“A universidade se expandiu, mas em seu cerne permanece a mesma estrutura anacrônica a entravar o processo de desenvolvimento e os germes da inovação”. Guardadas as devidas proporções, essa afirmação parece soar atual, apesar de ter sido feita no ano de 1968. Ela consta no relatório do grupo de trabalho instituído naquele ano com a função de estudar, em caráter de urgência, as medidas que deveriam ser tomadas para resolver a crise da universidade, como apontada pelo movimento estudantil, protagonista de várias reivindicações da época. Isso é o que aponta Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero, pesquisadora do Programa de Estudos e Documentação, Educação e Sociedade (Proedes) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no artigo“A Universidade do Brasil: das origens à reforma universitária de 1968”.
Entre as medidas propostas pela reforma universitária de 1968 (que tinha como objetivo modernizar a universidade brasileira e aumentar sua eficiência e produtividade), podem ser destacadas a extinção da cátedra, a instituição do sistema departamental, o vestibular unificado, o sistema de créditos e a matrícula por disciplina, a carreira do magistério, a pós-graduação e, por fim, o ciclo básico – o qual deveria ser constituído por um conjunto de matérias comuns a todos os estudantes de determinada área de conhecimento durante os primeiros anos da graduação e, assim, promover uma formação mais sólida e multidisciplinar, trazendo mudanças significativas na forma como se produz e dissemina o conhecimento nas universidades.
Para Hélio Waldman, reitor da Universidade Federal do ABC (UFABC), criada em julho de 2005 com uma proposta essencialmente interdisciplinar, a reforma de 1968 foi importante, pois “arejou a universidade e democratizou seus mecanismos internos de discussão, mas, ainda assim, manteve a postura institucional tão introvertida e elitizada quanto antes perante a sociedade”. De acordo com ele, os avanços propostos pela reforma se deram em espaços relativamente periféricos das universidades, e, portanto, não atingiram a graduação, que sempre foi o “núcleo duro” das instituições. “A visão estava correta, mas faltou ousadia”, enfatiza.
O ciclo básico talvez tenha sido a inovação que menos sucesso apresentou ao ser implantado pelas universidades, opina José Rafael Mazzoni, mestre em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, especialista em política educacional e professor da Universidade Sagrado Coração (USC). Por essa razão, o ciclo básico se esvaziou ao longo dos anos, conclui o pesquisador no artigo “A reforma universitária e o ciclo básico”. “À época da implantação do ciclo básico nas universidades imperou (e ainda impera) o desconhecimento do conceito de ciclo básico, inclusive no nível da administração central das universidades, uma vez que foram raros os reitores que souberam caracterizar a forma pela qual as suas instituições definiram o sistema de ciclos”, afirma ele. No artigo, Mazzoni cita a tese de Joyce de Paula e Silva, que analisou o primeiro ciclo no projeto de criação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e como ele foi implantado na realidade. A pesquisa revela que a ideia de um ciclo introdutório de caráter humanístico e que preparasse a base, tanto científica como de cidadania do aluno, prevista no projeto de criação da universidade, não foi de fato estruturado, nem mesmo nas normas estatutárias da instituição.
Mazzoni acredita que, apesar dessa constatação, vários estudos realizados sobre o ciclo básico nas universidades apontam para a importância deste período na vida do estudante de graduação brasileiro, “devido às condições em que os alunos continuam chegando às universidades: imaturos, sem opção de curso, com uma cultura geral bastante frágil e sem o devido preparo para a educação superior, que visa à formação do profissional cidadão”. Segundo ele, o ciclo básico ou “primeiro ciclo”, auxilia o aluno na superação dessas dificuldades e a prepará-lo para uma tomada de decisão mais informada e consciente sobre qual profissão seguir.
Ciclo Básico I da Unicamp (dois prédios circulares no centro da imagem): a concepção de interdisciplinaridade esteve presente no projeto arquitetônico da universidade. Foto: Antoninho Perri/Ascom Unicamp
Problemas reais, conhecimento interdisciplinar
Pode-se afirmar que é necessário uma nova reforma universitária? “Sim”, concorda Waldman, “mas é preciso abandonar a ideia de uma reforma ‘definitiva’ e abrir mais espaço para a experimentação, até que se descubra como enfrentar o desafio da educação continuada com o uso de novas tecnologias”, pondera. Ponto de vista similar foi discutido em reportagem para o dossiê da revista ComCiência sobre a Reforma Universitária de 2004, intitulada “Proposta de ciclo inicial de formação: para dar certo, modelo não pode ser imposto”.
