09/03/2010
Para o senhor, os compositores eruditos brasileiros influenciam a cultura musical nacional? Qual o espaço que eles ocupam hoje?
João Marcos Coelho - Eu acho que a música erudita quer dizer muito pouco hoje, em termos de Brasil. Dos compositores eruditos vivos, então, é muito pequena essa influência ou participação. Porque a vida musical brasileira está toda direcionada para o passado. Quando se faz música contemporânea, música atual, em geral, acaba-se fazendo uma sanduichada entre um Mozart e um Tchaikovsky, por exemplo. E isso é o mesmo que pedir ao público que não goste, que rechace a criação contemporânea. Pois é evidente que o Mozart entre muito redondo no ouvido da pessoas, e o Tchaikovsky também, enquanto que uma composição contemporânea composta este ano, o ano passado, nos últimos dez anos, nunca foi ouvida. Então, as pessoas não têm um código referencial para que ela fique memorável no ouvido delas, elas não tem nenhuma informação sobre essa composição. Nós gostamos muito da música popular porque ouvimos muitas vezes a mesma música, não há quem acabe não gostando da música que é tema da novela das oito da Rede Globo, tamanha a massificação que essa música exerce sobre as pessoas. Mas o que eu queria dizer é que as pessoas não têm chance adequada e digna de ouvir a música contemporânea. Isso é injusto para um compositor contemporâneo. Como a vida musical está voltada toda para o passado, é muito difícil um compositor contemporâneo influenciar ou participar de uma maneira mais ativa da vida musical. Tem quem tenta fazer isso. Por exemplo, o Jorge Antunes, de Brasília, acabou de fazer, ou está fazendo, esta semana, uma ópera de rua em Brasília. E nessa ópera de rua, ele, de uma certa maneira, encena o caso do Arruda, a prisão do governador. É uma tentativa de fazer algo que tenha a ver com o que está acontecendo neste momento. Hoje, não há uma linguagem musical comum aos compositores todos. Quando você senta para ouvir música contemporânea, você tem que ter informações prévias, senão não vai entender nada mesmo, e você não tem chance de gostar. E eu estou falando da música erudita, quer dizer, é difícil ocupar espaço em relação à Bach, Beethoven, Mozart, Tchaikovsky, Brahms. Eu estou falando de compositores eruditos mortos que fazem parte de um grande cânone de gênios da música europeia clássica. É muito difícil concorrer com eles. E quando eu falo da vida musical brasileira, eu falo da programação das orquestras, do modo como a música é ensinada nas escolas, inclusive, nas universidades. Não é em relação à música de consumo, mas em relação aos grandes nomes da música erudita. Até o Villa-Lobos, que é um brasileiro reconhecido universalmente como um dos grandes compositores do século XX (e o mundo prestou um tributo ao Villa-Lobos o ano passado, porque se completaram 50 anos da morte dele), até ele é muito difícil entrar na programação. Quando entra, entra meio de contrabando. Então é uma situação muito difícil a dos compositores brasileiros. Quando alguém quer fazer um aceno para a música contemporânea, escolhe um nome que seja mais lustroso, um nome que tenha mais apelo.
Quais os principais fatores, da nossa atual conjuntura social, que influenciam a produção musical erudita? O que se busca nessa produção?
Coelho - Nos criadores de música contemporânea, ou das músicas contemporâneas, nós temos hoje músicos como o André Mehmari, que é um sujeito que circula tanto no popular como no erudito, com um nível de qualidade que você não vê quebra de continuidade entre uma produção e outra. É complicado dizer que um sujeito como Egberto Gismonti, que estudou com a Nádia Boulanger, que ao mesmo tempo é um grande improvisador e escreve uma obra como “Saudações”, que acabou de sair há alguns meses pela ECM, uma obra para orquestra de cordas, em seis movimentos, e que é um CD inteiro, mais de 60 minutos, é popular ou erudito, ou seja, já não dá para falar muito de música erudita e popular nesse sentido. Do cara que circula nas duas coisas, como um Dimos Goudaroulis, que é um violoncelista que tanto improvisa quanto faz música erudita mais tradicional, faz música contemporânea, faz música barroca... Quer dizer, eu acho que a figura do músico que a sociedade pede hoje é mais ou menos como esses dois músicos que eu descrevi, o Dimos, como intérprete, e o Mehmari, como criador. Você tem que circular em mais de uma linguagem para ter algum significado social? Não sei se o problema é ter um significado social, a própria existência do sujeito, o fato de ele estar fazendo algo já significa que ele está respondendo a condições que o meio, de certa maneira, lhe coloca. O criador articula respostas, e quando ele é bom, articula respostas muito boas e geniais. Acho que cada vez mais o músico de hoje tem tanto que saber tocar Bach quanto Ligeti, tocar Tom Jobim e tocar também Stockhausen, Pixinguinha. Um sujeito que tem que caminhar por todos esses níveis. Não existe mais essa coisa de ser contemporâneo, erudito ou popular. Até pelo modo que a música se produz e chega ao destinatário hipotético hoje.
