Há exatos 30 anos foi publicado aquele que
seria considerado um marco nos estudos sobre a história agrária no Brasil.
Intitulado: História da agricultura: combates e controvérsias, o livro,
de autoria de Maria Yedda Leite Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva,
era fruto de um programa de pesquisa sobre a história da agricultura brasileira
desenvolvido por Linhares, a partir de 1976, no curso de pós-graduação em desenvolvimento
agrícola, da Fundação Getúlio Vargas. Em plena década do período mais difícil
da ditadura, a autora havia instituído um programa de conhecimento e
reconhecimento sobre a realidade agrária brasileira. A publicação do livro, em
1981, coincidiria com o início do processo de abertura política lenta, geral e
irrestrita, protagonizado pelo último presidente militar, João Figueiredo. A
obra era assim o resultado de uma trajetória marcada pelo engajamento político
e por um otimismo manifesto em relação às questões que envolviam o problema
agrário brasileiro.
O convite a diversos e distintos temas ligados
ao universo rural se consubstanciaria com a criação da linha de pesquisa em história
social da agricultura ou história agrária, desenvolvida a partir dos anos 1980 no programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense. Segundo a
autora, todos eram movidos pelo presente desolador, “a retratar um
quadro de miséria e de terríveis desigualdades”. Inspiravam-se em Marc Block e Pierre
Vilar “ao volver o olhar para o passado bem distante em busca dos pontos
de partida”.
Apoiados naquela obra e inspirados pelas reflexões de Maria Yedda Leite
Linhares e Ciro Cardoso jovens historiadores produziram um sem-número de pesquisas, contemplando diversas regiões do
país. A proliferação dos cursos de pós-graduação e o incentivo aos trabalhos
monográficos a partir dos anos 1980 também contribuíram para a redescoberta do
rural no Brasil.
O alvorecer dos anos 1990 parecia sinalizar para um
acréscimo ainda maior dos estudos voltados para o rural. Vários indícios
apontavam para isso. Em primeiro lugar, a partir de 1985, a democracia havia se
instalado no Brasil e uma das questões mais recorrentemente lembradas era
exatamente a dívida histórica com os pobres do campo, consubstanciada na defesa
pela reforma agrária. Em 1987/1988, quando dos trabalhos na Constituinte, o tema da reforma agrária era um dos mais candentes,
reacendendo as discussões sobre a pobreza, a desigualdade de acesso à terra e a
correlata concentração fundiária do país. Além disso, o surgimento e
vitalização do mais importante movimento social do século XX - o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra – parecia iluminar novas pesquisas sobre o
passado rural do país. No entanto, assistiu-se a um relativo decréscimo da
produção voltada para o tema e se encaminhou para pesquisas mais centradas no
que poderíamos denominar de história social da escravidão. Naqueles anos,
inúmeros trabalhos sobre os cativos redimensionavam os estudos sobre a experiência
histórica do cativeiro, adensadas pelas ilações de uma historiografia de
inspiração marxista, em particular Edward Palmer Thompson. São desse
período ao menos dois estudos exemplares daquela tendência: Campos da violência, de Silvia Lara,
publicado ainda em fins dos anos 1980² e Visões da liberdade, de Sidney Chalhoub,
de 1990³.
Além disso, tal como em outros países, os anos 1990 também seriam
marcados pela constituição da história da cultura, abrindo um leque de
possibilidades temáticas, antes sublimadas. Naqueles anos, novos cursos de pós-graduação
no país apontavam também o decréscimo da influência da Escola dos Analles e das
análises rurais de inspiração marxista. As críticas ao chamado marxismo vulgar
condenaria – em vários momentos – os estudos sobre o rural, quase sempre
identificados com o exemplo do atraso.
A chegada da micro-história no país também desestimularia os estudos
sobre o rural, muitas vezes confundida com a história cultural. Muitos dos
críticos da chamada história agrária ignoravam que no interior daquele novo
experimento historiográfico – a micro-história – havia um autor, Giovanni Levi,
que afirmara exatamente que “é em relação à propriedade da terra e sua rápida
circulação que apreendemos uma parte importante dos valores das comunidades,
especialmente no que concerne às famílias dos camponeses mais pobres”4. A
inscrição do nome de Giovanni Levi no registro da chamada história cultural não
apenas sublimaria suas contribuições em uma linha de investigação original –
história econômica social –, como dificultaria a percepção da nova geração de
historiadores brasileiros em relação a filiação de Levi a uma tradição
historiográfica assentada nos estudos sobre a história da posse e da
propriedade.
De todo modo, em fins dos anos 1990 novas questões
foram colocadas em relação à dinâmica de sobrevivência de pequenos produtores e
posseiros. Muitas das mais recentes contribuições foram beneficiadas pela mencionada influência exercida por
Thompson na historiografia acerca da escravidão no Brasil. Inspirados pela nova
esquerda britânica, muitos autores passaram a ficar mais atentos às estratégias
de sobrevivência de pequenos produtores e cativos, imprimindo uma maior
complexidade ao tecido social dos oitocentos.
