Um dos campos da filosofia que teve um grande desenvolvimento no século XX foi o da filosofia da ciência. Concebida como uma ferramenta conceitual destinada a refletir acerca de vários aspectos da ciência, a filosofia da ciência é atualmente compreendida como uma disciplina integrante dos grandes debates em torno dos temas do conhecimento científico.
Histórico do desenvolvimento da filosofia da ciência
Usando a expressão num sentido bastante amplo, "filosofia da ciência" se refere a um conjunto de reflexões acerca do conhecimento científico, e neste sentido uma filosofia da ciência estaria presente desde o nascimento da filosofia grega. Assim, podemos considerar, por exemplo, algumas obras de filósofos modernos – tais como René Descartes e George Berkeley – como exposições filosóficas sobre a ciência. Entretanto, enquanto disciplina específica – ou seja: enquanto portadora de uma agenda programática, de um vocabulário padronizado etc –, há um certo consenso quanto à sua origem: o Círculo de Viena.
O Círculo foi uma reunião de filósofos, cientistas, matemáticos e intelectuais de algumas outras áreas que se reuniram (entre as décadas de 20 e 30 do século passado) em torno do interesse de discutir o conhecimento científico, sobretudo o conhecimento da física, que se transformou decisivamente nessa época, com Albert Einstein, Neils Borh e Werner Heisenberg, entre outros grandes nomes. Dentre tantas figuras de destaque do Círculo, podemos mencionar Moritz Schlick e Rudolf Carnap, sendo este último considerado o principal representante da posição filosófica do grupo, a qual ficou conhecida como "positivismo lógico". Esta posição ficou caracterizada de forma ampla como uma tentativa de compreender o conhecimento científico tendo por parâmetro a construção de uma linguagem da ciência – uma linguagem que não descreveria uma suposta realidade por detrás das aparências. Outro ponto de destaque do positivismo lógico é a exigência de que a filosofia apresente critérios de racionalidade para a ciência. Por conta da defesa de uma série de posições acerca do conhecimento científico, a tradição positivista do Círculo de Viena foi objeto de críticas ao longo da história da filosofia. Porém, é importante o registro de que o positivismo lógico foi responsável pela organização de uma agenda programática para a filosofia da ciência.
Contemporâneo do positivismo lógico, Sir Karl Popper foi um dos mais influentes filósofos da ciência do século XX. Dentre suas várias contribuições podemos destacar a ênfase na relação entre experimentação e teoria; para Popper, as teorias sempre precedem as observações e os testes experimentais. Deste modo, uma concepção de ciência é sugerida: a ciência não tem início na observação, mas sim com construções teóricas ou mesmo, admite Popper, com especulações metafísicas. Para Popper esse procedimento não seria censurável, dado que ele seria complementado: as teorias científicas precisam ser testadas diante da experiência; logo, mesmo que toda especulação seja possível de ser proposta, ela só será aceita como digna de reconhecimento científico caso se submeta à experimentação.
Um importante ponto de contato entre o positivismo lógico e Karl Popper é a ênfase na distinção, proposta por Hans Reichenbach em 1937, entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação, sendo que não interessaria ao filósofo da ciência compreender como uma teoria foi construída (contexto da descoberta), mas sim como ela pode ser validada (contexto da justificação).
Outro grande acontecimento da filosofia da ciência foi o surgimento de A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, em 1962. Nesta obra o autor, ainda que mantendo certas preocupações filosóficas já expressas pela tradição do positivismo lógico, propôs, no entanto, algumas questões que, se não eram exatamente uma novidade na filosofia da ciência, foram colocadas no centro dos debates da época. Em especial, Kuhn enfatizou que uma compreensão da estrutura e do desenvolvimento da ciência deveria ser conduzida em uma parceria entre a própria filosofia da ciência e a história da ciência. Sugerida de modo contundente por Kuhn, ele mesmo foi um dos autores a seguir esse plano metodológico geral, a partir do qual estabeleceu um conceito filosófico que ainda hoje é acionado como uma categoria útil para a compreensão da dinâmica da ciência: o conceito de paradigma. Na perspectiva de Kuhn esse conceito seria útil em vista de que, tomando-o como a expressão de uma estrutura geral capaz de reunir os membros de uma comunidade científica, ele nos auxiliaria a compreender de que modo, por exemplo, certos conceitos científicos são aceitos em uma época, mas rejeitados em outra. Entretanto , ao lado de contribuições que realmente se consolidaram como orientações para a pesquisa em filosofia da ciência, Kuhn também se expôs a diversas críticas da comunidade filosófica, sobretudo por sua defesa de princípios que, argumentaram alguns filósofos, desafiavam a noção clássica de que a ciência seria um empreendimento racional, sobretudo suas teses de que não se poderia comparar paradigmas rivais (a chamada tese da incomensurabilidade) e de que a ciência não seria um empreendimento rumo à verdade (a chamada tese do relativismo).
