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Artigo
O rural redescoberto: novas perspectivas nos estudos sobre a história do direito à terra no Brasil¹
Por Marcia Maria Menendes
01/11/2011

Há exatos 30 anos foi publicado aquele que seria considerado um marco nos estudos sobre a história agrária no Brasil. Intitulado: História da agricultura: combates e controvérsias, o livro, de autoria de Maria Yedda Leite Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, era fruto de um programa de pesquisa sobre a história da agricultura brasileira desenvolvido por Linhares, a partir de 1976, no curso de pós-graduação em desenvolvimento agrícola, da Fundação Getúlio Vargas. Em plena década do período mais difícil da ditadura, a autora havia instituído um programa de conhecimento e reconhecimento sobre a realidade agrária brasileira. A publicação do livro, em 1981, coincidiria com o início do processo de abertura política lenta, geral e irrestrita, protagonizado pelo último presidente militar, João Figueiredo. A obra era assim o resultado de uma trajetória marcada pelo engajamento político e por um otimismo manifesto em relação às questões que envolviam o problema agrário brasileiro.

O convite a diversos e distintos temas ligados ao universo rural se consubstanciaria com a criação da linha de pesquisa em história social da agricultura ou história agrária, desenvolvida a partir dos anos 1980 no programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense. Segundo a autora, todos eram movidos pelo presente desolador, a retratar um quadro de miséria e de terríveis desigualdades”. Inspiravam-se em Marc Block e Pierre Vilar ao volver o olhar para o passado bem distante em busca dos pontos de partida”.

Apoiados naquela obra e inspirados pelas reflexões de Maria Yedda Leite Linhares e Ciro Cardoso jovens historiadores produziram um sem-número de pesquisas, contemplando diversas regiões do país. A proliferação dos cursos de pós-graduação e o incentivo aos trabalhos monográficos a partir dos anos 1980 também contribuíram para a redescoberta do rural no Brasil.

O alvorecer dos anos 1990 parecia sinalizar para um acréscimo ainda maior dos estudos voltados para o rural. Vários indícios apontavam para isso. Em primeiro lugar, a partir de 1985, a democracia havia se instalado no Brasil e uma das questões mais recorrentemente lembradas era exatamente a dívida histórica com os pobres do campo, consubstanciada na defesa pela reforma agrária. Em 1987/1988, quando dos trabalhos na Constituinte, o tema da reforma agrária era um dos mais candentes, reacendendo as discussões sobre a pobreza, a desigualdade de acesso à terra e a correlata concentração fundiária do país. Além disso, o surgimento e vitalização do mais importante movimento social do século XX - o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – parecia iluminar novas pesquisas sobre o passado rural do país. No entanto, assistiu-se a um relativo decréscimo da produção voltada para o tema e se encaminhou para pesquisas mais centradas no que poderíamos denominar de história social da escravidão. Naqueles anos, inúmeros trabalhos sobre os cativos redimensionavam os estudos sobre a experiência histórica do cativeiro, adensadas pelas ilações de uma historiografia de inspiração marxista, em particular Edward Palmer Thompson. São desse período ao menos dois estudos exemplares daquela tendência: Campos da violência, de Silvia Lara, publicado ainda em fins dos anos 1980² e Visões da liberdade, de Sidney Chalhoub, de 1990³.

Além disso, tal como em outros países, os anos 1990 também seriam marcados pela constituição da história da cultura, abrindo um leque de possibilidades temáticas, antes sublimadas. Naqueles anos, novos cursos de pós-graduação no país apontavam também o decréscimo da influência da Escola dos Analles e das análises rurais de inspiração marxista. As críticas ao chamado marxismo vulgar condenaria – em vários momentos – os estudos sobre o rural, quase sempre identificados com o exemplo do atraso.

