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Artigo
Tanatografia e morte literária: decomposições biográficas e reconstruções dialógicas
Por Augusto Rodrigues da Silva Junior
10/11/2014
Chicó: Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo.Cumpriu sua sentença eencontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.

(Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna).

A morte de um personagem, ao final de um romance, sempre causa impacto no leitor. Um estado de luto se instaura e ficamos dias, meses, e até, quem sabe, a vida inteira recordando esse acontecimento. É uma experiência pela palavra. Escrever sobre tais situações lutuosas é responder a essa experiência da palavra e à vivência dessa ausência. Falta presentificada por um ser de papel. Letras que dão vida e matam.

Lendo o falecimento do outro, em si, cada um vive a própria morte. Na ausência do outro, com o livro fechado, convive-se, na lembrança, com uma imagem em presença. Para Walter Benjamin, a palavra fim convida o leitor a refletir sobre o sentido da vida. Mas, neste caso, todo romance constitui-se, sempre, de dois fins. O fim do livro e o fim de uma existência no tempo, no espaço, na memória.

A tanatografia é uma escrita de morte. O conceito advém do grego, Thanatos – que significa: morte; e graphein – que significa: escrita. Há narrativas da morte literária em que defuntos e fantasmas aparecem se comunicando, escrevendo, em condição autoral. Existe toda uma tipologia: mortos conversando entres eles; retornantes querendo conversar com os vivos; defuntos escrevendo para personagens vivos e leitores; vivos evocando defuntos para o diálogo e/ou para outras formas de relação humana.

Já o estudo das relações entre literatura e morte constitui-se de um exercício analítico, normalmente ensaístico, que incide sobre textos e discursos, personagens e narradores perante o trespasse. O estudo das palavras fúnebres leva a escrever sobre defuntos personagens, sobre variantes de diálogos dos mortos, narradores de memórias póstumas, mortes que encarnam por amor. Com isso, traduzimos a busca pelo sentido do fim ao longo da história da humanidade e, consequentemente, da história literária.

No aprendizado desse infinito de depois reside uma das bases de toda a história cultural da humanidade. Imaginem, por exemplo, os desenhos deixados nas cavernas. Para alguns, eles seriam ensinamentos, para outros eles seriam imagens rituais, para outros, uma forma de comunicação. Quando vemos esses relatos rupestres de rituais fúnebres, pensamos que todos esses elementos estão ligados: um modo de ensinar a lidar com o corpo falecido, uma forma de lidar com o ocorrido, e, ainda, uma maneira de perpetuar a memória desse fato.

Os mortos estão mais próximos do que pensamos. No catolicismo, por exemplo, aquilo que denominamos santos, foram, um dia, pessoas. Depois de passarem por sofrimentos e provações, realizarem milagres e alguém os comprová-los, uma pessoa falecida ganha o estatuto de santificado, ou seja, cultivamos um conjunto de defuntos num panteão religioso. A (Divina) Comédia de Dante, por exemplo, para continuar com a representação cristã, nada mais é do que um imenso desfile de almas pelo Inferno, Limbo, Purgatório e Céu. Figuras e fantasmas orquestrados pela assinatura do escritor italiano.

No plano cotidiano, por exemplo, isso se dá quase da mesma maneira. A forma de lembrar de cada pessoa depende também do fato de ela estar viva ou não. Há uma espera (da morte) e uma esperança (de vida). Se a pessoa recordada está viva, rememora-se, na certeza do reencontro, mais uma conversa, mais uma palavra. Protegidos por esse invólucro chamado história, todos acreditamos que teremos mais uma chance de estar com alguém. Para alguns, neste mundo. Para muitos, no outro. Se a pessoa já “partiu”, pensamos em tudo o que poderia ter sido e que não foi, como diz Manoel Bandeira – o poeta que mais fez poesia sepulcral no Brasil. Se a pessoa está viva, reconstruímos dialogicamente a sua imagem a cada desejo, necessidade, vontade, como diria Freud. Inventamos formas de sentir e de dizer o reencontro: saudades, até amanhã, boa noite. Quando falamos do ausente, inventamos jeitinhos de dizer desta falta que ama: passou desta pra melhor, bateu as botas, foi um ar que se lhe deu...

