REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Parábola do cão digital - Carlos Vogt
Reportagens
Computação cognitiva: capturando corações, mentes e paladares
Roberto Takata
Memória artificial: sobre dados, vigilantes e vigiados
Kátia Kishi
Big Data traz demandas grandes à saúde
Patrícia Santos
A arte que trafega em dados
Janaína Quitério
As novas tecnologias em uso na agricultura: integrar dados para produzir com eficiência
Carolina Medeiros
Artigos
Ciência de dados: desafio para a ciência, indústria e governo
Artur Ziviani, Fábio Porto e Eduardo Ogasawara
Big data e jornalismo: datasets, APIs, algoritmos e sensores
Walter Teixeira Lima Junior
Big data e as capacidades de gestão da informação
Antônio Carlos Gastaud Maçada, Rafael Alfonso Brinkhues, José Carlos Freitas Júnior
Representação e análise de dados espaço-temporais
Karine Reis Ferreira
O céu é dos robôs
Ana Paula Zaguetto
Resenha
Decifrando códigos
Fabiana Micaele Silva
Entrevista
Danilo Doneda
Entrevistado por Sarah Schmidt
Poema
Campeão
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
O céu é dos robôs
Por Ana Paula Zaguetto
10/07/2015


Prove que você não é um robô. Essa é uma das frases que costumam aparecer em testes de CAPTCHA, acrônimo que significa “Teste de Turing público completamente automatizado para distinguir computadores de seres humanos”. Esses testes aparecem quando, por exemplo, vamos enviar um formulário ou queremos acessar um site e precisamos decifrar letras e/ou números distorcidos e digitá-los em um campo de texto. Ao obter sucesso nessa tarefa, provamos que somos um humano e não um robô. Os robôs da internet são programas automatizados que podem ser criados para roubar informações, gerar spam ou sobrecarga em um site. Os testes de CAPTCHA têm, portanto, o objetivo de prevenir esses tipos de ações. Mas existem outros tipos de robôs, como o Googlebot que rastreia as páginas da internet e suas atualizações para indexá-las ao sistema de busca do Google. Uma pesquisa de 2014, da empresa Incapsula, indicou que os robôs são responsáveis por 56% do tráfego na internet, superando o de humanos.

Foi pensando sobre esse cenário que nasceu o vídeo “o céu é dos robôs”, realizado como parte do projeto da bolsa Mídia Ciência1 para divulgação da Rede Lavits de estudos sobre vigilância e tecnologia. Como chegamos ao ponto de precisarmos provar que somos humanos? O que nos distingue dos robôs é nossa capacidade de compreender letras distorcidas (o ruído na comunicação)? O que isso tem a ver com vigilância e big data? Essas perguntas foram o ponto de partida para a elaboração do vídeo e buscarei aqui mostrar o percurso realizado para respondê-las, “jogando dados em livre pensar”2. Uma colagem de ideias, teorias, análises, histórias e mitos que resultou em uma narrativa sobre céu, inferno e: o que vem depois? Uma narrativa menos preocupada com o rigor científico do que com a construção da trajetória de um herói desafiado a provar sua humanidade.

A palavra robô deriva do tcheco “robota”, que significa trabalho forçado. O dicionário Aurélio fornece três definições para robô: “aparelho capaz de agir de maneira automática numa dada função, autômato com figura humana e indivíduo que obedece mecanicamente”. Trabalho forçado, maneira automática, figura humana, obedece mecanicamente. Impossível não se lembrar do filme Tempos modernos, de Charles Chaplin, “uma história sobre a indústria, a iniciativa privada – a cruzada da humanidade em busca da felicidade” (frase que abre o filme). Lá, em 1936, as máquinas já tomavam o lugar de humanos na produção industrial, submetiam o trabalhador ao seu ritmo de operação e acabavam por engoli-lo em suas engrenagens. 