A chegada da micro-história no país também desestimularia os estudos sobre o rural, muitas vezes confundida com a história cultural. Muitos dos críticos da chamada história agrária ignoravam que no interior daquele novo experimento historiográfico – a micro-história – havia um autor, Giovanni Levi, que afirmara exatamente que “é em relação à propriedade da terra e sua rápida circulação que apreendemos uma parte importante dos valores das comunidades, especialmente no que concerne às famílias dos camponeses mais pobres”4. A inscrição do nome de Giovanni Levi no registro da chamada história cultural não apenas sublimaria suas contribuições em uma linha de investigação original – história econômica social –, como dificultaria a percepção da nova geração de historiadores brasileiros em relação a filiação de Levi a uma tradição historiográfica assentada nos estudos sobre a história da posse e da propriedade.

De todo modo, em fins dos anos 1990 novas questões foram colocadas em relação à dinâmica de sobrevivência de pequenos produtores e posseiros. Muitas das mais recentes contribuições foram beneficiadas pela mencionada influência exercida por Thompson na historiografia acerca da escravidão no Brasil. Inspirados pela nova esquerda britânica, muitos autores passaram a ficar mais atentos às estratégias de sobrevivência de pequenos produtores e cativos, imprimindo uma maior complexidade ao tecido social dos oitocentos.

Publicado pela primeira vez em 1998, o livro Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX5 foi surpreendentemente uma das obras responsáveis pelo revigoramento dos estudos sobre a história rural no Brasil, recuperando as principais ilações de Maria Yedda Leite Linhares. A obra, no entanto, seria beneficiária da divulgação dos principais argumentos de Thompson e seria defendida no programa de pós-graduação em história da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lócus privilegiado dos chamados ‘thompsonianos’. Reinterpretando o argumento de Waren Dean sobre a Lei de Terras de 1850, a pesquisa demonstraria, com base em um intenso cruzamento de fontes e em constante diálogo com a produção acadêmica sobre a apropriação territorial, as diversas leituras sobre a primeira lei agrária do Império – a Lei de 1850. Ao compreendê-la enquanto espaço de luta, investigar-se-ia como a lei foi instrumentalizada pelos fazendeiros, além de analisar as razões mais profundas que fizeram emergir a sublevação dos homens pobres, agregados de um importante barão do município de Paraíba do Sul, e que imprimiriam outro sentido àquela norma legal.

A publicação daquele livro acabou por reacender o debate sobre a história rural brasileira, desta feita mais centrada em concepções de justiça e direito à terra. Se já não era mais possível esquadrinhar a dinâmica de pequenos lavradores a partir do uso sistemático de fontes seriais, como era recorrente nas pesquisas dos anos 1980, tornava-se urgente iluminar o debate com novas fontes, ainda pouco utilizadas no Brasil para o estudo do que chamei de “história da ocupação do lugar”. Tornaram-se cada vez mais crescentes os estudos pautados em processos cíveis, como os de medição de terra, de embargo e de despejo. Aquelas fontes, antes renegadas ao esquecimento, tornaram-se verdadeiras brechas para um olhar mais cuidadoso sobre o rural brasileiro. Já não era mais possível, tampouco necessário, realizar um levantamento exaustivo de todos os inventários de fazendeiros e lavradores de determinada região. Os historiadores redescobriram o tema e sua metodologia, refletindo sobre o rural, sobre os agentes sociais em confronto a partir de um intenso cruzamento de informações qualificativas presentes nos documentos, reconstruindo trajetórias e lhes conferindo sentidos.

A descoberta e redescoberta de novas fontes foi assim beneficiária de uma libertação. Os historiadores passaram a se alimentar de algumas ilações da micro-história, procurando compreender com mais vagar as várias leituras das leis, o uso e o costume sobre a terra. Aproximando as reflexões de Thompson às de Levi, tornou-se possível compreender a dinâmica de acesso à terra e os diversos direitos sobre esse bem, o que também permitiu refletir sobre a história, a luta e a dinâmica de resistências e negociação de lavradores pobres, submetidos – em muitos casos – por normas de direitos sobre a terra que os tornam foreiros ou arrendatários de terras pertencentes a outrem. Através de suas trajetórias, foi possível ainda analisar com mais acuidade as estratégias familiares, como funcionavam os mecanismos de sobrevivência, sucesso e insucesso dos que ali habitavam ou desejavam habitar.