Nos livros, a nossa relação íntima com eles, também depende de o personagem ter falecido ou não, com a estruturante diferença: na releitura vive-se, outra vez, a mesma biografia e a mesma morte em outra experiência. Quem não se recorda de Sancho Pança implorando diante do moribundo e já racional Dom Quixote por mais uma aventura? Quantas vezes, em madrugadas frias não assistimos Madame Bovary, nossa amada e amante, atravessar a vida em orgia perpétua e depois falecer com dose letal de veneno? A bela dama encena seu último ato: uma gosma preta e um menear de cabeça. Quem nunca percorreu as ruas de Barbacena seguindo Rubião e seu cão Quincas Borba, subindo e descendo ladeiras diante de chuvas torrenciais e carregando impérios delirantes? Ainda me lembro do afogamento de Joseph Knecht no Jogo das contas de vidro (de Hermann Hesse). E, ainda, de como Riobaldo realiza volteios e cruzadas narrativas para confessar – no embate entre Eros e Thanatos num Grande sertão: veredas – que Diadorim, seu grande amor, morrera homem e, uma vez falecido, revelara-se mulher.

Todos, nessas mortes literárias, em seus últimos instantes, heróicos, delirantes, abruptos e confessionais pegaram nada, levantaram nada, cingiram nada. E desse nada fez-se o todo de cada ser. Para aqueles que assistiram (ou leram) aos espetáculos restam relatos, filosofias, teorias, tanatografias.

Para quem se interessa pelo tema, além das notícias estampadas no jornal e bombardeadas na televisão, podemos oferecer algumas referências filosóficas de pensar essa escrita do finamento. Há um “ser-para-a-morte” em Sêneca, Montesquieu, Nietzsche, Heidegger. Há um “ser-contra-a-morte” nos Evangelhos, em Montaigne, Sartre, Camus e Elias Canetti. Os primeiros, no exercício filosófico, projetam na própria morte a reflexão, o enaltecimento e a necessidade de preparar-se para o trespasse. Os outros buscam a não aceitação do fim, uma solidariedade que a confronta, nega, não aceitando o total falecimento do outro e nem mesmo o próprio desaparecimento do mundo.

Na literatura, para ficar com um exemplo comparativo, Tolstói descreve a morte sempre a partir da experiência interior do indivíduo e Dostoiévski opta sempre pela morte assistida, narrada e comentada pelo outro. No mundo de Tolstói, a morte é conclusiva e silenciadora. No de Dostoiévski, ela nada conclui, ela convida às versões que cada pessoa viva pode elaborar e recontar. Para entender melhor essa questão, recomendamos Problemas da poética de Dostoiévski (de Mikhail Bakhtin e tradução de Paulo Bezerra).

Tratar das formas discursivas de estudar a escrita sepulcral nos interessa porque buscamos uma via central. Pensar o fim como uma forma de apreender o trespasse, e pensar a vida como um ato ligado totalmente ao morrer. Ao tratar de “discursos dos mortos” ao longo da história literária, vemos as mais diferentes abordagens. Acreditamos em um pensamento do literário que valorize a consciência do outro, que entenda que a realidade é sempre feita de alteridades e que nenhuma consciência pode ser concluída, nem mesmo pelo ato de falecer. Morrer não quer dizer silenciar. Embora possamos confessar que o exercício filosófico para a morte nos atraia mais, o próprio exercício de escrita é um “modo de viver”. A tanatografia é um suicídio pensamental (para ficar com Sá-Carneiro e Fernando Pessoa que “mata” seu heterônimo Alberto Caeiro). E toda escrita póstuma é uma ressurreição sentimental.

Vivemos na história, a eternidade é o aqui e agora e temos a morte por destino. Analisar um discurso sobre a morte é pensar sobre essa solidão do fim. O acabamento que leva o ser humano a imaginar novas existências e que traz o ser de papel a voltar para contar, a narrar para não morrer, uma forma de burlar aquilo que é interdito pelo silêncio totalizante.

Nesse sentido, uma memória do gênero literário mostra que esses personagens defuntos pertencem a uma archaica longeva: a tradição cultural e literária de discursos dos mortos. No universo difuso e rabugento, o olhar cemiterial retrata a existência passada e a existência no reino desconhecido do nada, fundindo realidade e fantasia. Com isso, mescla a gargalhada desfigurante e um pessimismo do pensamento à negatividade cética e um otimismo da ação com o que há de mais significativo nas mais diversas obras: uma vontade de dizer.

