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Reportagem
Crianças com necessidades especiais – a escola lidando com a diversidade
Por Daniela Klébis e Patrícia Mariuzzo
10/12/2005

A política de inclusão de crianças nas escolas regulares brasileiras completa dez anos em 2006. Dados da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (Seesp/MEC) informam que o número de matrículas no ensino especial aumentou de 566.753 em 2004 para 639.259 este ano. Apesar disso ainda são grandes os desafios das escolas regulares, públicas ou privadas que trabalham com crianças com necessidades especiais. Os problemas vão desde as barreiras arquitetônicas, até a necessidade de uma mudança efetiva para que se chegue a uma escola realmente inclusiva, que garanta o atendimento à diversidade das crianças. Não se pode perder de vista ainda que a determinação legal afetou padrões construídos durante décadas no espaço educacional. “Promover uma inclusão efetiva coube e está cabendo a cada professor, a cada escola”, acredita a educadora Tânia Regina Laurindo, coordenadora pedagógica de uma escola privada da cidade de Campinas, interior de São Paulo, que tem vários alunos com necessidades especiais matriculados em suas classes regulares.

A política de educação inclusiva, no Brasil, está embasada na Declaração de Salamanca, elaborada pela Conferência Mundial de Educação Especial que ocorreu em 1994. A Declaração afirma que as escolas regulares com orientação inclusiva são os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias. A coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade (Leped), da Faculdade de Educação da Unicamp, Maria Tereza Eglér Matoan confirma que o melhor atendimento escolar para pessoas com deficiência, como também para qualquer outra criança, é mesmo a escola regular. “O complemento oferecido pela educação especializada não diz respeito ao ensino de conteúdos curriculares da escola comum: alfabetização, matemática, ciências etc., mas ao ensino de recursos, linguagem, uso de equipamentos, códigos que sirvam para os alunos enfrentarem as barreiras que suas deficiências impõem à aprendizagem nas salas de aula das escolas comuns: código braille, Língua Brasileira de Sinais (Libras), língua portuguesa como segunda língua para surdos etc.”, explica.

Fotos cedidas pela Fundação Síndrome de Down
Beatriz: trabalho precoce ajuda a inclusão de crianças com Síndrome de Down

Uma das instituições que desempenha este papel de suporte à escola regular é a Fundação Síndrome de Down. O trabalho inclui fisioterapia, fonoaudiologia, psicopedagogia, terapia ocupacional e psicologia, e visa incluir as crianças na sociedade, propiciando um bom desenvolvimento físico e social. “Nossa meta é fazer com que a criança com a síndrome possa fazer tudo o que os outros indivíduos fazem”, conta a fonoaudióloga Carmem Minuzzi, coordenadora do núcleo terapêutico da entidade. O atendimento começa com recém-nascidos, que recebem terapia de estímulo, e segue até quando a criança precisar de apoio. As terapias, entretanto, não são necessárias durante toda a vida da criança com síndrome. Um dos focos é melhorar a adaptação dessas crianças na escola regular por meio de visitas e da capacitação dos professores. Este último ponto, entretanto, não é o mais importante, segundo a fonoaudióloga. Ela explica que o professor não precisa ser um especialista para lidar com a síndrome de Down. O que é preciso é ter um olhar diferenciado para avaliar essa criança e trabalhar com ela, identificando suas potencialidades e habilidades. “As escolas de hoje são muito conteudistas. É preciso mudar a forma de ensinar para mudar as formas de aprender. É preconceito achar que todos aprendem igual. Existem diferentes formas de promover o desenvolvimento da criança”, diz ela.

Capacitação dos professores – sem preconceitos

Para lidar com a inclusão de Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais (PNEEs), é preciso abandonar a idéia equivocada de que o professor tem que se preparar para atender alunos com deficiência. Segundo Maria Tereza Matoan não existem métodos de ensino especiais para se ensinar os conteúdos curriculares para esses alunos. “O professor não tem que aprender como ensinar matemática para alunos com deficiência. Ele tem de se preparar para atender a todas as crianças. O ensino escolar vai mal porque a escola continua repetindo no século XXI o que foi a escola do século XVIII", aponta a psicóloga. Ainda segundo ela, a preparação dos professores comuns deve passar pela naturalização de seus métodos, práticas de ensino, avaliações, entre outras tarefas, que estão muito defasados. “Por outro lado, os professores da educação especializada precisam também aprender a distinguir as suas funções das dos professores comuns, ensinando, sem repetir nas classes especiais, o que é próprio da escola comum, como acontece muito, até hoje, nas escolas especiais”, completa. Ainda segundo a psicóloga, as escolas estão sendo preparadas para receber esses alunos, a partir da presença deles nas escolas. “Aprendemos a fazer, fazendo”, diz ela. “É óbvio que se as crianças são segregadas em escolas especiais, não há necessidade de as escolas comuns se prepararem para recebê-las. Como agora, elas estão sendo encaminhadas às escolas comuns, tudo muda”, completa.