Mas também em São Paulo e no Rio Grande do Sul assistiríamos ao reaparecimento de estudos voltados para a história rural. É digno de registro, por exemplo, o livro de Paulo Pinheiro Machado sobre um dos mais importantes conflitos agrários do alvorecer do século XIX: O Contestado. O livro também era originário de uma tese de doutorado defendida no programa de pós-graduação em história da Unicamp. Contrapondo-se a uma visão simplificadora sobre o passado, quase sempre assentada na ideia de que o Contestado era a expressão do fanatismo brasileiro, Machado apresentou um estudo magistral sobre os dilemas, conflitos e atuação dos agentes sociais envolvidos no conflito6. Ainda nos anos 1990 e no início do século seguinte, dois novos estudos tornar-se-iam fundamentais para o estudo em história agrária. Ambos os trabalhos foram teses de doutorado anteriormente defendidas na Universidade Federal Fluminense: a de Paulo Zarth7 e a de Helen Osório8. Esses autores seriam os responsáveis por uma geração de novos historiadores gaúchos, voltados para estudos rurais no Rio Grande do Sul.

Nos últimos anos, os recentes estudos em história rural (conhecida no Brasil como história agrária) passaram também a sofrer a influência do campo do direito, em particular do direito agrário e da chamada antropologia leal. Numa aproximação com a perspectiva thompsoniana, os trabalhos têm trazido à tona a dimensão histórica da luta pela terra no Brasil, recuperando uma tradição historiográfica que havia sido sublimada pelas pesquisas em escravidão. No início do novo século, vários novos estudos vieram à luz, realimentando aquela abordagem num verdadeiro revival em história rural no Brasil. Os estudos de Elione Guimarães sobre a luta pela terra dos afrodescendentes é o exemplo emblemático dessa nova geração9.

A consolidação de revival expressou-se na publicação de várias obras. A primeira, o Dicionário da Terra ,organizado por mim, com a contribuição de dezenas de pesquisadores e publicado em 2005; obra cujo imprevisível impacto culminou com a premiação em 2º lugar na categoria de ciências humanas do prêmio Jabuti10. Em seguida, Campos em disputa: história agrária e companhia que visou apresentar ao leitor o vigor daquela proposta de pesquisa e a redescoberta de velhas abordagens, alimentadas pelas discussões historiográficas mais recentes11. É digno de registro também a publicação dos dois primeiros números da História social do campesinato, organizados por mim e Paulo Zarth, reunindo dezenas de historiadores12. Outro livro, História agrária. Propriedade e conflito, publicado em 200913, adensaria as discussões em torno da própria ideia de propriedade, nos embates entre índios e senhores, como na pesquisa de Marina Machado14 e de Francisco Pinto15; entre colonos e empreendedores, como nos estudos de Carlos Leandro Esteves16, entre agricultura e colonização em terras de florestas, como a pesquisa de Francivaldo Nunes17. Mais recentemente, a publicação do livro Propriedade e disputas. Fontes para a história do oitocentos, obra que permitiu a divulgação das principais fontes operadas nas pesquisas em história rural, contribuindo para uma ainda maior visibilidade sobre os temas envolvidos nessa linha de pesquisa e os documentos a serem investigados. Há que se destacar ainda a publicação da Coleção Terra, reunindo teses de doutorado em história rural, que têm vindo à luz com a parceria das editoras da Universidade Federal Fluminense, Unicentro e a Horizonte.

