, de acordo com reportagem de Canteras, publicada no blog da plataforma Kickante, em 2015. A participação brasileira nesse cenário ainda é embrionária. Os países que mais se destacam são Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, entre os mais de 160 países que já contam com diversas plataformas.
No Brasil, não existe uma pesquisa que possa avaliar o cenário do crowdfunding. Uma matéria publicada por Alves, no site Projeto Draft (2015), identificou que já se obteve um total de mais de R$ 50 milhões arrecadados por algumas das plataformas nacionais. Dentre as que mais se destacam estão o Catarse, que já arrecadou mais de R$ 32 milhões; o Benfeitoria, com arrecadação de algo em torno de R$ 5,5 milhões; o Kickante, com cerca de R$ 4 milhões; e Juntos.com.vc, com R$ 3,3 milhões.
O financiamento colaborativo está sendo muito utilizado em diversas áreas. No site consumocolaborativo.cc, existem 18 plataformas registradas atuando no Brasil, envolvendo causas sociais, ONG’s, empreendedorismo social, animais abandonados, artes, mercado editorial, turismo, mercado cervejeiro artesanal, projetos relacionados ao esporte, entre outros. De acordo com a mesma publicação, em agosto deste ano, 24 projetos de captação estavam ativos.
A plataforma Kickante informa que a modalidade de financiamento representa entre 0,03% e 0,3% do total de arrecadação de fundos no Brasil. Um valor pouco expressivo, mas que tende a crescer nos próximos anos. Essa afirmação considera que as redes sociais online são os principais instrumentos de divulgação das campanhas.
Cases brasileiros
Dois casos brasileiros de sucesso estão nas plataformas Kickante e Catarse. O primeiro é o recorde de arrecadação no país. A campanha “Bel Pesce: legado a menina do vale” arrecadou R$ 889 mil no site da Kickante. A meta era de R$ 260 mil. O projeto objetivou viabilizar o lançamento do livro A menina do vale 2, por meio de um tour de palestras ao redor do Brasil.
O outro foi o produto chamado mola structural kit, composto de peças semelhantes a um “lego”, que auxiliaria os estudantes de arquitetura na compreensão das estruturas dos edifícios. O projeto conquistou mais de 1.500 apoiadores e R$ 600 mil, dez vezes mais o objetivo pretendido.
Ambos os projetos se destacam tanto pelo sucesso de aceitação dos produtos no mercado, como pela importância de uma boa campanha e rede social para a arrecadação do dinheiro, visto que ultrapassaram as metas.
Desafios para o Brasil
Alguns dos desafios na disseminação e desenvolvimento do sistema no Brasil estão no campo da regulamentação. O Banco Central é responsável por determinar as regras para o mercado financeiro. Dessa forma, algumas possibilidades existentes no crowdfunding ainda não se concretizaram no país, em virtude da ilegalidade de empréstimos peer-to-peer, conhecido por crowsddebt, por exemplo.
Outra modalidade que pode aparecer em breve no país são os seguros colaborativos. A Bought by Many, em Londres, oferece tipos de seguro tão diversos quanto para um bulldog francês, viagem para pessoas com a doença de Crohn, jardineiros ou para crianças que jogam rugby, dentre várias outras possibilidades únicas.
Outro desafio refere-se às pesquisas sobre o mapeamento e contexto do crowdfunding no Brasil. Os dados existentes são, em sua maioria, de matérias produzidas por jornalistas, e não por pesquisadores ou institutos de pesquisa. O conceito de crowdfunding ainda não é amplamente conhecido, e isso faz com que muitas pessoas não façam uso do sistema, seja como dono de um projeto ou como financiador. Esse cenário, gradualmente, deve ser alterado, visto o histórico de desenvolvimento da ferramenta não só no país, como no mundo. Nesse sentido, os casos brasileiros de sucesso, que não são poucos, são referências para fornecer confiança aos futuros adeptos.
Pode-se esperar, para os próximos tempos, que o assunto seja discutido em âmbito legislativo, de forma a viabilizar inovações na forma como acessamos e investimos o dinheiro. Assim como o Uber está quebrando barreiras no mundo e motivando muitas discussões também aqui no Brasil, o crowdfunding ainda tem muito o que desbravar para que possamos nos beneficiar de suas facilidades.
Uiara Gonçalves de Menezes é doutoranda em administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora da Faculdade da Serra Gaúcha (FSG). Bacharel e mestre em administração pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail:uiara.menezes@gmail.com
Marcia Dutra de Barcellos é professora adjunta do Departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tem pós-doutorado em marketing na Universidade de Aarhus (Dinamarca). E-mail:mdbarcellos@ea.ufrgs.br
Referências bibliográficas
Alves, B.C. “Negócios criativos. A seleção natural do crowdfunding no Brasil: hoje há mais arrecadação e menos plataformas”. Projeto Draft. 21 de ago. de 2015. Disponível em: <http://projetodraft.com/a-selecao-natural-do-crowdfunding-no-brasil-hoje-ha-mais-arrecadacao-e-menos-plataformas/>. Acesso em: 26/11/2015.
Belleflamme, P.; Lambert, T.; Schwienbacher, A. “Crowdfunding: tapping the right crowd”. Journal of Business Venturing, 29, p. 585–609, 2014.
Catarse. “Retrato financiamento coletivo Brasil 2013/2014”. Disponível em: <http://pesquisa.catarse.me/>. Acesso em: 26/11/2015.
Gerber, E.M.; Hui, J.S.; Kuo, Pei-Yi. “Crowdfunding: Why people are motivated to post and fund projects on crowdfunding platforms”. In: Proceedings of the International Workshop on Design, Influence, and Social Technologies: Techniques, Impacts and Ethics. 2012.
Canteras, L.T. “A evolução do crowdfunding no Brasil e no mundo”. Kickante Blog, 09 de set. de 2015. Disponível em: <http://www.kickante.com.br/blog/blog/crowdfunding-brasil-mundo>. Acesso em: 26/11/2015.
Mollick E. “The dynamics of crowdfunding: an exploratory study”. Journal of Business Venturing, 29, p. 1-16, 2014.
Ordanini, A. “Crowd funding: customers as investors”. The Wall Street Journal, 23 March 2009. Disponível em: <http://www.wsj.com/articles/SB123740509983775099>. Acesso em: 26/11/2015.
Ordanini, A.; Miceli, L.; Pizzetti, M. “Crowd-funding: transforming customers into investors through innovative service platforms”. Journal of Service Management, v. 22, n. 4, p. 443-470, 2011.
Schwienbacher, A.; Larralde, B. “Crowdfunding of small entrepreneurial ventures”. Handbook of Entrepreneurial Finance. Oxford University Press, Forthcoming, 2010.
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