Tempos modernos – tempos de uma sociedade arrebatada pelo progresso. A ideia de progresso desenvolve-se a partir do século XV, com o nascimento da imprensa e da ciência moderna (Copérnico, Galileu, Newton, Descartes), com o crescimento do comércio e da indústria e com as Luzes (o pensamento iluminista). É na euforia econômica do século XIX, momento conhecido na história da Europa como belle époque, que a ideia de progresso se espalha por toda a sociedade, através da experiência cotidiana das transformações materiais promovidas pela economia, ciência e técnica. Antes da modernidade, o Cristianismo já havia rompido com a concepção cíclica do tempo e dado um sentido linear à história (o fim: a chegada do reino dos justos ao lado de Deus). Com o progresso, a história continua linear e com uma orientação definida: sempre para frente e sempre mais3. Mais conhecimento, mais produção econômica, mais tecnologia, e assim chegaríamos ao paraíso. 

A matemática torna-se a base do conhecimento científico, onde conhecer significa quantificar, dividir, classificar e determinar relações sistemáticas entre os elementos separados. A economia se sobrepõe às demais esferas da sociedade (Estado, cultura, interações sociais) e transforma a ciência em sua principal força produtiva. A crença em Deus é substituída pela confiança na razão: o mundo se desencanta e se transforma em máquina. A racionalidade científica busca as leis que regem o mundo-máquina, ordenado e estável. Conhecendo suas leis, é possível transformá-lo através da tecnologia movida pelo dinheiro – ordem e progresso. “A ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação tecnológica do real”4.   

E nascem os meios de comunicação de massa! E esses meios criam os limites dentro do qual a esfera pública existe, aquele lugar onde são debatidos os temas de interesse público. Em sua origem, o jornalismo já servia como meio de circulação de informações relevantes para o mercado e não demora para que a própria informação se transforme em mercadoria, assim como toda a produção dos meios de comunicação de massa (orientados para o lucro). Nessa esfera, um meio adquire supremacia sobre os demais: a televisão. Fluxo ininterrupto de imagens, janela do mundo, onde a “realidade se veste para dar-se a ver”, “o altar contemporâneo da verdade factual possível”5. O que passa pela televisão recebe o carimbo de veracidade. Cria um padrão de percepção do tempo e do espaço: instantaneidade e ubiquidade, o tempo se acelera e o mundo todo está ao nosso alcance, aqui e agora. 

E o indivíduo, o herói dessa história, onde está? Está trabalhando, muito. E fazendo todas as outras coisas no tempo que sobra. O trabalho é seu meio de progredir em uma sociedade que vende a ideia da livre iniciativa, do self made man. Tudo que deseja para ser feliz será conquistado pelo trabalho e acredita ser dono de seus desejos, afinal, é um ser racional – e o seu desejo é consumir. Mas o consumo de mercadorias (seja um sapato, uma viagem ou uma revista) não se dá apenas pela sua utilidade. As coisas que consumimos nos ajudam a construir nossa identidade, quem somos nesse mundo. O que atribui esse valor à mercadoria é a publicidade, o local de encontro entre a produção material e o imaginário. 

Criando esse imaginário, está a cultura, que pode ser definida como as histórias que a sociedade conta sobre si mesma. Este é um texto que está contando uma determinada história sobre a sociedade. O jornalismo conta muitas histórias diferentes, assim como as ciências, as religiões e as novelas. A publicidade também conta histórias em 30 segundos: a história do homem que comprou um carro e conquistou todas as mulheres, a famigerada história da família que é feliz porque come margarina ou a mulher que comprou um absorvente e ficou mais atraente. Provavelmente, essas histórias da publicidade são as que mais estamos expostos e elas não nos dizem apenas o que a mercadoria nos permitirá ser, mas também como devemos ser. Elas dizem como é um homem ou uma mulher atraente e uma família feliz. E compramos para nos tornarmos essa mulher, homem ou família. 