Jovens já inseridos no mercado de trabalho

Para a educadora Tânia Regina Laurindo, o primeiro passo da inclusão é entender e aceitar que cada criança tem um ritmo, tendo ela uma necessidade especial ou não. É preciso conhecer a criança sem o rótulo de uma doença. “Vivemos numa sociedade que impõe padrões e se a criança não se enquadra, ela está fora, fora do mundo, fora da escola. Para trabalhar com a criança com uma necessidade especial, seja ela qual for, física ou neurológica, o professor tem que se desprender do preconceito”, acredita. Além disso, a escola precisa de um bom projeto pedagógico. No projeto coordenado por Laurindo o conteúdo a ser ensinado é adaptado conforme a necessidade e o interesse do grupo. A escola recebe dois alunos portadores de necessidades especiais por sala com, no máximo, 25 alunos. “Não adianta trazer a criança para a escola e simplesmente colocá-la sentada na sala. Há que se desenvolver novas maneiras para atingir essa criança. Trabalhar com inclusão numa escola dizendo que todos devem abrir o livro na página tal pode excluir ao invés de incluir a criança com necessidades especiais, porque ela vai perder o interesse, vai se isolar”, acredita a coordenadora. Apesar das dificuldades, entretanto, a convivência com outras crianças é fundamental, porque isso permite à criança ter o referencial do outro. "Se ela convive só com crianças iguais, não pode aprender outros parâmetros de comportamento que não os de crianças como ela. Ao freqüentar a escola regular, portanto, ela tem ganhos sociais", explica Carmem Minuzzi da Fundação Síndrome de Down.

Outros transtornos

Freqüentar a escola regular favorece também o diagnóstico de problemas como o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Os padrões normativos do ambiente escolar são difíceis de ser acatados pela criança por exigirem maior compartilhamento social, definições de limites e maior atenção e concentração. Então a criança começa a ter problemas de adaptação e, por vezes, de aprendizagem. O TDAH é um transtorno mental de base neurobiológica, que afeta entre 3% a 6% das crianças e adolescentes. Não prestar atenção a detalhes, ter dificuldade de concentração, dificuldade de participar de tarefas que exijam esforço mental prolongado, ter facilidade em se distrair e perder objetos com freqüência são alguns dos sintomas que caracterizam o transtorno do déficit de atenção. A hiperatividade pode ser notada quando a criança se movimenta exageradamente, corre, pula demais, mexe mãos e pernas, especialmente em momentos inapropriados. Entre os sintomas, existem ainda os que caracterizam a impulsividade, como interromper conversas e dificuldade de esperar a sua vez.

As conseqüências do transtorno são cruéis: 90% apresentam desempenho escolar inferior ao das crianças da mesma faixa etária que não são portadoras do TDAH. Elas se sentem frustradas porque, por mais que se esforcem não conseguem acompanhar o ritmo dos colegas. Como eles têm atenção muito oscilante, não conseguem memorizar e absorver o aprendizado. Além disso, um dado surpreendente é que a taxa de punições disciplinares – suspensão e expulsão – que incidem sobre essas crianças no período escolar é três vezes maior que dos outros alunos. “Na escola há uma relutância quanto à aceitação do aluno que apresenta aspectos do TDAH. Existe uma tendência dos professores e colegas a estigmatizar essa criança e neutralizar sua participação nas atividades cotidianas da escola”, comenta Sebastião Rogério Góis Moreira, psicólogo e professor do Instituto Superior de Educação Anísio Teixeira (Fundação Helena Antiposs), em Minas Gerais.