O revigoramento desse campo significaria, em suma, um novo chamamento à pesquisa e uma recuperação do sentido das palavras expressas por Iglésias, quando da

apresentação de História da agricultura: combates e controvérsias. Inseridos num novo tempo, onde a opção pela história narrativa adquiriu um lugar preponderante nos estudos históricos do país, os estudiosos do rural assumiram também o papel de refletir sobre o significado de ser historiador, num país ainda marcado por emblemáticas desigualdades sociais e onde a terra – bem não reproduzível pela natureza – é ainda um bem de alguns poucos, num universo de conflitos rurais que tem também uma história18

Em nome daquela linha, os pesquisadores procuraram encontrar um novo elo comum: o apelo a uma história engajada. Não mais no seu sentido estreito e mesmo pejorativo que fez da história apenas um combustível de luta para uma revolução que não aconteceu, e sim na acepção cara a um emblemático autor, Eric Hobsbawm, em sua defesa de um engajamento legítimo19.

Márcia Maria Menendes Motta é professora do Departamento de História e coordenadora do Núcleo de História Rural da Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou inúmeros artigos e livros sobre o tema no Brasil.


1 Uma versão mais ampla deste texto será publicada em Coimbra.

2 Silvia Lara. Campos da violência.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

3 Sidney Chalhoub. Visões da liberdade. São Paulo, Companhia das Letras,1990.

Giovanni Levi. A herança imaterial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.

Márcia Maria Menendes Motta. “Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX”. 2ª edição. Niterói, EdUff, 2009. (Tese defendida na Unicamp, em 1996, e publicada pela primeira vez em 1998).

6 Paulo Pinheiro Machado. Lideranças do Contestado. Campinas. Universidade de Campinas, 2007.

7 Paulo Zarth. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Editora da Unijuí, 2002.

8 Helen Osório. O império português no sul da América. Estancieros, lavradores e comerciantes. Rio Grande do Sul, Editora da UFRS, 2007.

9 Elione Guimarães. Terra de preto. Uso e ocupação da terra por escravos e libertos (Vale do Paraíba Mineiro, 1850-1920) Niterói, EdUff, 2009.

10 Márcia Motta (org.) Dicionário da Terra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.

11 Elione Guimarães e Márcia Motta (org.)Campos em disputa. História agrária & companhia. São Paulo, Annablume, 2007.

12 Márcia Motta e Paulo Zarth. Formas de resistência camponesa. Visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história. São Paulo, Unesp, Brasília, Nead, 2008, 2 volumes (Coleção História Social do Campesinato Brasileiro).

13 Márcia Motta, Beatriz Olinto e Oseias de Oliveira (org.). História agrária: propriedade e conflito. Paraná, Unicentro, 2009.

14 Marina Machado “Terra indígenas e o avanço do café: abrindo fronteiras no Vale do Paraíba (séculos XVIII e XIX)”. In: História agrária: propriedade e conflito. Paraná, Unicentro, pp. 101-118, 2009.

15 Francisco Eduardo Pinto. “Terra de índio, terra de ninguém: conquista e civilização da banda oriental da Capitania de Minas”. Idem, pp. 119-134.

16 Carlos Leandro Esteves “Homem certo para o lugar certo”: colonização, educação rural, e tecnização da agricultura na experiência dos combinados agro-urbanos em Goiás durante o governo Mauro Borges Teixeira”. Ibidem, pp. 41-62.

17 Francivaldo Alves Nunes. “Agricultura e colonização nas terras da floresta da Amazônia Oriental (século XIX). Ibidem, pp. 135-158. Do mesmo autor: Benevides: uma experiência de colonização na Amazônia do século XIX. 1. ed. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.

18 Márcia Maria Menendes Motta. O direito à terra no Brasil. A gestação do conflito (1795/1824). São Paulo, Alameda, 2009.

19  Eric Hobsbawm,. “ Engajamento” in: Sobre a História. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp.138-154.