Aceitas ou não suas teses mais ousadas, o fato é que a orientação programática geral de Kuhn se estabeleceu em várias escolas e foi seguida por vários autores, dentre os quais se destacam Imre Lakatos, Paul Feyerabend e Larry Laudan, filósofos decisivos tanto para nossa compreensão da ciência quanto para um entendimento dos – em certo sentido – novos rumos que a filosofia da ciência estava tomando.
Novos horizontes
Uma das grandes contribuições de Kuhn à nossa compreensão de ciência foi tornar explícita a sugestão – já adiantada pelo lógico, epistemólogo e filósofo da linguagem Willard Quine – de que os conceitos científicos adquirem um significado não em vista de sua própria definição, ou de suas virtudes como denotadores de realidades, mas em função do papel que ocupam em grandes redes teóricas (os paradigmas de Kuhn). Tal sugestão foi e tem sido desenvolvida em seus aspectos formais (a partir da contribuição da lógica e da semântica) pela chamada concepção estruturalista, associada a nomes como C. Ulisses Moulines e em seus aspectos ligados à psicologia da descoberta científica, por exemplo com Paul Thagard. Também se pode dizer que essa sugestão tem sido, de algum modo, incorporada à prática historiográfica.
Por outro lado, grandes pontos de inflexão da obra de Kuhn ainda repercutem. O relativismo, por exemplo, se tornou uma marca das chamadas concepções sociológicas da ciência, que têm em Bruno Latour um nome de destaque ainda atual. A percepção da complexidade das leis científicas já conduziu a física e filósofa Nancy Cartwrigh a afirmar no título de um de seus livros que "as leis da física são mentirosas", pelo fato não de serem programadas para nos enganarem e nos conduzirem ao relativismo, mas por serem muito amplas e compreensivas. Sem compromisso com o relativismo, mas um crítico de certo uso da palavra "verdade" quando aplicada à ciência, o filósofo empirista Bas van Fraassen é atualmente um dos filósofos mais comentados e fundamentais para nossa compreensão do conhecimento científico, sendo seu enfoque pragmático uma orientação poderosa para a filosofia da ciência e, apesar de pouco explorado, um enfoque igualmente útil para a historiografia da ciência.
Do ponto de vista especificamente da historiografia da ciência, Kuhn foi um dos responsáveis por ter fornecido intuições básicas que por vezes podem ser úteis para o historiador, tais como a de procurar situar o assunto, que se quer cobrir historicamente, em sua complexidade natural histórica. Deste modo a emergência de, por exemplo, uma hipótese, deve ser compreendida não apenas em função da estrutura interna e teórica da hipótese, mas pelas relações que a hipótese estabelece com outras hipóteses e, em alguns casos, pelas relações da hipótese com seu próprio modo de produção (o que antes chamamos de "contexto da descoberta").
E, tendo em vista a ampla institucionalização do campo chamado "ensino de ciências", não podemos omitir que uma outra consequência da obra de Kuhn foi a utilização de concepções filosóficas sobre a ciência na reflexão e prática do ensino de ciências. Um nome importante nessa utilização é Michael Matthews, que em 1994 publicou seu influente Science teaching, livro no qual procurou discutir de forma aprofundada diversos temas ligados à inclusão de história e filosofia da ciência no ensino de ciências. Além disso, a obra de Matthews forneceu igualmente uma agenda ainda atual de problemas e discussões. Do ponto de vista teórico, a discussão proposta por ele se insere nas discussões mais gerais a respeito das deficiências do ensino de ciências e dos problemas da formação científica de alunos e professores. Nesse contexto, a filosofia da ciência é utilizada com a finalidade de fornecer instrumentais de reflexão das mais variadas práticas pedagógicas, bem como com o objetivo de auxiliar a esclarecer a natureza da ciência.
Temas em filosofia da ciência
A filosofia da ciência lida com temas e problemas que possuem uma certa estabilidade na literatura. Dentre os grandes temas podemos mencionar: 1) a construção das teorias científicas – de que modo as teorias, hipóteses e modelos científicos são construídos? As teorias são construídas sob quais regras? O contexto comunitário da ciência exerce algum papel nessa construção?; 2) a aceitação das teorias científicas – em que condições uma comunidade de pesquisadores aceita uma hipótese científica aparentemente bem sucedida?; 3) o papel dos valores na ciência – a ciência é uma atividade que incorpora valores em sua prática? De que modo tais valores seriam incorporados e que papel eles ocupam na construção e aceitação das teorias científicas?