No Brasil, o número de crianças e adolescentes que recebem tratamento para o TDAH é muito inferior ao estimado com base na prevalência estatística de 6%. Para o neurobiologista e pesquisador do Departamento de Neurologia da Unicamp, César Moraes, o déficit de atenção é um grande problema: a criança fica desligada, mas não conversa na aula, não atrapalha os colegas e professores. Um estudo realizado no Rio Grande do Sul constatou que entre 90 crianças com déficit de atenção, apenas três recebiam acompanhamento profissional. “A hiperatividade é percebida mais facilmente, porque incomoda”, comenta. O neurologista Erasmo Barbante Casella aponta a escola como o melhor lugar para avaliar a criança com TDAH, pois, como ela está no meio de outras 20, 30 crianças da mesma idade, seu desempenho e desenvolvimento podem ser comparados. “É preciso, no entanto, desenvolver um método educativo adequado às capacidades e limitações da criança com o transtorno”. O professor deve procurar se informar sobre o transtorno e é essencial que tenha acesso aos profissionais que diagnosticam e trabalham no tratamento de seus alunos, para poderem entendê-los e ajudá-los da melhor forma possível, trocando informações e tirando dúvidas.

Conhecendo a diversidade

Neivaldo Zovico tem 39 anos, é diretor regional da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), e vice-presidente do Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa Portadora de Deficiência. Ele nasceu surdo e freqüentou a escola regular e a escola especial ao mesmo tempo. Segundo ele, hoje o sistema de ensino começa a se organizar para ser acessível à criança surda. "Na época em que estudei não foi fácil. Eu tinha que acompanhar uma língua oral-auditiva, a língua dos meus colegas e professores, quando a minha língua é visual-motora. Era como se tivesse que estudar num outro país sem ter me iniciado na língua deles e sem intérprete", conta Neivaldo. A Lei Federal nº. 10.436, de 24 de abril de 2002, determinou que a Língua Brasileira de Sinais – Libras – é obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior e nos cursos de fonoaudiologia. O programa Interiorizando Libras e Braile, do MEC já capacitou 1,5 mil educadores desde 2003, e vai continuar no próximo ano. Dados preliminares do Censo de 2005 revelam a existência de 66.261 alunos com problemas de surdez, matriculados na educação básica. Para Neivaldo além do aprendizado da língua de sinais ou do uso de próteses auditivas são necessários outros recursos para facilitar e incluir a criança surda na escola como sinais luminosos, telefones especiais para surdos, entre outros. Ainda segundo ele, as dificuldades de inclusão de crianças surdas são maiores fora das capitais porque há muitos lugares onde não há atendimento diferenciado para crianças com deficiência auditiva nem em escolas especiais, nem em escolas regulares. "Aluno surdo sem atendimento acaba reforçando uma imagem negativa da deficiência, aumentando o preconceito", aponta Neivaldo.

A tecnologia facilitando a inclusão

As tecnologias de informação e comunicação podem abrir novas janelas às PNEE's. Segundo a pesquisadora Lucila Santarosa, do Núcleo de Informática na Educação Especial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (Niee), ambientes digitais de aprendizagem amenizam a discriminação social, criando oportunidades para pessoas cujos padrões de aprendizagem não seguem quadros típicos de desenvolvimento. A equipe do Niee desenvolveu o ambiente Edukito com objetivo de propiciar a inclusão digital. "A estrutura foi pensada de forma a permitir que o aluno participe, de acordo com suas possibilidades e habilidades, de um projeto de aprendizagem auxiliado por um mediador, através da ação, comunicação e reflexão", diz Santarosa em trabalho apresentado no VII Congresso Iberoamericano de Informática Educativa. Os recursos foram construídos pensando na inclusão de pessoas não alfabetizadas e pessoas que utilizem a Linguagem Brasileira de Sinais. O Edukito foi colocado em uso em 2003, com alunos com paralisia cerebral, deficiência mental, deficiência auditiva e visual, e autismo. "O ambiente destaca-se pela simplicidade da interface gráfica, mantendo a mesma disposição de cores com ícones grandes e pouca poluição visual para evitar a distração em detalhes. Isso preserva os aspectos de acessibilidade ao ambiente e às ferramentas", explica Santarosa. Para ela, a tecnologia pode ser usada como uma prótese física e mental cujo objetivo é ajudar os sujeitos a se apropriar do conhecimento com maior facilidade, contribuindo para proporcionar às PNEEs maior independência, qualidade de vida e inclusão. "Estudos mostram que pessoas limitadas por deficiências não são menos desenvolvidas, mas se desenvolvem de forma diferente", conclui.