A visão antropocentrista, desde há muito arraigada na
cultura ocidental, entende o homem como um ser superior aos demais animais por
possuir uma linguagem e capacidade de raciocínio mais desenvolvidas que outros
seres vivos. Características como a solidariedade, a bondade, a empatia e a
capacidade de aprender são – nesta concepção que coloca o homem no centro do
universo – comumente classificadas como específicas da espécie humana. Em consonância
com essas ideias, está a crença de que somente aos homens caberia o direito a
ter direitos. No entanto, nos últimos anos surgem polêmicas sobre a
possibilidade de animais também terem direitos. Críticos dessa perspectiva argumentam que os animais
não têm a capacidade de fazer parte de contrato social, de fazer escolhas
morais e que não podem respeitar o direito de outros ou não entendem esse
conceito.
O modo de entender a
relação do homem com o universo e, especialmente, dos homens com os animais vem
passando por grandes mudanças em todo o mundo, principalmente a partir da
década de 1970. Segundo Guilherme
Camargo, advogado especialista em meio ambiente e membro da Comissão de
Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Campinas, a discussão
sobre o direito dos animais remonta a Idade Média e, até o século XX, permanecia
apenas no campo filosófico.
Para o advogado, a Declaração Universal dos Direitos dos
Animais, proclamada pela Unesco em 1978, foi um grande marco na luta pela causa
animal, a qual, em sua opinião, tem relação
direta com os movimentos de minorias que tiveram início nos anos 1960. “Isso ocorre
– diz ele – justamente pelo foco na luta
pela proteção e pelos direitos de seres vivos que não são capazes de defesa própria
e de exercer a autotutela”. A aproximação entre homens e animais pode ser vislumbrada quando se
nota que a declaração de 1978 guarda
semelhanças com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, proclamada trinta anos antes, em 1948, durante a Assembleia
Geral das Nações Unidas. Há, em ambos os textos, artigos que versam sobre o
direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal e à dignidade.
De acordo com Camargo, os
animais não possuem capacidade de reivindicar direitos, e, justamente por esta
razão, são os primeiros que devem ser protegidos por leis. Em seu entendimento,
a senciência (capacidade de sentir dor e processar estímulos externos aos
sentidos de tato, visão, olfato e paladar) é justificativa suficiente para que
os animais sejam considerados sujeitos de direito. “No momento em que
compreendemos que os animais são capazes de sentir dor, exteriorizando seu
sofrimento de forma semelhante a dos seres humanos e possuindo um sistema
nervoso que reage com sinais básicos iguais aos nossos, é que nasce a consciência
moral e o dever de protegê-los desse sofrimento”, diz. As leis de proteção animal existem, mas raramente são
aplicadas Militantes da causa animal e administradoras da ONG de
proteção animal Clube dos Vira-Latas - que abriga aproximadamente quinhentos cães, muitos vítimas de maus-tratos e
abandono –, as advogadas Marina Antzuk e Silvia Faller são categóricas: “Animais têm direitos,
sentem dor, medo, angústia, alegria, fome, saudades, não são lixo e muito menos
objetos descartáveis”. Tanto Antzuk como Faller enfatizam que a vida animal deve ser
protegida a qualquer custo e que “nós, seres humanos, somos a voz daqueles que
não podem falar”. Segundo elas, apesar das muitas barbaridades que ainda são
praticadas em todo o mundo, o assunto dos direitos animais parece estar
ganhando cada vez mais espaço na mídia, o que poderia indicar que a sociedade
está evoluindo e “deixando o antropocentrismo de lado”, fato que
necessariamente levaria a um futuro mais respeitoso em relação à vida dos
animais não-humanos.
Antzuk e Faller destacam ainda o fato
de que a legislação brasileira assegura certos direitos aos animais desde 1934,
quando o então presidente da República, Getúlio Vargas, assinou o Decreto
24.645, o qual estabelece, em seu artigo primeiro, que todos os animais
existentes no país são tutelados pelo Estado e prevê uma detenção de dois a
quinze dias para aquele que praticar maus-tratos contra animais. As advogadas
apontam que a Lei de Crimes Ambientais, número 9.605, de 1998, em seu artigo
32, estabelece prisão por um período de três meses a um ano para casos de
maus-tratos ou abuso contra animais domésticos, silvestres, nativos ou
exóticos. A lei de 1998 amplia, portanto, o tempo de punição previsto para o
crime e também sua abrangência, na medida em que especifica os animais.
Segundo Antoniana
Ottoni, advogada e representante no Brasil da Animal
Defenders International – instituição
que atua no Congresso Nacional pressionando deputados a promover projetos de
lei a favor do bem-estar animal –, a mudança de percepção que vem ocorrendo com
relação aos animais mostra que em um mundo no qual se luta pelo fim das
discriminações de raça, de gênero e de espécie, não cabe mais considerar os
animais como meros objetos disponíveis à vontade humana. “O direito tradicional
– afirma Ottoni – estaria, assim, também mudando sua percepção em relação aos
direitos que os animais possuem”.