Além desses grandes temas, e algumas vezes a eles associados, há outros tais como: 4) a questão da existência das entidades postuladas pelos cientistas em suas explicações de fenômenos; 5) o estatuto de cientificidade dos grandes sistemas científicos (por que podemos afirmar sua cientificidade, sob quais critérios?). Por fim é importante mencionar que a filosofia da ciência também opera numa plataforma de temas de natureza bastante conceitual, sobretudo a partir de questionamentos gerais como: o que é racionalidade? O que é cientificidade? O que é a verdade na ciência? Temas que acabam muitas vezes aproximando a filosofia da ciência a discussões de outras áreas filosóficas relacionadas e associadas, tais como a teoria do conhecimento, a metafísica, a lógica e a filosofia da linguagem.
A filosofia da ciência no Brasil
No Brasil, atualmente, são vários os programas de pós-graduação que contemplam estudos em filosofia da ciência, além, é claro, da disciplina já estar consolidada nos cursos de graduação em filosofia, bem como em outros cursos de graduação, geralmente em cursos de ciências naturais.
Em termos institucionais, destaque-se o evento bienal organizado pelo Núcleo de Epistemologia e Lógica, da Universidade Federal de Santa Catarina. Este evento, Simpósio Internacional Principia, conta invariavelmente com grandes nomes nacionais e internacionais da filosofia da ciência, sendo inegavelmente o maior fórum específico de debates da área, além de abrigar outras importantes áreas relacionadas. Além do Principia, outros eventos também merecem destaque, tais como o Encontro de Filosofia e História da Biologia (organizado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia, ABFHiB) e o Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (organizado pela Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, AFHIC). Outros eventos, que não se propõem a divulgar especificamente a filosofia da ciência, mas que têm certa proximidade com a área, também têm aberto espaço para a discussão e reflexão sobre a ciência, como é o caso do Workshop Berkeley, e do Congresso Internacional de Filosofia Analítica. Por fim, congressos e eventos de natureza geral também abrem espaço para a inserção da filosofia da ciência.
Um papel importante na produção de pesquisas e na disseminação da filosofia da ciência vem sendo ocupado pelas associações acadêmicas. Além das mencionadas acima, temos também a Associação Filosófica Scientiae Studia, a Sociedade Brasileira de História da Ciência, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e, no âmbito da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), está localizado o GT de Filosofia da Ciência, o qual se reúne a cada dois anos nos congressos da ANPOF. Há ainda grupos institucionais de pesquisa como o GFHIC (Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências), o Grupo de Teoria e História da Ciência, da Unicamp, os grupos de pesquisa Filosofia e História da Biologia e Lógica e Filosofia da Ciência, ambos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da UNB, os grupos de pesquisa Ensino de Ciências, História das Ciências e Filosofia das Ciências, todos do programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, da Universidade Federal da Bahia e Universidade Estadual de Feira de Santana, o Centro de Epistemologia e História da Ciência, do Departamento de Filosofia da UFRJ, e os grupos de pesquisa em Ensino de Ciências e História da Ciência que atuam tanto no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Universidade Estadual de Londrina quanto no Museu de Ciência e Tecnologia dessa universidade.
A produção em filosofia da ciência no Brasil, além de ser divulgada por meio de livros e artigos em revistas de natureza filosófica geral, é também apresentada em periódicos específicos, tais como as revistas: Principia, Scientiae Studia, Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Filosofia e História da Biologia, Cognitio e Episteme.
Encerrando esta breve apresentação, não se pode deixar de mencionar a importância histórica do CLE (Centro de Lógica e Epistemologia, sediado na Unicamp). Esta entidade acadêmica reúne, desde a década de setenta do século passado, diversos pesquisadores ligados à filosofia da ciência, lógica, filosofia da matemática, epistemologia, filosofia da mente e áreas afins. Em todos os três itens acima mencionados (eventos, formação de comunidades de investigadores em associações e disseminação editorial da produção), o CLE se apresenta como uma contribuição inestimável à filosofia da ciência por meio da reunião de pesquisadores interessados em refletir, discutir e produzir em torno das temáticas ligadas à ciência.
Conclusão
A filosofia da ciência, embora praticada profissionalmente por filósofos, pode ser utilizada por virtualmente todos aqueles interessados em uma introdução aos grandes temas científicos. O filósofo Peter Lipton declarou certa vez que a filosofia da ciência poderia ser considerada inútil para muitos uma vez que, é argumentado, que a ciência se desenvolve de modo independente da filosofia. Sem mencionar aqui que em muitos avanços científicos a filosofia se fez presente de modo decisivo, ainda se pode contra-argumentar que um esclarecimento das práticas científicas, da relação da ciência com a sociedade, da produção do conhecimento etc, dificilmente poderia ser considerado uma inutilidade. Em conjunto com a própria ciência, e em conjunto com outras disciplinas, a filosofia da ciência pode oferecer excelentes contribuições para a reflexão sobre o conhecimento científico.
Marcos Rodrigues da Silva é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina e pesquisador da Fundação Araucária do Paraná.
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