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Reportagem
Cidade planejada, cidade-global, cidade-modelo: qual é a sua capital?
Por Alessandra Pancetti
10/05/2010

O cenário urbano atual nos revela uma grande variedade de espaços, frutos do processo histórico e cultural ao qual as sociedades foram submetidas. Essa grande diversidade de ambientes também revela os seus sujeitos: agentes modificadores ou agentes passivos de uma realidade urbana em constante transformação – mas que talvez, afinal, não se transforme o suficiente. Nessa perspectiva, por um lado, o planejamento das cidades pode ser entendido como um sinal de desenvolvimento e progresso, pois carrega as ideias de valorização do ambiente público, preocupação com o bem-estar humano, respeito ambiental e integração de espaços e habitantes. Exemplos de capitais planejadas no Brasil, além de Brasília, são Belo Horizonte, Goiânia e Palmas – e Curitiba, embora não tenha sido planejada, foi reestruturada em uma iniciativa da prefeitura da cidade que ficou reconhecida mundialmente. Entretanto, o planejamento de cidades é composto por múltiplos fatores sociais, políticos e econômicos, que se estendem muito além dos planos estabelecidos pelo projeto inicial. Na realidade, a história nos mostra que esse planejamento, ainda que aparentemente envolto pelas mais nobres intenções, sofre de ambiguidades, deixando marcas profundas nas cidades e em seus habitantes.

Para o professor Ricardo Mendes Antas Jr., da Universidade de São Paulo (USP), existe uma grande mistificação em torno das cidades planejadas – o que também leva à mistificação da falta de planejamento das demais cidades no Brasil. Essa imagem idealizada gera uma expectativa de que as cidades planejadas não devem enfrentar os problemas urbanos encontrados nas cidades não planejadas – como ocupações irregulares, ineficiente rede de água potável e esgoto, congestionamento em ruas e avenidas, entre outros – uma vez que “tudo” foi planejado e deveria estar previsto. “Mas a cidade começa a existir quando as pessoas mudam para lá, quando passam a nascer lá, quando essas pessoas inventam modos de ocupar e usar os espaços públicos, dando a eles uma significação própria, e também a inventar e reproduzir novos espaços privados”, diz o pesquisador da USP.

As cidades existem desde a antiguidade, mas é na modernidade que surge o urbanismo, a ciência da cidade. E é ainda no século XVIII, durante o Iluminismo, que se começa a relacionar o planejamento das cidades com a ciência, no caso, a medicina. O trabalho do médico inglês William Harvey sobre a circulação arterial e venosa trouxe uma revolução de ideias sobre o funcionamento do corpo, que depois iriam influenciar o capitalismo moderno e a noção de individualismo. Adam Smith, importante teórico do liberalismo econômico, viu um paralelo entre a circulação e o livre mercado, dinâmico, de bens e dinheiro – em contraponto com a propriedade fixa e estável, menos lucrativa. Essa influência também mudou as expectativas em relação ao espaço urbano. Nas palavras do historiador e sociólogo Richard Sennett: “Construtores e reformadores passaram a dar maior ênfase a tudo que facilitasse a liberdade de trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio, imaginando uma cidade de artérias e veias contínuas, através do quais os habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos no plasma saudável”.

Dentro da lógica da circulação de pessoas e mercadorias, e dentro do crescimento do capitalismo na civilização ocidental, foram também crescendo as cidades. Segundo o pesquisador Adão Francisco de Oliveira, do Observatório das Metrópoles, “o planejamento urbano encerra uma lógica eminentemente capitalista, uma vez que o seu empreendimento visa racionalizar o ordenamento do território no sentido de nele sedimentar todas as possibilidades para a realização do mercado”. Essa lógica de mercado, no entanto, não ficaria explícita na sua concepção, mas sim a ideia de “desenvolvimento”, de “crescimento” econômico, urbano, territorial. Oliveira cita a construção de São Petesburgo, na Rússia, “que visou erigir num pântano o maior símbolo da modernidade”. “A cidade deveria servir de símbolo não apenas para a Rússia de que esta poderia também ser moderna (que, na acepção da palavra, implica em ser capitalista), mas que essa modernidade cabia a todo o Oriente”, afirma.

No Brasil, o planejamento de três grandes capitais, Goiânia em 1930, Brasília em 1960 e Palmas em 1990, foi feito de acordo com premissas econômicas. “E ssas cidades serviram de bastiões para as intenções de integração econômica das potencialidades dos biomas sertanejos, articulando o Centro-Sul do país ao Norte amazônico pelo eixo norte-sul possível, através do velho estado de Goiás”, explica Oliveira. Segundo ele, mesmo a boa intenção de seus projetistas não conseguiu prevenir a lógica mercadológica do seu desenvolvimento. Dessa forma, as camadas mais pobres foram atraídas e integradas a esses sítios como mão-de-obra, inicialmente na construção civil. Por conta de seu baixo poder aquisitivo, esse grupo acabou por estabelecer-se em áreas afastadas e não urbanizadas. “É o movimento da integração excludente, que caracteriza as cidades planejadas enquanto artefatos capitalistas, colocando os pobres trabalhadores em territórios segregados e marginais”, completa.

