Uma revolução lenta e silenciosa acontece no setor agrícola brasileiro. Aos poucos, produtores rurais de diferentes perfis quebram o isolamento – típico de comunidades separadas dos grandes centros por estradas precárias e sistemas de comunicação ineficientes – e entram no mundo digital. Hoje, as tecnologias de informação e comunicação (TICs) estão inseridas nas atividades rurais como fator de competitividade. Os controles agronômicos, zootécnicos e administrativos utilizam softwares os mais variados. A comunicação entre os agentes da cadeia produtiva com o mercado, tanto para a comercialização de produtos agrícolas, como para a captação das necessidades dos consumidores e rastreamento de mercadorias, passa, progressivamente, a utilizar o formato digital.
O sistema de produção agrícola depende de recursos naturais, financeiros e humanos. Atualmente, a crescente conscientização da necessidade de conservação ambiental, a escassez de mão de obra disponível para o trabalho no campo, e a crise financeira impõem a racionalização da produção, com a redução de custos, estoques, desperdícios e a eficiência no acompanhamento e escoamento dos produtos agrícolas. Tudo isso demanda tecnologias inovadoras que possibilitem ganhos de produtividade e maior satisfação do consumidor. Essa nova realidade exige dos agricultores, grandes e pequenos, bem como de todos os agentes da cadeia produtiva, práticas gerenciais eficientes, cabendo às TICs um papel fundamental.
Mesmo assim, quando falamos de TICs dentro da comunidade rural, precisamos considerar um cenário em que as formas de acesso à tecnologia digital nem sempre estão presentes o que, muitas vezes, limita o contato dos agricultores. Em algumas propriedades rurais, em especial as que se encontram mais afastadas dos centros urbanos, os serviços de acesso à internet via banda larga são inexistentes. Esse fato, aliado ao investimento financeiro necessário para se adquirir computadores e softwares, à capacitação para a utilização da tecnologia e até mesmo fatores culturais de resistência às inovações representam os desafios enfrentados na disseminação dessas tecnologias no cenário rural. Por outro lado, quando disponível, o acesso às TICs proporciona um impacto positivo para os produtores, e aponta uma tendência no setor.
Emerson Gonçalves, produtor de leite de São Paulo, conta que a internet é uma ferramenta cotidiana que ele acessa via rádio. “Sou um minúsculo produtor de leite. A cada dois dias, entrego 300 litros de leite para um laticínio que tem um rigoroso controle de qualidade, com cinco análises por mês. Mas acompanho os resultados das análises pela internet. Entro no site do laboratório e, por meio de senha, acesso as análises feitas no leite que entreguei. Resultados de análises de solos também recebo por email. Chegam antes do impresso que o laboratório me envia pelo correio. Não utilizo softwares específicos para administrar o sítio, uso planilha excel onde anoto tudo”.
Este é um produtor que foge ao padrão tradicional, mesmo em São Paulo, onde muitos têm acesso à internet. Em 2003, os pesquisadores do Instituto de Economia Agrícola de São Paulo, Vera Lúcia Ferraz dos Santos Francisco e Francisco Alberto Pino, fizeram um estudo para avaliar o uso da internet nas atividades rurais no estado de São Paulo, e publicaram que 10,2% dos produtores costumavam acessar a internet para cuidar de seus negócios e 17,0% pretendiam fazê-lo no futuro. Os autores também constataram que a probabilidade de adotar a internet era maior: 1) nas unidades de caráter empresarial do que nas familiares; 2) em unidades com maior nível tecnológico, tanto na produção quanto na administração; 3) por produtores mais jovens, com nível educacional mais alto; 4) por produtores nem sempre presentes na propriedade, principalmente aqueles que exerciam outra atividade econômica fora da unidade de produção agropecuária; 5) por membros de cooperativas; e 6) por aqueles que pretendiam aumentar suas atividades nos cinco anos subsequentes. Com efeito, dados posteriores apresentados por Vera Francisco e Denise Viani Caser, indicaram que, em novembro de 2006, o percentual de agricultores paulistas que acessava a internet para atividades agropecuárias era de 17,7%.
