Na linguagem de negócios, existe uma expressão usada para se referir aos acordos em que todos os envolvidos, obrigatoriamente, saem ganhando, satisfeitos com o resultado das negociações: as chamadas “parcerias win-win”. Será que essa expressão é válida também para as relações bilaterais entre países? A China já superou os Estados Unidos no posto de principal parceiro comercial do Brasil no total das transações: é o país que mais compra do Brasil e está quase empatando com os Estados Unidos nas vendas para cá. Essa relação crescente com a China é vantajosa para o nosso país? O que mais vendemos e o que mais compramos dos chineses? Precisamos dar o mesmo salto que a China, em termos de conhecimento e inovação, para mudarmos o perfil dos principais produtos da nossa pauta de exportação? Que papel podem ter, nesse sentido, as parcerias em ciência e tecnologia com os chineses?
De acordo com dados da Secretaria de Comércio Exterior, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), do valor total exportado pelo Brasil em 2011, 17% foi absorvido pelo gigante asiático. Bem mais do que a fatia de 10% que coube ao nosso mais tradicional parceiro, os Estados Unidos. Para se ter uma ideia da evolução das transações comerciais do Brasil com esses dois países, em 2000, enquanto 24% de tudo o que o nosso país vendia era comprado pelos Estados Unidos e 23% do que comprávamos vinha de lá, a China respondia por apenas 2% tanto das nossas exportações quanto das importações. Depois da crise financeira de 2008 e consequente redução do consumo nos Estados Unidos, a China se tornou o nosso maior comprador em 2009 e sua participação continuou crescendo em 2010 e 2011. Nas importações, o que vem dos Estados Unidos caiu para 15% de tudo o que compramos e 14% já vem da China, números que se repetiram em 2010 e 2011.
Fonte: MDIC/Secex
No ano passado, foram exportados para a China um total de R$ 44,3 bilhões, dos quais apenas 15% (cerca de US$ 6,6 bilhões) eram de produtos industrializados. Ou seja, os 85% restantes (aproximadamente US$ 37,6 bilhões) – o grosso do que os chineses compraram de nós – eram matérias-primas como minério de ferro, soja e petróleo. As exportações chinesas para o Brasil, entretanto, têm um perfil muito distinto. “Observando os resultados recentes divulgados pelo MDIC, nota-se, em janeiro e fevereiro de 2012, uma diversificação da pauta exportadora chinesa para nosso país, com a preponderância de produtos manufaturados. É importante mencionar que não há concentração em um único ou poucos produtos, o que evidencia a já conhecida diversificação da pauta exportadora chinesa em escala mundial. Ou seja, exportamos mais produtos menos elaborados e importamos produtos mais elaborados da China”, analisa Helton Ricardo Ouriques, professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Ouriques se refere à alta concentração das exportações brasileiras em poucas commodities, em geral exportadas sem qualquer tipo de processamento, e da diversificação e sofisticação dos itens importados da China, liderados por produtos de telecomunicações e computação. Segundo o MDIC, no balanço relativo ao intercâmbio comercial com a China, em fevereiro de 2012, o Brasil exportou pouco mais de US$ 2,1 bilhões e importou cerca de US$ 2,6 bilhões, ou seja, houve um saldo negativo de quase meio bilhão na balança comercial. Um mês isolado, porém, pode ser uma base enganosa. Considerando-se os últimos três anos, mesmo exportando majoritariamente matérias-primas e importando produtos de alta tecnologia, temos mais de US$ 20 bilhões acumulados em saldo positivo na balança de negócios com a China.
Para alguns economistas estudiosos de temas como globalização e crises financeiras, essa tendência do perfil da nossa carteira de produtos exportados representa um risco de “involução” ou “especialização regressiva” da produção industrial brasileira. André Moreira Cunha, do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em economias asiáticas, acredita que “se nada fizermos, crescerá a probabilidade de nos tornarmos um mero satélite produtor e exportador de recursos naturais”. Segundo ele, o baixo dinamismo das economias centrais após a crise financeira mundial de 2008 tem forçado a China a buscar a diversificação de mercados.
“Suas exportações de manufaturas estão ‘deslocando’ as exportações de outros países, como o Brasil, em mercados de economias de renda média, como na América Latina, tradicional mercado para exportações de produtos industrializados do Brasil”, completa. Em relação ao terceiro principal parceiro do Brasil, a Argentina, no entanto, o nosso mercado de produtos industrializados continua aquecido, especialmente em relação a um setor em que os chineses têm conseguido expandir suas vendas pelo mundo: a indústria automobilística. Em janeiro e fevereiro de 2012, os automóveis estavam no topo da lista dos produtos comprados do Brasil pela Argentina.