A publicidade se infiltra em outros domínios. Sua maneira de promover mercadorias transforma a maneira do jornalismo, da ciência, da religião ou dos candidatos em uma eleição se promoverem. A lógica do mercado e do trabalho também se espalha por todas as esferas, do Estado ao nosso corpo. Sem nos darmos conta, estamos gerenciando e planejando para aumentar a produtividade e a performance e atingir metas, na viagem de férias, na alimentação, nos exercícios físicos, na educação dos filhos. Faça tudo como se estivesse trabalhando e você nunca saberá quando está trabalhando. Tudo para progredir e ser feliz. Onde estamos, o que temos, o que somos nunca é suficiente. É sempre preciso nos superar, sendo mais, tendo mais, trabalhando mais. “Mas é que tornar-se humano pode se transformar em ideal, e sufocar-se de acréscimos...”6.

Tantos acréscimos que já não basta ser humano: seremos super-humanos. É o que pretende o transhumanismo, e o meio para se chegar lá é a tecnologia. Com ela, alcançaremos os 3 super’s: super longevidade, super inteligência e super bem-estar. Será encontrada uma cura para a “doença” do envelhecimento, mudaremos nossos corpos para nos integrar aos computadores e ter acesso a uma inteligência artificial (superior à nossa) e eliminaremos todo o sofrimento através da modificação dos genes. Chegaremos ao paraíso. Mas é bom lembrar que para estar no paraíso é preciso obedecer a Deus. A tecnologia transforma o que é ordenado e estável.

Matamos um Deus para criar outro – TecnoDeus. Uma religião da tecnologia, onde o ciberespaço seria “um espaço sagrado que traria imortalidade e onisciência numa fusão gnóstica entre o self e o divino reino da informação”. Fusão possível porque os humanos, assim como as máquinas, seriam feitos de informação. E nessa religião já estamos sendo convertidos sem saber. Uma das vertentes do transhumanismo, a singularidade, tem entre seus defensores grandes empresas de tecnologia, como o Google7. Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, declarou que espera saber da ciência como poderemos viver para sempre, como aprender “um milhão de vezes mais” e se há uma lei fundamental na matemática que rege os relacionamentos humanos. Ainda não chegamos a esse paraíso super-humano, mas já vivemos no ciberespaço e um dos seus ambientes mais frequentados é o Facebook, com 1,4 bilhão de usuários. Para nós, uma rede social, para Zuckerberg, uma máquina de vender publicidade (modelos de negócio baseados na venda de espaço publicitário sãos comuns nos casos de serviços gratuitos). 

O Facebook lucra com a venda de publicidade direcionada, que são os posts patrocinados e os anúncios. Uma empresa pode escolher um perfil bastante detalhado como alvo de sua publicidade, o que aumenta suas chances de atingir o público que tem interesse por seu produto. Isso é possível graças ao big data do Facebook, alimentado a todo instante com informações sobre nossas preferências e nosso comportamento. Esse imenso banco de dados é construído com informações que fornecemos quando escrevemos um post, curtimos uma foto, compartilhamos um conteúdo ou adicionamos uma nova pessoa como amiga. Além dessas, muitas outras informações são coletadas por meio da vigilância de cada movimento que fazemos por lá, como os perfis que visitamos, links que clicamos e até mesmo quanto tempo passamos olhando um vídeo ou post. E não é apenas dentro de seus limites que ele nos vigia, seguindo nossos passos também por outros sites. Informações sobre nós são a matéria prima usada para conhecer, classificar e perfilizar, criando o produto que será vendido aos anunciantes.

Outra característica da rede social é o algoritmo que filtra quais postagens iremos ver no feed de notícias e para quem e quantas pessoas nossas postagens irão aparecer. O Facebook costuma revelar apenas alguns detalhes sobre o funcionamento do algoritmo, tornando-se difícil saber como são selecionados os conteúdos que vemos. Alguns critérios conhecidos são a popularidade de uma postagem (medida pelo número de curtidas, compartilhamento e comentários), a interação entre os usuários (quanto mais interação com um perfil, mais seus conteúdos irão aparecer no feed) e a prevalência de fotos e vídeos sobre textos e links. É importante para o Facebook oferecer conteúdo que interesse ao usuário, aumentando, assim, sua atividade na rede, o que irá incrementar o seu banco de dados.