Os números em São Paulo ainda são baixos, se comparados com os 57 % de fazendas que acessam internet nos Estados Unidos, por exemplo. Emerson Gonçalves afirma que na linha de leite, onde se encontra seu sítio, em Santa Rita do Passa Quatro, norte do estado de São Paulo, a internet ainda é pouco usada, contando-se nos dedos os que usam computador. “Eu diria que são três as dificuldades: falta de informação, pois muitos não sabem o quanto o computador pode auxiliar; cultural, visto que para muitos o computador é algo complicado; e material, pois os preços ainda são altos e o acesso a internet é difícil”. Segundo Gonçalves, a qualidade do acesso ainda não é boa. “Os preços estão diminuindo e sei que é um processo que depende da ampliação do número de usuários. Mas os serviços podem melhorar”, avalia.
Recentemente, foram criados alguns incentivos que visam facilitar o acesso à internet e às tecnologias digitais, com apoio dos governos federal e estaduais, de prefeituras e de organizações não governamentais. Em 24 de julho passado, por exemplo, foi publicada no Diário Oficial da União, a portaria que institui o Programa Nacional de Telecomunicações Rurais, com o objetivo de permitir à população das áreas rurais o acesso a serviços de interesse coletivo, de telefonia e de dados em banda larga (internet), privilegiando o uso de frequências na faixa de 450-470 MHz. Com apoio do Ministério das Comunicações, em dezembro de 2008, mais de 5.300 municípios, dos 5.565 existentes no Brasil, já haviam recebido pelo menos um kit telecentro. Esses kits, constituídos de um servidor de informática, dez computadores, uma central de monitoramento com uma câmera de vídeo de segurança, um roteador wireless, 11 estabilizadores, uma impressora a laser, um projetor multimídia ( datashow ), 21 cadeiras, uma mesa do professor, 11 mesas para computador, uma mesa para impressora e um armário baixo, permitem à prefeitura montar uma verdadeira lan house. Todos os telecentros são conectados à internet de alta velocidade e contam com os serviços de telefonia, via VoIP e IPTV. Até o fim de junho de 2009, 6.049 kits telecentro haviam sido entregues pelo Ministério.
Por outro lado, existem alguns meios de informação tradicionais que já se encontram disponíveis. Embora com uma bagagem tecnológica “ultrapassada”, por ainda não ser interativa, a televisão é um meio de comunicação amplamente difundido nos lares brasileiros e, por isso mesmo, não causa nenhum estranhamento. Márcia Izabel Fugisawa Souza, pesquisadora da Embrapa Informática Agropecuária, em Campinas (SP), informa que no Brasil existem 94% de domicílios com TV, conferindo a essa mídia uma abrangência muito grande. “Há relatos de casas no Ceará, por exemplo, sem eletrodomésticos, mas com TV”. O uso de celular também tem sido muito difundido. Segundo Márcia Souza, “essas tecnologias estão migrando para o campo, embora lentamente. Mas o celular ainda está longe de ser um meio de massa, pois o serviço ainda é muito caro”.
Márcia Souza começou a trabalhar com TIC em 1995, quando desenhou à mão o site da biblioteca da Embrapa Informática Agropecuária. Hoje, ela considera que há uma semente, que aparece com a substituição de uma geração pela outra. Segundo ela, a evolução da banda larga tem que ser resolvida na comunidade. “Conforme a tecnologia é transferida, a demanda aumenta – o demandante vai ser pró-ativo. Existe a responsabilidade de usar a informação da maneira mais eficiente, e, para isso, estabelecer parcerias com outras agências ou empresas”. Ainda existem resistências à criação de tecnologias digitais para o mundo rural, pois essas se chocam com culturas arraigadas na comunidade. Segundo Márcia Souza, dentro da própria Embrapa existiam resistências às TICs: “o argumento era de que os produtores não usariam essas tecnologias”.