A forma de consumir música mudou. Mas qual o significado disso para a produção musical?
Coelho - Eu fiz uma matéria outro dia sobre um cantor de jazz chamado Kurt Elling. Ele mandou um CD demo para a (gravadora) Blue Note em 1994, ninguém o conhecia. Ouviram, gostaram, chamaram, contrataram e ele começou a gravar. Esse era o caminho durante quase um século, para a pessoa conseguir fazer a sua música circular em qualquer nível. Hoje, não. Hoje grava-se em casa mesmo, a própria pessoa coloca na internet, disponibiliza. O disco não é mais uma fonte de renda para o compositor. Ele funciona para as pessoas conhecerem a sua obra. O músico tem um significado social como performer, intérprete, criador de música no ato, no concerto, no show. Ele ganha dinheiro assim, jamais vai ganhar dinheiro com uma gravação ou com download. O esquema de distribuição mudou totalmente e, com isso, o problema se deslocou. Agora não é mais um problema do músico, que privilegia mais o processo criativo do que o critério de mercado, conseguir ter sua música gravada ou produzida. Hoje existem softwares em que você faz os sons, você mesmo produz. Mas hoje, o problema é como eu atinjo as pessoas. Pois quando você coloca num blog, na internet, você não está mais concorrendo com milhares ou centenas de milhares, mas sim com bilhões, ou seja, ninguém vai ver. Eu não sou contra a internet, eu acho que a internet é a grande revolução democrática da música, mas eu acho que ela coloca esse novo problema que os músicos, escritores etc, antes, não tinham. Quem vai ler o que eu escrevi? Quem vai ouvir o que eu estou colocando à disposição? Essa é a grande pergunta. Outro dia, um jornalista americano publicou que o disco que estava no primeiro lugar na Billboard, em música clássica, era de uma violinista, Hillary Hahn, um CD com concertos do (Jean) Sibelius e do (Arnold) Schoenberg, que é um compositor “difícil” – ele estava espantado de ser o disco mais vendido da semana. Aí o jornalista descobriu que o disco estava em primeiro lugar porque tinha vendido duzentas cópias! Ou seja, para que o ranking da Billboard? O disco não é mais o veículo, acabou. O direito autoral tem que ser repensado, pois a pessoa baixa a música da internet e faz tantas cópias quanto quiser. O músico se encontra diante do seu maior desafio hoje – e quando falo músico, quero dizer o erudito, o intérprete, o compositor e até o pessoal da música de consumo de massa. É preciso se reinventar, ganhar a vida fazendo música efetivamente. E talvez essa seja a grande conquista do século XXI, as pessoas têm que fazer música na frente das outras pessoas, para viver. A gente volta quase ao estado tribal, em que as pessoas valorizam a comunidade. O bacana é sentar, quarenta pessoas, e ouvir alguém fazendo música, e se possível, interagir. A música clássica foi se engessando de tal maneira que, hoje, se alguém aplaudir entre um movimento e outro, é capaz de levar um tapa – o que é uma regrinha estúpida. Existiram compositores do século XVIII e XIX que faziam coisas na música para provocar aplauso, justamente como se faz na ópera. Hoje em dia, o mais bacana é você sentar em uma roda e você se sentir participante de um evento musical. As raves são isso, não é? Ou não? A música pop é uma grande comunhão, shows em ginásios, em estádios, algo até muito parecido com um culto religioso, em que todo mundo participa, grita e se manifesta. A chave é participar. Então, as pessoas têm necessidade desse tipo de música – pois a gente tem tanta exposição, no computador, no Ipod, no rádio do carro, e mesmo quando você não quer ouvir, você tem que ouvir também. Você é bombardeado de tal maneira, que tudo que você quer é ver o músico tocar violoncelo, piano ou uma flauta na sua frente, e ver como ele produz música e como aquilo é uma coisa mágica. É esse o ponto. Eu acho que a música vive esse dilema fundamental hoje.
