Acompanho, há vários anos, com interesse diversificado, mas focado, o desenvolvimento das editoras universitárias no Brasil. Mais particularmente, tenho acompanhado as editoras da USP (Edusp), da Unesp (Edunesp), e da Unicamp (Editora da Unicamp).
Penso, sem desmerecer os trabalhos realizados anteriormente, que as mudanças definitivas que ocorreram nessas editoras se deram nas gestões dos professores João Alexandre Barbosa, substituído com o mesmo brilho e criatividade pelo professor Plínio Martins Filho, que com ele havia trabalhado na Edusp, com o professor José Castilho Marques Neto, na Edunesp, e com o professor Eduardo Guimarães, depois com o professor Paulo Franchetti, na Unicamp.
No caso da Editora da Unicamp, onde o professor Jaime Pinsky já vinha fazendo um importante trabalho, pude, mais de perto, seguir os passos da transformação por que passava a universidade nesse campo. De fato, à época em que ocupei a coordenadoria geral e vice-reitoria, por ter a editora vinculada a este órgão e a esta função, pude designar o professor Eduardo Guimarães para dirigir a editora, atribuindo a esta, com a concordância do então reitor Paulo Renato Souza, um orçamento equivalente a 200 mil dólares/ano, o que também tive oportunidade de confirmar nos anos subseqüentes quando me tornei reitor, de 1990 a 1994.
A idéia era bastante simples e o princípio da gestão bastante prático e claro. Compartilhado com os colegas das outras duas universidades estaduais paulistas, mas já disseminado desde a Universidade de Brasília (UnB) como padrão institucional a ser seguido pelo país afora, esse princípio dizia apenas que, não sendo proibido ter lucro, não era este, contudo, o objetivo de uma editora universitária, pelo menos o lucro no seu sentido comercial. Não que não se devesse comercializar o produto, os títulos publicados. Ao contrário, era isso também obrigação das editoras universitárias, mas o eventual sucesso de vendas deveria, como era normal que fosse, ter sentido institucional, apenas que, agora, revertido em aplicações nas próprias editoras e não diluído em outros investimentos sempre demandados pela instituição.
Desse modo, ao lado do trabalho técnico, propriamente dito, de gestão editorial comprometida com a qualidade e a oportunidade acadêmica e intelectual dos títulos a serem escolhidos para a publicação, um outro trabalho, de gestão administrativa e orçamentária-financeira, começou a ser organizado, visando a dar condições estruturais de perenidade institucional ao funcionamento de nossas editoras universitárias.
Penso que esse empreendimento, essa empreitada, por assim dizer, que em conjunto, e por diferentes iniciativas, se tomou há alguns anos atrás, surtiu o efeito desejado e hoje, só as 106 editoras congregadas na Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Abeu), apresentam um portfólio de mais de 22 mil títulos publicados.
O papel das editoras universitárias no processo de socialização do conhecimento e da cultura é fundamental e o livro, seu produto, instrumento e objeto material dessa dinâmica de transformação, tem, contudo, um predicado paradoxalmente singular, ou, ao revés, singularmente paradoxal.
Para existir, necessita dessa materialidade que as editoras lhe conferem em páginas, letras impressas, capa, às vezes imagens e ilustrações. Objeto constituído, mesmo que pare em pé por grossura de lombada e número de folhas, só vive, de fato, se aberto para os olhos dos que lêem e relêem o lido e o relido através de gerações.
A vida de um livro não está, pois, na materialidade concreta do objeto que a sua publicação constitui. Está, ao contrário, na constante reinvenção que o ato de ler institui, ato que, no entanto, só pode se realizar com o objeto-livro, em papel ou eletrônico, aberto para a leitura que o transforma, no próprio ato, no livro-objeto sendo reescrito ao deixar-se ler, e ser lido, enquanto escrito.
Borges anotou tantas vezes esse predicado fluido e fugaz do livro e da leitura que o seu “Pierre Menard, autor do Quixote ” é a consolidação literária de uma convicção e de um sentimento que sempre o acompanharam. Aparece também com destaque no texto “O livro”, publicado em 1987 em Cinco visões pessoais, pela editora da Universidade de Brasília, e republicado em edições comemorativas dos vinte anos da Edusp, em 2008.
Escreve ele:
Heráclito disse ─ e já repeti isto em demasia ─ que ninguém desce duas vezes o mesmo rio. Ninguém desce duas vezes o mesmo rio porque suas águas mudam. Mas o mais terrível é que nós não somos menos fluidos do que o rio. Cada vez que lemos um livro, o livro mudou, a conotação das palavras é outra. Ademais, os livros estão impregnados de passado.
... Hamlet não é exatamente o Hamlet que Shakespeare imaginou em princípios do século XVII. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. Hamlet renasceu. O mesmo ocorre com o Dom Quixote. Da mesma forma com Lugones e Martinez Estrada, já que Martin Fierro não é mais o mesmo. Os leitores foram enriquecendo o livro.
Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas, ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.” (p. 36-38)
Se o livro é, como diz Borges no mesmo texto, uma das possibilidades de felicidade de que, nós os homens, dispomos, e se, como registra também o autor, outra forma de felicidade é a criação poética, mistura de esquecimento e lembrança do que lemos, é preciso que tenhamos ao nosso alcance a possibilidade da leitura para que possamos tentar essa felicidade inadiável e urgente, feita de lembrança e esquecimento.
Nesse aspecto, as editoras universitárias, pelos títulos que publicam e republicam, pela linha editorial que adotam, pela renovação dos clássicos atualizados nas leituras e releituras que possibilitam, têm uma contribuição imprescindível à dinâmica da educação e da cultura no processo de formação integral do homem e das sociedades em que ele vive e nele vivem.
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