Passemos por alguns, poucos, exemplos da literatura ocidental antes de adentrarmos o universo da literatura brasileira.

Um bom exemplo é Homero. Nos seus dois poemas épicos, é possível mapear práticas funerárias e diálogos dos mortos. A Ilíada é um grande exemplo das práticas antigas. Aquelas longas pausas nos combates e as descrições dos vários dias de enterro e cremação têm um colorido literário, mas agregam um cultivo da morte ainda mais antigo que a própria épica. Na Odisséia vários heróis da Ilíada já faleceram. O Canto XI retrata o divertido Odisseu perante a “noite compacta que esconde homens desditos”. O canto retrata heróis, marinheiros, mulheres e até a mãe do Astucioso personagem conversando com ele. O valor da morte e do morrer alteram-se: passamos a ter seres cadavéricos e miseráveis em cena. Tudo isso descrito por Ulisses (nome romano), que teria realizado uma catábase, uma espécie de visita ao mundo das almas chamado Hades.

Os Diálogos dos mortos de Luciano de Samósata (séc. II d.C.) trazem personagens homéricos para o universo de seu Hades romanizado. Figuras sombrias e esqueléticas mortas da Ilíada, da Odisséia, do imaginário grego e romano, são temas para as sátiras. Cada diálogo contém (astuciosamente) uma paródia com o intuito de desfigurar as epopeias (com sua grandeza e distanciamento) e de discutir os fatos e as ideias da Roma de sua época. A sátira menipéica, de modo geral, apresenta elementos basilares em suas críticas: a vaidade, o apego a si mesmo, às coisas materiais, a disputa entre nobres (heróis) para saber quem teria maior “glória”.

Na Idade Média, o finamento se transforma e a representação se contamina do sério (religioso e cristão) e do riso (popular e pagão). Na Europa, as Líber vitae, Soties religiosas, Ars Moriendi etc. prevalecem, ora próximas da Igreja, ora afastadas e condenadas. Na literatura, o teatro cristão popular, A divina comédia (Dante), os autos medievais religiosos (Autos da barca do inferno, da barca do purgatório e da barca da glória,de Gil Vicente, por exemplo) podem ser apontados como importantes manifestações dessa tradição (séc. V-XII até XIV-XVI).

Já no século XIX, Dostoiévski escreveu, em 1873, uma sátira menipéia moderna: Bobók. Nesse conto, um bando de defuntos conversam de suas covas enquanto um escritor as ouve depois de um enterro. Diálogos póstumos surgem como possibilidade de voz e como percepção cosmopolita da realidade e das respectivas literaturas locais. Ivan Ivanitch, o personagem vivo, conta a história. Em linhas gerais, ele começa centrado nos conflitos do narrador-personagem; depois, ele ouve uma conversa entre mortos no cemitério. A primeira parte lança índices de tanatografia: ebriedade, loucura, farsa literária, autoconsciência e autoria. Depois vai espalhando partes autobiográficas de cada barulhento e mordaz defunto.

Para ficar com um autor mais recente, dentre vários, escolhemos José Saramago para fechar este panorama de uma escrita da morte no ocidente. Mais especificamente são três os romances que apresentam, de alguma maneira, uma forma de escrita da morte.

Em o Ano da morte de Ricardo Reis, publicado em 1984,um autor canonizado retorna como um defunto poeta: Fernando Pessoa. Escritor que existiu torna-se personagem com uma de suas figuras heteronímicas: Ricardo Reis. Aquele que existiu e viveu aparece perante aquele que nunca existiu e está vivo no livro: “o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pensa, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida” (Saramago, 2010, p. 279). Além das imagens filosóficas da heteronímia e da alteronimia saramaguiana, há uma espécie de romance histórico do ano do declínio da Europa – 1936: com a ascensão de totalitarismos na Ibéria até a eclosão de uma grande guerra que matou milhões de pessoas.