Voltando ao herói da história, o que ele está fazendo no Facebook? Trabalhando, muito, mas também consumindo publicidade e sendo consumido, através da publicidade que constrói de si mesmo, relacionando-se e sendo visível aos olhos dos outros, enfim, existindo. O herói também quer ir para o céu. Ele, que passou tanto tempo apenas olhando para a televisão e o que podia fazer para ser como as pessoas que lá estavam era consumir as mercadorias que remetiam àquelas imagens, agora pode ser a própria imagem. E para ser, trabalha para o Facebook, fornecendo informação. Ao mesmo tempo que, em busca da visibilidade, vai aprendendo as regras do jogo. Aprende a estética da foto, quais conteúdos ganham mais curtidas e aprende que quanto mais interage com os outros mais visível se torna. A objetividade dos números unidos à estética Instagram.

Não é por acaso a preferência do algoritmo por fotos e vídeos. Ele sabe o poder da imagem. Cada cultura produz os critérios do que é real e não-real e a nossa coloca um sinal de igualdade entre visibilidade, realidade e verdade. Como o mercado estabelece cada vez mais como essas imagens devem ser, surge uma nova equação: invendável = irreal. Só é real o que pode ser consumido (ou curtido). Corremos o risco ainda de que se crie a igualdade entre verdadeiro, belo e bem, um valor totalitário que pode limitar as possibilidades de escapar à norma social8

E como escapar desse processo que iguala e padroniza todos em números e imagens? Onde está o humano? Como conquistar a autonomia sobre a própria vida? A serpente diz para comer a maçã (e comê-la custará sair do paraíso). Mas Deus quando proibiu o homem de comer a maçã sabia que ele acabaria comendo o fruto proibido: “só procedendo assim é que o homem poderia se tornar o iniciador de sua própria vida. A vida, na realidade, começou com aquele ato de desobediência”9. Deus sabe o que faz.

Desobedecer – ser invisível? Ser invisível para poder conhecer os espaços invisíveis do dentro de nós e do mundo, aquilo que não serve para ser vendido, o que não pode se transformar em imagem nem ser quantificado. Adentrar-se no inferno da invisibilidade, o escuro alegre, onde não há padrões pré-estabelecidos, onde tudo é aventura e descoberta. Correr o risco de não existir e assim existir cada vez mais. “O inferno é o meu máximo”10.

Ana Paula Zaguetto é bacharel em produção audiovisual pela UFSCar, especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp e mestre em ciências pelo programa de Ecologia Aplicada Interunidades ESALQ/CENA da USP.


Notas e referências bibliográficas

1
Programa de bolsas da Fapesp voltado à formação de profissionais para lidar com temas de ciência, tecnologia e inovação.

2 Vogt, Carlos. “Pop Science”. Revista ComCiência, nº 156 (Teorias do Universo), 10/03/2014.

3 Le Goff, Jacques. História e memória. Editora Unicamp, 1990.

4 Sousa Santos, Boaventura de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Cortez, 2002.

5 Bucci, Eugênio. “Televisão objeto: a crítica e suas questões de método”.  Tese de doutorado. Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 2002.

6 Lispector, Clarice. A paixão segundo G. H.. Editora Rocco, 1998.

7 Evangelista, Rafael. “Singularidade: de humanos feitos simples máquinas em rede”. Revista ComCiência, nº 131 (Tecnologia: o simples e o complexo), 10/09/2011

8 Debray, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Vozes, 1993.

9 Campbell, Joseph. O poder do mito. Palas Athena, 1990.

10 Lispector, Clarice. A paixão segundo G. H.. Editora Rocco, 1998.