Apesar das leis de proteção animal
existirem e das punições estarem elencadas claramente nelas, existem entraves
no momento da aplicação da pena, quer seja porque são brandas demais ou, em
certos casos, por total desconhecimento da própria autoridade no cumprimento
das leis. “O cerne da luta por delegacias especializadas para a fase
preambular, que é justamente o inquérito, reside exatamente na necessidade de
um maior conhecimento e especialização no tema do direito animal por parte das
autoridades. Urge que o próprio ministério público, bem como o judiciário,
tenham uma visão mais atual do tema, se afastando de antigos conceitos
arraigados de que animais são objetos. O direito está em constante evolução, as
tendências aparecem e se consolidam por meio das jurisprudências. Esperemos que
não tarde a consolidação e conscientização do direito animal, quer pela
sociedade, como um todo, quer pelas autoridades”, colocam Antzuk e Faller. A primeira delegacia de proteção animal do
Brasil
Localizada em Campinas (São Paulo), a
primeira delegacia especializada no combate de crimes contra animais do país
foi criada há dois anos pelo Conselho
Municipal de Proteção e Defesa dos Animais do município. A delegacia funcionava
inicialmente dentro do 4º Distrito Policial e contava somente com a delegada e
um investigador. Atualmente, conta com mais dois investigadores e dois
escrivães, e, segundo Flávio Lamas, presidente do conselho municipal e
idealizador da delegacia, recebe uma média de oitocentas denúncias de
maus-tratos por ano – para ele, um “número fantástico”.
O objetivo
do conselho é criar políticas públicas para a defesa dos direitos dos animais e
promover a castração, a guarda responsável e a educação infantil sobre o tema.
A delegacia, por sua vez, existe para coibir os maus-tratos e o abandono, além
de assegurar o cumprimento das leis que já existem e lutar por uma punição mais
severa no caso de não-observância das leis. “Nós achamos muito branda a punição prevista no artigo
32 da Lei 9605, apesar de já considerarmos um avanço o fato de que uma pessoa
que seja condenada por maus-tratos perca a primariedade. Mas só isso não
satisfaz: é preciso uma punição mais efetiva, de cadeia, para quem cometer
crimes contra animais. Nós queremos também que seja proibida a importação de
animais de origem estrangeira – o que ainda acontece hoje em dia nos
zoológicos. Não há mais necessidade disso: hoje nós temos os canais a cabo e
podemos conhecer várias espécies de animais sem que seja necessário tirá-las de
seu ambiente de origem”.
Lamas informa que, atualmente, há
delegacias de proteção animal em Ribeirão Preto, Sorocaba, Jundiaí e outras
cidades do interior paulista, ou seja, vários municípios do estado estão se
espelhando na experiência pioneira de Campinas. “Até mesmo outros estados, como
o Rio Grande do Sul, também já estão tentando criar as suas. O secretário de
segurança pública do Rio Grande do Sul nos procurou para saber como estamos
fazendo aqui, para que eles possam levar o modelo da delegacia pra lá. Então,
veja que a iniciativa já partiu do governo do estado e não de um delegado – eles
querem montar delegacias em todas as cidades que sigam certos critérios de
volume de população”, comemora Lamas. Ele diz que, em cidades pequenas, que não
comportam a estrutura de uma delegacia especial para a proteção dos animais, o
trabalho de conscientização dos delegados poderia ser feito através da própria
população: “se as pessoas sabem que maltratar um animal é crime, podem fazer
uma denúncia e exigir que a lei seja cumprida”.
Assim como os outros entrevistados,
Lamas também identifica uma nova tendência na maneira dos homens tratarem os
animais. “Há algumas décadas, os animais eram propriedade dos humanos e
dificilmente alguém iria discordar disso. Hoje, os animais são parceiros dos
humanos no planeta e não bens semoventes, como consta na legislação. Esta é a
nova postura, a qual certamente vai passar a influenciar cada vez mais o
direito tradicional. Não se diz mais, por exemplo, que alguém é dono de um
cachorro. Agora a pessoa é o tutor do cachorro, ou seja, o cão ou gato está sob
os cuidados dela e não é sua propriedade”, finaliza.
Para
saber mais: Uma explicação bastante
clara e completa sobre a senciência como fundamento dos direitos dos animais
pode ser encontrada em um artigo entitulado “Liberdade
e bem-estar numa ética de direitos”, escrito pelo historiador Bruno Müller,
em sua coluna sobre direitos animais, no site da Agência de Notícias dos
Direitos Animais.
|