Todos os nomes, um de seus melhores livros, também apresenta uma personagem defunta. Ela é um caso peculiar de existência e ausência. Entramos em contato com essa suicida ao longo de todo o livro. A conhecemos, convivemos com sua biografia, sem que ela apareça em algum momento no livro. Da galeria de personagens como Godot, essa morta supra-presente é-nos apresentada pelo Senhor José, que passa por uma verdadeira metamorfose depois de uma longa vida dedicada à burocracia, à insignificância humilde e uma vida menor.

As intermitências da morte faz parte de um momento muito interessante na obra do escritor lusófono. É um livro de força cinematográfica, com uma fórmula não menos despojada e que também apresenta personagens cansados da própria existência, passando por profundos processos de mudança. Um músico de orquestra que não morre não se sabe por que se vê diante de uma bela mulher. Essa mulher é a própria morte encarnada. Saramago, nessa galeria de tanatografias, traz uma novidade para o gênero: a própria morte encarna-se para viver um grande amor. Quando ela faz uma espécie de greve de ceifar vidas, o romance inventa-se numa espécie de fábula: “no dia seguinte ninguém morreu”.

Mas toda esta conversa começa com Machado de Assis. Esta teoria da tanatografia é uma teoria do literário e não da literatura (na sua acepção formalizada e formalista). É uma reconstrução dialógica de uma crítica poliônica que nasce de um romance: Memórias póstumas de Brás Cubas. Nasce de Machado porque ele conjugou vários elementos da tradição de defuntos personagens e a ultrapassou ao inserir um defunto autor na representação do aniquilamento.

O defunto que grafa, pratica filosofia. Inventa biografia e assina uma ficção. Filosofa a favor do trespasse com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Romanceia a própria biografia em constante decomposição autobiográfico-romanesca:

Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. ... Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo (Assis, 1992, 1880-1881 vol. I, p. 513).

Se tudo é ficção, Brás Cubas, ao conjugar a própria experiência póstuma, minimamente explicada, percorre mortes de outros. Seu romance de deformação apresenta um narrador que enterra uma galeria cemiterial de pessoas que passaram por sua vida: seu pai, sua mãe, seu melhor amigo, suas amantes, seus conhecidos da política e do cotidiano, dentre outros. Ora bem, uma poética das Memórias póstumas constitui-se de: discurso autoral; confissões em relação a si mesmo; memórias das relações com o outro em decomposições biográficas; ocupação da ausência vital em condição de autoria sepulcral e escrita da morte ligada à longeva tradição de mortos que falam e escrevem:

AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS

O ser de palavra, o fantasma melancólico-cômico, o corpo post-mortem que, inexplicavelmente, comunica-se, também é a própria revisão do que cada um foi e do que poderia ter sido. Um defunto autor na periferia da existência, na verdadeira outra área (literária) do conhecimento volta para contar a sua biografia com a pena e a tinta colhidas do sepulcro – com começo, meio, fim (e memória). Erige, assim, uma auto-imagem redescoberta: “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (Assis, 1992, p. 549).

Isso se estende, como flores do mal espalhadas por quadros fluminenses, pelos romances finais de Machado.

Quincas Borba, que dá título ao livro posterior, também é um defunto personagem: só existe nas memórias póstumas de Brás (discípulo e sábio), de Rubião (bobo e louco) e do cachorro (duplo e cínico, no sentido filosófico). O narrador, inclusive, já sabe que a herança funciona como loucura fatalista. Esse mesmo narrador que cita o defunto autor em nota de rodapé é o mesmo que se confunde com Machado – em disputa de espaço discursivo como acontece no clássico As aventuras e as opiniões do cavaleiro Tristram Shandy.

Esses dois romances enformam elogios da loucura, elogios dos óbitos: morre duas vezes o grande filósofo oral e minimalista, inventor do humanitismo: morre no primeiro livro, morre no segundo livro; o grande imperador Rubião que “pegou em nada, levantou nada e cingiu nada”, sucumbe perante as ilusões perdidas tupiniquins. O cachorro que leva o nome do romance, do “único amigo”, faz parte da mesma tradição de Cérbero e Baleia, pensa, sente, falece.

(Dom Casmurro tem um narrador velho, ruminando, fora da cena. Todo o livro são lembranças, incriminadoras, de sua finada esposa. Parece concluir que morrer é existir mais e envelhecer é ser menos, no caso dele por ser apenas passado. Passando a vida a limpo, não escreve o “livro dos subúrbios”, mas o das memórias amorosas de Capitu. Bento Santiago escreve, enfim, sobre sua defunta amada que teve “olhos de ressaca”).