Mas os últimos dados divulgados pelo IBGE sobre o desempenho de nossa economia revelam, de fato, que tem diminuído o peso da indústria no total do Produto Interno Bruto (PIB) do país e que o mercado interno tem sido mais significativo para setores como a indústria automobilística do que as exportações, sendo o carro-chefe das vendas para o mercado externo as commodities, como alimentos, minério de ferro e petróleo. Na opinião de Cunha, o Brasil enfrenta um claro processo de desindustrialização desde 1980. Ele lembra que naquela época, o auge de seu processo de modernização, o Brasil tinha o maior setor manufatureiro entre os países em desenvolvimento, figurando na oitava posição global, com 2,6% do valor adicionado internacionalmente. O economista revela que, naquele ano, a China estava apenas na décima segunda posição, com 1,7%, e a Coreia do Sul, na vigésima sétima posição, com 0,6% da produção mundial de produtos manufaturados. Já em 2010, o Brasil aparecia em décimo primeiro lugar, atrás da China, Coreia do Sul, Índia e México. Nessas três décadas que se passaram, chineses e coreanos investiram pesadamente em ciência, tecnologia e inovação e expandiram sua indústria de produtos de alta tecnologia (ver reportagem sobre o assunto).
“Esse processo é resultado, principalmente, da forma como a crise da dívida externa dos anos 1980 desorganizou nossa economia e da ausência, desde então, de uma estratégia coerente e robusta de desenvolvimento. As economias asiáticas, por exemplo, jamais abandonaram totalmente o ativismo estatal, a começar pela China. O que a China coloca, no momento, é mais combustível nesse processo, na medida em que a sua demanda por recursos naturais e a concorrência de suas manufaturas (no mercado brasileiro e em outros mercados) cria um claro incentivo para o aprofundamento da especialização regressiva da nossa produção industrial”, afirma Cunha.
Diferenças nas opções políticas internas do Brasil e da China
Ouriques, da UFSC, diz não ter condições de afirmar se há um risco de involução da industrialização brasileira, mas enfatiza que as relações comerciais entre Brasil e China parecem repetir o padrão histórico entre Brasil e Estados Unidos, no qual exportamos principalmente produtos menos elaborados (commodities) e importamos manufaturados. Segundo ele, seria necessário um processo de mais longo prazo para avaliar esse risco. O professor da UFSC lembra que o Brasil é líder em tecnologia e produtos em alguns segmentos do agronegócio, como soja e laranja, mas que há problemas em setores industriais, como têxteis e calçados, por exemplo. “Há um exemplo muito bom sobre a diferença de trajetória entre Brasil e China: os automóveis chineses estão conquistando mercados no mundo, inclusive em nosso país. A entrada agressiva e recente da JAC Motors no mercado consumidor brasileiro é prova disso. Os chineses desenvolveram marcas próprias e já começam a competir globalmente. O Brasil notabilizou-se por ser receptáculo de fábricas de marcas europeias e americanas. Não temos um carro verdadeiramente nacional competindo interna ou externamente. As tentativas que existiram nesse sentido (com a empresa Gurgel) fracassaram”, constata.
Governador da Bahia, Jaques Wagner, participa do anúncio da instalação da fábrica da JAC Motors que irá funcionar em Camaçari. Foto: Manu Dias/Secom-BA
Marcos Cordeiro Pires, historiador e professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), aponta como característica histórica do país a falta de políticas industriais que organizem e desenvolvam cadeias produtivas nas quais seja possível atingir certo nível de competência para, assim, promover a capacidade de concorrência da indústria brasileira. Ele pondera que, antes de tentar analisar o impacto da concorrência estrangeira no mercado interno brasileiro, é importante observar a estrutura industrial brasileira para, assim, compreender por que se enfrenta hoje no país um processo de forte concorrência no mercado interno. “Nas últimas três décadas, cabe perguntar em que momento o Brasil realmente se esforçou para desenvolver um processo de industrialização com maior qualidade e que permitisse a entrada do país em cadeias econômicas dinâmicas, particularmente, àquela relacionada ao complexo eletro-eletrônico, que é bastante deficitário na nossa balança comercial. Observando isso, vamos chegar à conclusão de que a grande debilidade é nossa”, constata o historiador.
Segundo ele, o Brasil ainda não desenvolveu competência para produzir naqueles setores em que existe maior competitividade no comércio internacional. Isso se daria por conta de opções políticas internas, já que o país, até o momento, não teria feito uma aposta importante no sentido de inovação tecnológica, de formação de quadros e de apoio público para desenvolvimento de empresas nacionais que pudessem atuar nos setores em que a concorrência é mais acentuada. A China, pelo contrário, tem feito exatamente isso: investido pesadamente em inovação tecnológica, educação e no desenvolvimento do mercado interno e das indústrias nacionais.