O senhor disse que a música contemporânea erudita exige que o ouvinte tenha algum conhecimento. Então, parece que ela também tem que entrar nesse esquema para fazer parte da vida do brasileiro?
Coelho - Não tenho nenhuma dúvida. Tanto é que você percebe que a atitude geral da música contemporânea foi muito radical do ponto de vista de vanguarda, e eu estou falando sobre toda a segunda metade do século XX, a partir de Stockhausen, Boulez, Bério, Ligeti. Com todos esses compositores, os mais talentosos conseguem, mesmo assim, extrapolar e fazer coisas de interesse, que é caso do Stockhausen, do Ligeti, do Bério, por exemplo. Mas o Bério talvez seja o compositor que mais tenha prefigurado essa situação das músicas de hoje, em que você mistura deliberadamente várias linguagens, vários códigos de organização dos sons. Por exemplo, na sinfonia do Bério, você tem os single singers misturados com obras tradicionais da orquestra sinfônica, ele faz uma mistura geral. Desde os anos 1980, houve uma reação muito forte a essa torre de marfim em que a criação contemporânea se fechou. Ainda hoje existe um movimento de música eletroacústica muito forte, por exemplo, mas que é feito exatamente por compositores que perceberam que deve-se ir um pouco além das composições eletroacústicas. Quem vai assistir um concerto em que sujeito entra e fica pilotando um notebook na frente do palco? Isso não é um evento. As pessoas querem algo que elas possam participar, no mínimo expressando o que elas estão achando. Elas querem um tipo de performance no palco, congelar tudo na performance gravada e exibir isso. É como reproduzir na sala de concerto uma situação que eu tenho em casa. Se eu me desloco e vou a algum lugar, eu quero ver uma performance. Nos últimos trinta anos, tem havido uma verdadeira revolução nesse sentido. A música começa a procurar o seu público. E para procurar o seu público, começam a falar de temas que tenham algo a ver com ele. Por exemplo, o grande compositor americano do últimos vinte anos, que é compositor mais importante desta década, é o John Adams, um homem de aproximadamente 50 anos, e que é um excelente compositor lírico, que faz ópera. Ópera é uma coisa passada, mas ele faz ópera com temas que são absolutamente atuais, que querem dizer coisas para nós aqui e para pessoas no Japão, na Inglaterra, no Afeganistão e nos Estados Unidos. A primeira ópera dele chama-se “Nixon na China”. Ele põe o Mao Tse Tung em cena! A última ópera dele, que estreou há dois anos, foi “Doutor atômico”, que discute a questão da bomba atômica. Ou seja, os temas que ele usa são temas que procuram estabelecer uma ponte de contato com quem está ouvindo. Há exemplos similares no Brasil? Coelho - Um caso brasileiro é o compositor contemporâneo Gilberto Mendes, que fez sua carreira tentando estabelecer pontos de contato. Quando a Vila Socó, em Cubatão, pegou fogo, ele fez uma música chamada “Vila Socó, meu amor”. Quando houve a campanha das Diretas Já, ele fez uma música chamada “Mamãe, eu quero votar”, para coro em quatro vozes. Eu tive o privilégio de publicar na Folha de S. Paulo a partitura mesmo, para coro a quatro vozes à capela, para fazer com que o Brasil inteiro cantasse, em 1984. Quer dizer, é um sujeito que está o tempo inteiro antenado com o que está acontecendo. O músico tem que voltar a estabelecer contato com a comunidade em que ele nasceu, e não se considerar um iluminado, que deve ser adorado. Essa vontade de não querer sujar as mãos com a realidade é muito ruim. Na música erudita, a imagem que se tem quando uma pessoa vai a um concerto é de que é um refúgio, ele se refugia para ouvir Mozart, Beethoven... Será que a música clássica é isso? Ela sempre foi isso? Em determinados momentos, até foi. Mas todo criador, em todas as artes, tem que pensar a realidade que o cerca. Seja Goya, que quebrou a cara porque pintou coisas ridicularizando os poderosos, seja Beethoven, que rasgou a dedicatória para Napoleão, pois ele se auto-coroou imperador. Essa é uma atitude de quem participa da vida social e política de seu tempo. Tudo o que as pessoas querem hoje é música que tem a ver com a sua realidade. E isso não quer dizer música fácil, mas música que ajude a pensar.
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