Posteriormente, temos uma variante de autor defunto: o conselheiro Aires. Um escritor que se lançou, durante a velhice, a escrever. Diplomata aposentado, no espaço privado a escrever em cadernos. Sem saber quem exatamente iria ler, editar, publicar – os deixa organizadamente em sua secretária.

Em Esaú e Jacó, o primeiro, que recebe o epíteto de “último”, parte do diário é transformada em romance. Enquanto temos os gêmeos que dão título e apelido ao livro, no campo da tanatografia temos Flora: uma defunta personagem fadada à loucura e ao finamento fatalistas. Essa personagem feminina, espécie de duplo do narrador, morre de indecidibilidade. O conselheiro, por sua vez, morre no primeiro livro de velhice, por estar cansado de decidir, de conviver em indecisão aparente. Mas vive para escrever numa atitude que ele define como um método diplomático de rir da vida.

No Memorial de Aires ele “volta” para narrar. Outra variável do riso ruminante de um narrador que proclama que “os vivos vão mais depressa que os mortos”. Numa variante do mesmo, já não são jovens ansiosos por cousas futuras, mas o casal Aguiar e o próprio Aires vivendo nos tempos futuros – prenúncio de um fim que cheira a sepulcro. Seus jogos construídos aos moldes de um xadrez (humano/pascaliano) afirmam uma relação dialógica firmada na convergência de sentidos, evocando uma dualidade da alma e dos comportamentos humanos (Bezerra, 2005, p. 197). Ao conselheiro, quando vivo, coube a análise das contradições humanas – teoria já presente na década de 1880 se recordarmos A igreja do Diabo – conto da entressafra romanesca. Depois, defunto, ressurge em complementos publicáveis do diário, tecendo as suas cartomancias e diplomacias enxadristas.

Antes, os jovens funcionavam como espécie de imã para seu pêndulo vacilante. Depois, elege velhos, na figura do casal Aguiar, e parte para novas fantasmagorias. Fantasma desse “Memorial de Jano”, com duas faces diante do mesmo destino, porque toda vida tem duas pontas – a do começo e a do fim.

O defunto autor, o narrador litigioso com a voz narrativa do livro anterior (em Quincas Borba) e o conselheiro diplomático Aires articulam os mesmos princípios tanatográficos: morte, loucura, autoconsciência narrativa, cinismo-estoicismo repaginado pelo moralismo moderno e a decomposição biográfica e autobiográfica.

Machado de Assis estabelece assim, uma verdadeira poética tanatográfica. Se Dante e Shakespeare mudaram e refundaram o homem europeu, o escritor fluminense inventa um modo central de pensar as ideologias. A crítica polifônica com sua variante criativa, que é a tanatografia, reflete sobre passagens literárias, discute ideias de nosso tempo e reconstrói, a partir dos livros, uma verdadeira teoria do literário – na periferia da academia.

Augusto Rodrigues da Silva Junior é professor de literatura na Universidade de Brasília e realiza estágio pós-doutoral na Universidade do Minho/Braga. Bolsista Capes.

Sugestões de leitura:

Alighieri, D. A divina comédia. Trad. I. E. Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1998, 3 vol. Conclusão em 1321.

Assis, M. de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: Obra completa. Afrânio Coutinho (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. 3 v. 1880.

Cervantes, M. de. O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Trad. Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. 2 vol. Ed. Definitiva 1816

Dostoiévski, F.. “Bobók”. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2005a. 1873.

Homero. A Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Mandarim, 2001. +-VIII a. C.

______. Odisséia. Trad. D. Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007. 3 v.

Luciano, de Samósata. Diálogo dos mortos. Trad. H. G. Muracho. São Paulo: Palas Athena, 1996. Séc. II d. C.

Rabelais, F. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Júnior. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991. 2 vol. Conclusão em 1564

Saramago, J. Todos os nomes. São Paulo: Planeta, 2003. 1a. ed. 1997.

______. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das letras, 2005. 1ª ed..

Para quem quiser saber mais sobre o assunto:

Silva, Junior, Augusto Rodrigues. “Morte e decomposição biográfica em Memórias póstumas de Brás Cubas”. 216 f. Tese (Doutorado). Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2010.