A despeito das expectativas negativas, o que se observa hoje em relação às TIC é que há produtores que estão interessados nas novas tecnologias. Para o produtor de leite, Emerson Gonçalves, a internet tem vantagens em relação à televisão, pois oferece muito mais informações que ele pode escolher, imprimir, guardar e acessar com facilidade. “Ontem mesmo, conversei longamente com a médica veterinária. Usei um serviço de comunicação via internet, através de conexão de voz, o que não me custou nada. Depois de conversarmos, ela me enviou via email vários textos para leitura. Não tenho isso com a televisão”.
Apesar das dificuldades práticas e materiais e de alguma insegurança em relação às TICs no campo, elas podem representar um grande passo para a inserção dos produtores agrícolas em um mundo cada vez mais globalizado. Afinal, um grande apelo para a disseminação das TIC pelas propriedades rurais brasileiras é a própria necessidade de adoção de sistemas de produção modernos. Na agroindústria de carnes bovina e avícola, por exemplo, o Brasil se destaca, com produção entre as mais modernas e competitividade internacional no processamento e distribuição. Essa competitividade se apóia em tecnologias que exigem investimentos elevados e trabalhadores bem treinados.
Independente do tamanho do negócio e da quantidade de dinheiro movimentada, a necessidade de se adequar ao mercado, nacional ou internacional, se aplica a todos. Dessa forma, não é de surpreender que, mesmo os pequenos produtores rurais, sejam conquistados pelo mundo das TICs. Tradicionalmente considerados como excluídos digitalmente, agricultores familiares, assentados de programas de reforma agrária e quilombolas, são atendidos por diferentes programas de inclusão digital. No estado de Santa Catarina, onde a maior parte da produção rural é constituída por pequenos produtores, o Programa Beija Flor oferece, desde 2004, cursos introdutórios à informática para usuários efetivamente excluídos digitalmente. São oferecidas palestras sobre vários temas: desenvolvimento social, saúde, agricultura, cooperativismo, sustentabilidade em projetos sociais, produção de conhecimento, educação e cidadania. Segundo Antonio Marcos Feliciano, gestor técnico do programa, “desde 2008 atuamos na perspectiva de sensibilizar nossa clientela para o uso e reuso de software livre. Também desenvolvemos atividades voltadas para a explicitação de conhecimento, ou seja, que os conhecimentos sociais possam ser compartilhados, devidamente publicados na página de cada telecentro do Programa Beija-Flor”.
Atualmente existem 15.495 pessoas beneficiadas, distribuídas em 129 telecentros espalhados pelo estado de Santa Catarina. Segundo Feliciano, dentre essas pessoas “com certeza, cerca de 80% participaram de atividades pedagógicas, pois nosso número de usuários para acesso livre ainda é reduzido.” O projeto atua em parceria com a Secretaria Estadual de Educação, “com objetivo de melhor abordar e mensurar as atividades pedagógicas”. Feliciano salienta que os telecentros atuam em realidades semelhantes, contudo com suas peculiaridades, o que levou a equipe responsável pelo programa a adotar uma estratégia de autonomia para as ações em cada telecentro. Além disso, o projeto se preocupa em promover a sustentabilidade do telecentro, orientando o desenvolvimento de projetos locais, cujo foco resida na execução de ações visando captar recursos.