Publicado pela primeira vez em 1998, o livro Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do
século XIX5 foi
surpreendentemente uma das obras responsáveis pelo revigoramento dos estudos
sobre a história rural no Brasil, recuperando as principais ilações de Maria
Yedda Leite Linhares. A obra, no entanto, seria beneficiária da divulgação dos
principais argumentos de Thompson e seria defendida no programa de pós-graduação
em história da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lócus privilegiado dos chamados ‘thompsonianos’.
Reinterpretando o argumento de Waren Dean sobre a Lei de Terras de 1850, a
pesquisa demonstraria, com base em um intenso cruzamento de fontes e em
constante diálogo com a produção acadêmica sobre a apropriação territorial, as
diversas leituras sobre a primeira lei agrária do Império – a Lei de 1850. Ao
compreendê-la enquanto espaço de luta, investigar-se-ia como a lei foi
instrumentalizada pelos fazendeiros, além de analisar as razões mais profundas
que fizeram emergir a sublevação dos homens pobres, agregados de um importante barão
do município de Paraíba do Sul, e que imprimiriam outro sentido àquela norma
legal.
A publicação daquele livro acabou por reacender o debate sobre a história
rural brasileira, desta feita mais centrada em concepções de justiça e direito
à terra. Se já não era mais possível esquadrinhar a dinâmica de pequenos
lavradores a partir do uso sistemático de fontes seriais, como era recorrente
nas pesquisas dos anos 1980, tornava-se urgente iluminar o debate com novas
fontes, ainda pouco utilizadas no Brasil para o estudo do que chamei de
“história da ocupação do lugar”. Tornaram-se cada vez mais crescentes os
estudos pautados em processos cíveis, como os de medição de terra, de embargo e
de despejo. Aquelas fontes, antes renegadas ao esquecimento, tornaram-se
verdadeiras brechas para um olhar mais cuidadoso sobre o rural brasileiro. Já
não era mais possível, tampouco necessário, realizar um levantamento exaustivo
de todos os inventários de fazendeiros e lavradores de determinada região. Os
historiadores redescobriram o tema e sua metodologia, refletindo sobre o rural,
sobre os agentes sociais em confronto a partir de um intenso cruzamento de
informações qualificativas presentes nos documentos, reconstruindo trajetórias
e lhes conferindo sentidos.
A descoberta e redescoberta de novas fontes foi assim beneficiária de uma
libertação. Os historiadores passaram a se alimentar de algumas ilações da
micro-história, procurando compreender com mais vagar as várias leituras das
leis, o uso e o costume sobre a terra. Aproximando as reflexões de Thompson às
de Levi, tornou-se possível compreender a dinâmica de acesso à terra e os
diversos direitos sobre esse bem, o que também permitiu refletir sobre a
história, a luta e a dinâmica de resistências e negociação de lavradores
pobres, submetidos – em muitos casos – por normas de direitos sobre a terra que
os tornam foreiros ou arrendatários de terras pertencentes a outrem. Através de
suas trajetórias, foi possível ainda analisar com mais acuidade as estratégias
familiares, como funcionavam os mecanismos de sobrevivência, sucesso e
insucesso dos que ali habitavam ou desejavam habitar.
Mas também em São
Paulo e no Rio Grande do Sul assistiríamos ao reaparecimento
de estudos voltados para a história rural. É digno de registro, por exemplo, o
livro de Paulo Pinheiro Machado sobre um dos mais importantes conflitos
agrários do alvorecer do século XIX: O
Contestado. O livro também era originário de uma tese de doutorado
defendida no programa de pós-graduação em história da Unicamp. Contrapondo-se a
uma visão simplificadora sobre o passado, quase sempre assentada na ideia de
que o Contestado era a expressão do fanatismo brasileiro, Machado apresentou um
estudo magistral sobre os dilemas, conflitos e atuação dos agentes sociais
envolvidos no conflito6.
Ainda nos anos 1990 e no início do século seguinte, dois novos estudos
tornar-se-iam fundamentais para o estudo em história agrária. Ambos os
trabalhos foram teses de doutorado anteriormente defendidas na Universidade
Federal Fluminense: a de Paulo Zarth7 e
a de Helen Osório8. Esses
autores seriam os responsáveis por uma geração de novos historiadores gaúchos,
voltados para estudos rurais no Rio Grande do Sul.