Por entender que os problemas reais são interdisciplinares (caso de questões como energia, informação, meio ambiente, relações internacionais etc), assim como as fronteiras do conhecimento (biotecnologia, neurociências, nanotecnologia, entre outras), a UFABC, em sua estrutura organizacional, evita que os docentes se agrupem em departamentos e alinha as propostas pedagógicas dos cursos de formação específica com problemáticas reais. Todo aluno que ingressa na universidade com a intenção de se formar, por exemplo, em matemática, ciências da computação ou engenharia precisa, antes de tudo, cumprir o bacharelado em ciência e tecnologia – um curso interdisciplinar com duração de 2400 horas, durante o qual o aluno pode “amadurecer sua escolha por um curso de formação específica” explica o reitor. Há também o bacharelado em ciências e humanidades, com a mesma carga horária.
"Os problemas reais são interdisciplinares, assim como as fronteiras do conhecimento", diz Hélio Waldman, reitor da UFABC. Foto: Amanda Perobelli, para o www.abcdmaior.com.br
Hélio Waldman confirma que a ideia do ciclo básico inspirou, de certa forma, a estruturação do programa acadêmico da universidade em que atua, mas que há algumas diferenças fundamentais. O ciclo básico, por exemplo, não conferia diploma e, na prática, ficou confinado à estrutura de cada carreira à qual se subordinava. Enquanto o bacharelado interdisciplinar pretende ser a etapa inicial do ensino superior, e não de nenhum curso superior em particular. O papel desse período inicial na formação é o de completar a formação geral de nível superior, para então ser sucedido pela formação continuada.
“O aluno que conclui o bacharelado compreende a dinâmica da ciência e da tecnologia e sua sinergia com a produção de bens e cultura nas sociedades modernas; sabe dialogar com o mundo da pesquisa científica e tecnológica, bem como traduzir e projetar esse diálogo na discussão de questões contemporâneas e valoriza a postura interdisciplinar na solução de problemas reais e na problematização das soluções”, aposta o reitor da universidade paulista.
A aposta na formação interdisciplinar se dá na necessidade de preparar os novos profissionais para a educação continuada, com autonomia intelectual, a partir de sólida formação científica e postura interdisciplinar. “A visão sobre o conhecimento contemporâneo precisa se apoiar sobre uma formação geral de cunho científico e valor duradouro, já que é deste substrato teórico-conceitual que se deriva o conhecimento tecnológico, o qual tem uma dinâmica muito mais volátil, marcada pelas estratégias do mercado e do desenvolvimento social”, afirma Waldman.
Experiência interdisciplinar na graduação
O Instituto Tecnológico de Monterrey, tradicional instituição mexicana de ensino superior, fundada há 69 anos, tem uma experiência de multidisciplinaridade interessante. Até o terceiro semestre da vida universitária, todos os alunos do instituto cursam matérias comuns a todas as carreiras a serem seguidas: oficina de ortografia e expressão verbal, ética, empreendedorismo, filosofia ou história da ciência e ciência, tecnologia e sociedade. Milagros Varguez Ramires, estudante de doutorado mexicana desenvolve parte de sua pesquisa de doutorado na Unicamp, formada em jornalismo lembra que existem muitos trabalhos e atividades em grupo na graduação, o que considera ter sido bastante enriquecedor para sua formação. “Para o projeto final de empreendedorismo, por exemplo, no meu grupo havia uma pessoa da área de marketing, um designer gráfico, um engenheiro mecatrônico, uma pessoa da área de biotecnologia, um engenheiro industrial e uma jornalista. Tínhamos que fazer todo o projeto de produção, divulgação e comercialização de uma bota feminina industrial. Todos tiveram tarefas diferentes, mas com um projeto em comum. Acredito que experiências desse tipo são muito frutíferas, pois contribuem para a formação de uma visão multidisciplinar e sistêmica sobre o problema apresentado”, avalia a estudante.
Já o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFis), da Unicamp, entrou em funcionamento no início 2011 e objetiva “dar aos alunos uma formação geral, de caráter multidisciplinar, que proporcione uma visão integrada do mundo contemporâneo.” O curso de dois anos é destinado a alunos de escolas públicas da região de Campinas e são selecionados aqueles que obtiveram as melhores notas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Os alunos que concluem o Profis são classificados de acordo com seu desempenho acadêmico e podem continuar a estudar nos cursos regulares da Unicamp, sem ter de fazer o vestibular.
Promover experiências e produção de conhecimento interdisciplinares na graduação parece ser um dos maiores desafios que se apresenta para aqueles que pensam e decidem sobre a estrutura e os rumos da universidade brasileira. Os multicentros marcam um movimento de crescende demanda das transformações científicas e tecnológicas atuais em direção a mudanças nas fases anteriores na formação profissional. Certamente uma nova reforma que se anuncia poderá também atingir os níveis mais básicos da educação.
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