Muitos benefícios para a produção agrícola de Santa Catarina podem ser apontados como decorrentes da inclusão digital de produtores rurais nesses quase cinco anos de existência do Programa Beija-Flor. Desses, Feliciano destaca “o contato direto com sistemas informatizados de gestão para a pequena propriedade rural; contabilidade agrícola; informações sobre previsão do tempo; preços de insumos, produtos, terra, dentre outros; a própria comunicação e o estabelecimento de parcerias virtuais, com grupos de atividades semelhantes de outras regiões”. Entretanto, na avaliação do gestor técnico, as políticas de incentivo para a geração de parcerias no setor ainda deixam a desejar: “Do ponto de vista organizacional, as instituições, sobretudo públicas, não percebem esse importante canal de comunicação como estratégico para desenvolvimento de ações”. Por outro lado, essencial para o sucesso dessa iniciativa, é o próprio desenvolvimento dos telecentros. No Programa Beija-Flor, mais do que implantar novas unidades, a prioridade é a sustentabilidade das que já existem.
No âmbito das políticas públicas federais, os esforços para a inclusão digital de pequenos produtores rurais estão concentrados no Projeto Territórios Digitais (PTD), articulado pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário (Nead/MDA). Para Rossana Moura, coordenadora do PTD, a inclusão digital visa transformar em cidadãos todos aqueles que ainda não têm acesso a internet, “pois hoje tudo gira em torno da internet”. O PTD é descentralizado, “cada estado constrói, com os movimentos sociais e segmentos da sociedade interessados, o que, e como será feito, de acordo com suas particularidades e seguindo as diretrizes do MDA”. Como benefícios, já perceptíveis nos dois anos de existência do projeto, a coordenadora do PTD destaca: “o acesso à informação, o aprimoramento das atividades produtivas onde elas já existem, o controle social das práticas públicas e a formação de redes de trocas de experiências (por exemplo, assentados do Ceará e do Pará trocam experiências via internet)”. Moura ainda aponta como benefícios o acesso às ações do governo disponibilizadas no meio digital (financiamentos, informações sobre projetos, cadastros, entre outros), que antes eram inacessíveis a certas camadas da população e, ainda, o fato de que “jovens passaram a permanecer nas áreas rurais, pois se sentem incluídos”.
Rossana Moura considera que a inclusão digital no meio rural está promovendo uma revolução silenciosa no campo brasileiro que, certamente, trará importantes benefícios para a organização da produção agrícola de pequenos produtores rurais. O PTD conta com equipamentos novos e os participantes recebem instruções de como usá-los, como fazer manutenção, resolver pequenos problemas de conexão e acessar informações. Moura explica que “são necessários três meses para instalar uma casa digital, pois é preciso preparar a comunidade para receber os equipamentos, dentro da metodologia de apropriação do conhecimento”. O projeto é implantado a partir de um tema prioritário escolhido de acordo com as necessidades da comunidade, seja ele meio ambiente, economia solidária, produção agrícola sustentável etc.
Como se vê, a oferta de serviços de TICs para o campo está brotando de muitos lugares. Mas não basta disponibilizar meios. A agricultura tem um papel importante na economia brasileira. O agronegócio contribui com pouco mais de 30% do Produto Interno bruto (PIB) nacional e tem sido alvo do maior boom tecnológico, desde o início da Revolução Verde: novos softwares, fertilizantes de última geração, tecnologias de inseminação artificial e transferência de embriões, cultivares mais resistentes e produtivas, máquinas computadorizadas e com Sistema de Posicionamento Global (GPS, sigla em inglês) e animais extremamente precoces. Agora, também os computadores chegam ao campo, permitindo que agricultores acessem a internet. Entretanto, a escolaridade de produtores rurais é ainda baixa. Muitos trabalhadores rurais são analfabetos e nunca receberam nenhum tipo de treinamento. A mão de obra rural, em comparação com a da indústria e a dos serviços, é ainda despreparada e desqualificada. As instituições públicas possuem uma grande responsabilidade na organização e na apresentação para os usuários de informações digitais confiáveis num ambiente seguro, favorecendo o acesso direto e rápido à informação para sua utilização, absorção e formação de novos conhecimentos. Para Márcia Souza, da Embrapa Informática Agropecuária, “se não fizermos a nossa parte – disponibilizar produtos com conhecimento compartilhado – daqui a pouco teremos chineses produzindo conteúdo para a internet brasileira”.
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