Parcerias em C,T&I: um caminho a seguir
Pires, da Unesp, que atualmente pesquisa as transformações econômicas e políticas recentes na República Popular da China, aponta que a criação de pesquisas conjuntas e a troca de conhecimento científico e tecnológico são uma possível saída para aprimorar o nível da relação entre Brasil e China. “Talvez essas relações sejam um potencial para que, em médio prazo, o Brasil possa reverter sua atual dependência das commodities e diversificar sua pauta de exportações”, avalia. O recém-criado Centro Brasil-China de Pesquisas em Nanotecnologia (CBC-Nano) é um bom exemplo dessa possibilidade. Inicialmente localizado dentro do Laboratório Nacional de Pesquisas em Nanotecnologia, em Campinas (SP), o CBC-Nano é uma rede colaborativa de pesquisadores brasileiros e chineses que vão desenvolver, em conjunto, investigações e aplicações de materiais nanoestruturados, além de sensores e dispositivos para uso em diagnósticos clínicos.
De acordo com informações publicadas no site da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), o mercado internacional de nanotecnologia deverá atingir US$ 693 bilhões até o final deste ano e US$ 2,95 trilhões em 2015. Um relatório publicado pela U.S.-China Economic and Security Review Commission, dos Estados Unidos, aponta a China como um dos maiores expoentes nessa área na atualidade. Na parceria entre brasileiros e chineses, também haverá pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de novos produtos a partir da biomassa, usando a nanotecnologia para transformar os resíduos agrícolas.
Outro exemplo de parceria promissora é o Centro China-Brasil de Mudança Climática e Tecnologias Inovadoras para Energia. Resultado de um acordo estabelecido entre o maior centro de pós-graduação e pesquisa de engenharia da América Latina (Coope/UFRJ) e a Universidade de Tsinghua (uma das principais da China), o centro tem como missão, de acordo com seu site, “promover a cooperação tecnológica e científica nos setores de mudanças climáticas e tecnologias inovadoras para energia; formar recursos humanos por meio de intercâmbio de alunos de doutorado, professores e pesquisadores e formular sugestões de estratégias e ações para subsidiar decisões dos governos brasileiro e chinês nas áreas de energia e meio-ambiente”.
Há também uma parceria no campo educacional que está ligada ao aumento dos negócios entre empresas brasileiras e chinesas. Criada em 2008, a unidade brasileira do Instituto Confúcio, instituição de ensino de mandarim espalhada por todo o mundo, é fruto de um convênio entre a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade de Hubei, e tem como missão, além do ensino da língua majoritária na China, a divulgação da cultura e da história chinesa e o fortalecimento do intercâmbio cultural e acadêmico entre o Brasil e a China. De acordo com o site do instituto, todos os cursos oferecidos no primeiro semestre de 2012 já estão com as vagas esgotadas. Além da unidade no antigo prédio da reitoria da Unesp na capital paulista, o Instituto Confúcio já se expandiu para os campi de Assis, Marília, Presidente Prudente, São José do Rio Preto, Araraquara, Jaboticabal, Botucatu, Guaratinguetá e São José dos Campos.
O crescimento da procura pelo aprendizado do mandarim também é notado pelo Centro de Língua e Cultura Chinesa (Chinbra), uma instituição privada, fundada em 2003, que funciona na cidade de São Paulo e é reconhecida pelo governo chinês para aplicar o teste HSK de proficiência em língua chinesa, exigido para que estrangeiros possam frequentar as melhores universidades da China. “De 2010 para 2011, tivemos, em média, um aumento de 15% nas matrículas. Realmente, a procura tem aumentado consideravelmente, pois a cada ano, o mandarim se torna mais que um diferencial, se torna essencial para os negócios”, informa Liang Yan, diretora da escola. Segundo ela, a maior parte dos alunos do Chinbra são médicos, advogados e engenheiros interessados em aprender o idioma para aumentar as oportunidades de negócio com as grandes empresas chinesas já instaladas no Brasil. “Mas temos também uma grande quantidade de alunos crianças”, acrescenta.
A demanda pelo ensino de mandarim não envolve apenas o mundo dos negócios e tem levado a parcerias também no campo da diplomacia. No dia 2 de abril, a Folha de S. Paulo divulgou que o Itamaraty, nosso Ministério das Relações Exteriores, acaba de criar um programa em parceria com o escritório vinculado ao Ministério da Educação da China, o Hanban, para enviar recém-formados do Instituto Rio Branco para aperfeiçoar a língua na China. O Instituto Rio Branco foi fundado em 1945 e é responsável pela formação dos diplomatas brasileiros. “Relacionar-se com a China hoje é o grande desafio. Precisamos ter maior capacidade de análise e compreensão do país”, afirma Sérgio Barreiros, diretor-adjunto do instituto.
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