Todos
concordamos, ou ao menos tendemos a concordar, que a ciência contribui, de uma
forma ou de outra, para a melhoria da qualidade de vida no planeta, embora seja
também verdade que a desconfiança das populações não tenha deixado de
acompanhar o desenvolvimento científico e as aplicações do conhecimento na
geração das novas tecnologias e das inovações que se incorporam com frequência
cada vez maior ao cotidiano de nossas vidas.
Além dos
aspectos ligados ao bem-estar social que a ciência pode acarretar, na forma das
facilidades que pode oferecer através de suas aplicações tecnológicas e
inovativas, há outra espécie de conforto que diz respeito às relações da
sociedade com as tecnociências, que envolve valores e atitudes, hábitos e
informações, com o pressuposto de uma participação ativamente crítica dessa
sociedade no conjunto dessas relações. A esse tipo de conforto chamo bem-estar
cultural, como já tratei em outro artigo ("Ciência e bem-estar cultural", publicado no número 119 da revista eletrônica ComCiência).
A química,
disciplina fundadora da ciência moderna, segue os preceitos acima mencionados,
há muito gerando conhecimentos que promovem o desenvolvimento científico e a
melhoria da qualidade de vida da população, ao mesmo tempo em que é vista, em
algumas épocas, e em todas as épocas, por alguns, com certa desconfiança, como
se, por si só, a química pudesse oferecer algum risco ou se configurasse como
uma ameaça. Não obstante os usos que são ou foram feitos da química e de seus
produtos científicos e tecnológicos, a Organização das Nações Unidas (ONU)
proclamou 2011 como o Ano Internacional da Química, pelos inúmeros benefícios
da química para a humanidade, e com o propósito de celebrá-la no mundo todo.
No livro Dez
teorias que comoveram o mundo, de Leonardo Moledo e Esteban Magnani,
publicado no Brasil pela Editora da Unicamp, em 2009, em tradução do original
argentino, de 2006, a
química é reverenciada por meio de uma descoberta que não somente mudou os
rumos da própria química, mas que representa também um dos marcos da ciência
moderna. Entre as teorias escolhidas pelos autores, como o
heliocentrismo, a gravitação universal, o evolucionismo, a teoria atômica, a
teoria da infecção microbiana, a relatividade, a teoria da deriva continental,
a genética e o Big Bang, está ainda elencada a teoria da combustão. Lavoisier,
ao anunciar que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma,
criando o enunciado do princípio de conservação da matéria, resolveu um
importante problema para os pesquisadores da área: a natureza da combustão. E,
de quebra, afetou os rumos, porque não dizer, da própria humanidade, no sentido
de transformação do conhecimento acumulado até então.
Com a sua
descoberta, o químico francês entra no paradoxo da comovente história do
conhecimento que, a meu ver, seria simples e transitória como é definitiva e
complexa a provisoriedade da vida. Conhecer é um ato de coragem que nos leva,
de pergunta em pergunta ao confronto de alternativas: ou recusamos o
conhecimento como dado, ou nos aventuramos no que nos é dado a conhecer. Neste
caso, ainda que a biblioteca de nossos conhecimentos seja “periódica”, ela será
também “ilimitada” como enunciou Borges sobre a Babel;
no outro, seremos somente definitivos e limitados pelos muros abertos do
labirinto de areia do deserto de informações.
Há, assim, pelo
menos dois modos de conhecer: aquele que nos abandona e nos perde na
“planitude” da informação acumulada (termo elaborado no texto “A
invenção da planitude”, publicado no número 120 da revista ComCiência),
tornando-nos sábios-sabidos; aquele que, mantendo-nos em estado de ignorância
crítica – o que chamei em outro artigo (“Ciência
e bem-estar cultural”) de ignorância cultural –, nos leva a desconfiar da
miragem benfazeja do conhecimento dado e nos põe em constante estado de alerta
para o que vem pronto, plano e amiúde, vale dizer, os monumentos instantâneos
das certezas passageiras.
Neste caso, é
muito provável que todos não sejamos sábios; é certo, contudo, que teremos
sabedoria – a sabedoria paradoxal que quanto mais aumenta, mais nos faz crescer
em conhecimento e mais nos diminui o conforto passivo das situações objetivas e
subjetivas de cada conquista ética e cultural.
A Organização
das Nações Unidas (ONU) escolheu, com feliz acerto, marcar 2011 como o Ano
Internacional da Química, dado que ele é também o ano do centenário do Nobel
que Marie Curie recebeu pela descoberta dos elementos químicos rádio e polônio,
depois de haver já recebido, com seu marido Pierre Curie, em 1903, o Nobel de
física por suas pesquisas no campo da radioatividade.
São muitas as
publicações e comemorações neste ano desse modo singularizado pela ONU para
enfatizar os grandes avanços e conquistas da ciência através de uma de suas
expressões mais sofisticadas e mais importantes no campo do conhecimento.
O próprio Labjor
já esteve presente nessas homenagens pelas publicações a ele ligadas, direta ou
indiretamente, como é caso da edição, ano 63, n. 1, jan/fev/mar/2011, da
revista Ciência & Cultura,
dedicado ao tema e da edição n.8, fev/2011, da revista Pré-univesp,
onde, aliás, parte deste texto foi também publicado como editorial.
A importância da
química é tão grande para a história do conhecimento e, portanto, para o
bem-estar cultural da humanidade, além, é claro de sua enorme relevância para as
transformações sociais de nossa história, que, de algum modo, é possível
afirmar que o pensamento antropológico, característico do homem moderno, não
seria possível sem a descoberta e as descobertas da química.
Com a química,
firmam-se também a revolução industrial e todas as consequências econômicas,
políticas e culturais dela advindas no plano da organização da vida social no
mundo moderno.
Hoje, a química,
seguindo a tendência epistemológica de agregação de áreas do conhecimento
científico para a formação de novas áreas com características
multidisciplinares predominantes, evolui para a constituição de campos do saber com os quais ela se encontra, por exemplo, a física, a biologia, a farmacêutica,
a medicina, a genética, a genômica, a proteômica, e uma grande variedade de
estudos e pesquisas em nanociências e nanotecnologias.
Nos cem anos do
Nobel de química de Marie Curie, o primeiro ano da celebração da dinâmica
permanente de uma forma de conhecimento que se tornou definitiva nos processos
culturais de permanência e transformação do homem, da natureza e de suas
relações.
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