Nos últimos anos, os recentes estudos em história rural
(conhecida no Brasil como história agrária) passaram também a sofrer a
influência do campo do direito, em particular do direito agrário e da chamada antropologia
leal. Numa aproximação com a perspectiva thompsoniana, os trabalhos têm trazido
à tona a dimensão histórica da luta pela terra no Brasil, recuperando uma
tradição historiográfica que havia sido sublimada pelas pesquisas em escravidão. No início
do novo século, vários novos estudos vieram à luz, realimentando aquela
abordagem num verdadeiro revival em
história rural no Brasil. Os estudos de Elione Guimarães sobre a luta pela terra dos afrodescendentes é o exemplo
emblemático dessa nova geração9.
A consolidação de revival
expressou-se na publicação de várias obras. A primeira, o Dicionário da Terra ,organizado por mim, com a contribuição de
dezenas de pesquisadores e publicado em 2005; obra cujo imprevisível impacto
culminou com a premiação em 2º lugar na categoria de ciências humanas do prêmio
Jabuti10. Em
seguida, Campos em disputa: história
agrária e companhia que visou apresentar ao leitor o vigor daquela proposta
de pesquisa e a redescoberta de velhas abordagens, alimentadas pelas discussões
historiográficas mais recentes11. É
digno de registro também a publicação dos dois primeiros números da História social do campesinato,
organizados por mim e Paulo Zarth, reunindo dezenas de historiadores12. Outro
livro, História agrária. Propriedade e
conflito, publicado em 200913,
adensaria as discussões em torno da própria ideia de propriedade, nos embates
entre índios e senhores, como na pesquisa de Marina Machado14 e
de Francisco Pinto15; entre
colonos e empreendedores, como nos estudos de Carlos Leandro Esteves16,
entre agricultura e colonização em terras de florestas, como a pesquisa de
Francivaldo Nunes17. Mais
recentemente, a publicação do livro Propriedade
e disputas. Fontes para a história do oitocentos, obra que permitiu a divulgação das principais
fontes operadas nas pesquisas em história rural, contribuindo para uma ainda
maior visibilidade sobre os temas envolvidos nessa linha de pesquisa e os
documentos a serem investigados. Há que se destacar ainda a publicação da Coleção Terra, reunindo teses de
doutorado em história rural, que têm vindo à luz com a parceria das editoras da
Universidade Federal Fluminense, Unicentro e a Horizonte.
O revigoramento desse campo significaria, em suma, um
novo chamamento à pesquisa e uma recuperação do sentido das palavras expressas
por Iglésias, quando da
apresentação de História da agricultura:
combates e controvérsias. Inseridos num novo tempo, onde a opção pela
história narrativa adquiriu um lugar preponderante nos estudos históricos do
país, os estudiosos do rural assumiram também o papel de refletir sobre o
significado de ser historiador, num país ainda marcado por emblemáticas
desigualdades sociais e onde a terra – bem não reproduzível pela natureza – é
ainda um bem de alguns poucos, num universo de conflitos rurais que tem também
uma história18
Em nome daquela linha, os pesquisadores procuraram encontrar um novo elo
comum: o apelo a uma história engajada. Não mais no seu sentido estreito e
mesmo pejorativo que fez da história apenas um combustível de luta para uma
revolução que não aconteceu, e sim na acepção cara a um emblemático autor, Eric
Hobsbawm, em sua defesa de um engajamento legítimo19.
Márcia Maria
Menendes Motta é professora do Departamento de História e coordenadora do
Núcleo de História Rural da Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou
inúmeros artigos e livros sobre o tema no Brasil.
Uma versão mais ampla deste texto será publicada em
Coimbra.
Giovanni Levi. A herança
imaterial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
Márcia Maria Menendes Motta. “Nas fronteiras do
poder. Conflito e direito à terra no
Brasil do século XIX”. 2ª edição.
Niterói, EdUff, 2009. (Tese defendida na Unicamp, em 1996, e publicada pela
primeira vez em 1998). Paulo Pinheiro Machado. Lideranças do Contestado. Campinas. Universidade de Campinas, 2007.
8 Helen Osório. O
império português no sul da América. Estancieros, lavradores e comerciantes.
Rio Grande do Sul, Editora da UFRS, 2007.
Elione Guimarães. Terra
de preto. Uso e ocupação da terra por
escravos e libertos (Vale do Paraíba Mineiro, 1850-1920) Niterói, EdUff,
2009.
Francivaldo Alves Nunes. “Agricultura e colonização
nas terras da floresta da Amazônia Oriental (século XIX). Ibidem, pp. 135-158.
Do mesmo autor: Benevides: uma
experiência de colonização na Amazônia do século XIX. 1. ed. Rio de
Janeiro: Corifeu, 2009. Márcia Maria Menendes Motta. O direito à terra no Brasil. A gestação do conflito (1795/1824).
São Paulo, Alameda, 2009.Eric Hobsbawm,. “ Engajamento” in: Sobre a História. São Paulo, Companhia
das Letras, 1998, pp.138-154.
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