O planejamento de Goiânia, assim como o de Brasília, trinta anos mais tarde, foi feito exclusivamente pelo Estado, num momento característico do “desenvolvimentismo” do Brasil, segundo afirma Oliveira, no artigo “ A reprodução do espaço urbano de Goiânia: uma cidade para o capital”. “ O planejamento, a organização, a disposição de recursos e as construções foram exercidos pelo Estado, que dispôs de serviços de empresas particulares atuando sob seu controle”, escreve o pesquisador. Oliveira identifica três períodos distintos na formação de Goiânia: o primeiro, fortemente controlado pelo Estado, situa-se entre a construção da cidade e o final do Estado Novo, quando ainda existiam muito lotes com preços acessíveis às camadas populares; o segundo, de 1947 a 1968, quando a montagem da infraestrutura nos loteamentos deixou de ser obrigatório, começaram os parcelamentos privados e teve início a especulação imobiliária e divisão do espaço urbano pelas diferentes classes sociais; e, finalmente, o terceiro período, na década de 1970, onde o parcelamento do solo foi feito segundo as diretrizes de desenvolvimento do regime militar, de intervenção nas áreas econômica e social. Os serviços de infraestrutura básica voltaram a ser obrigatórios para os loteamentos, e a lógica das divisões do solo passa a ser a do lucro para a indústria da construção civil.

Por sua vez, a construção de Palmas, durante a década de 1990, teve a divisão do espaço e a segregação das populações mais carentes exercidas pelo próprio Estado através das políticas adotadas para sua ocupação e urbanização. Segundo artigo de Faida Kran e Frederico Ferreira, o espaço foi sendo ocupado aos poucos e de forma descontínua, de maneira que vários lotes que a princípio ficaram desocupados foram depois utilizados na exploração imobiliária. Portanto, foram essas mesmas políticas de ocupação que terminaram por legitimar a segregação socioespacial que ocorreu na formação da cidade. “ A expansão periférica e a segregação socioespacial foram instituídas pelo próprio poder público, num processo legitimado através de legislações urbanísticas, de políticas de ocupação e, indiretamente, pelos investimentos em infraestrutura e serviços urbanos”, afirmam. Adão Oliveira, do Observatório de Metrópoles, completa: “ Desde Goiânia –podendo ainda e inclusive se considerar Belo Horizonte, 35 anos antes daquela – até Palmas, prevaleceram como orientações o pensamento modernista, os traçados da cidade-jardim e o ideário socialista de integração das comunidades. Não obstante, a finalidade primeira de construção dessas cidades foi preparar o território dentro de um determinado raio para a integração regional e a expansão de determinadas atividades de mercado”.

A concepção das cidades, entretanto, não se dá apenas nos seus planos arquitetônicos e urbanísticos: hoje, ela também pode estar no papel que esta cidade assume, ou busca assumir, em uma comunidade maior – em seu próprio país ou no mundo. Com o advento da globalização, no final da década de 1980, um novo conceito de cidade surgiu, o da “cidade-global”. Ricardo Antas, da USP, explica que as cidades-globais surgiram “ com a emergência das novas tecnologias da informação e comunicação associadas a uma grande transformação na economia mundial ”. Dessa forma, as cidades economicamente mais importantes passaram a comunicar-se intensamente, formando uma grande rede de comunicação que abrangia diversos setores e grupos sociais. “ Notou-se que começava a ocorrer uma instalação de centros de comandos dos grandes grupos transnacionais nessas cidades ‘nós' da rede, de modo que esses grupos aí instalados passaram a exercer o controle das suas plantas industriais ou produções agrícolas (de commodities, por exemplo) em uma vasta região que chega a transcender os limites territoriais de um Estado”, esclarece.

Para Antas, o termo “cidade-global” está cercado de alguma controvérsia, por ser uma expressão que “ passa uma noção de homogeneidade entre as cidades assim qualificadas, que não corresponde aos fatos”. Mesmo assim, existe certa semelhança entre essas cidades em seus “espaços de globalização”, “na estrutura de classe dos grupos envolvidos e, principalmente, pelo fato de encontrarmos quase sempre os mesmos grandes agentes da economia global ali instalados”, diz o professor da USP. “Portanto, o que leva uma cidade a ser chamada de global é a capacidade que existe nela, numa parte dela, de produzir, armazenar e gerenciar um alto volume de informações”, completa.

O fato de ser ou não ser uma cidade-global não é algo que apareça necessariamente no “projeto” da cidade, mas sim em seus planos de inserção e reestruturação que podem surgir a partir dessa demanda atual. No caso de uma capital planejada antiga, como Belo Horizonte (construída em 1897 para ser a capital administrativa do território mineiro ), Antas explica que, na época, “ nem se imaginava que o sistema capitalista chegaria a ter como elemento central da sua reprodução a informação”. Entretanto, explica o pesquisador, “isso não impede que Belo Horizonte ou qualquer outra grande cidade venha a ter seus espaços da globalização e se inserir na dinâmica global, pois ela pode ter determinados espaços da cidade preparados para isso. E aí, sim, o planejamento tem a ver com as cidades globais”, diz.

Dentro do espírito do mundo globalizado, já na década de 1990, surgiram também as “cidades-modelo”. A primeira cidade nessa categoria foi, sem dúvida, Barcelona, que passou por um processo de reestruturação e renovação de sua imagem a partir de 1986, por conta dos Jogos Olímpicos de 1992, dos quais foi sede. Nessa época, a cidade passou por várias melhorias, como em sua infraestrutura e na preservação de prédios históricos, e assim, foi projetada internacionalmente, principalmente através das Olimpíadas. As principais ações adotadas para a reestruturação foram a realocação do porto de Barcelona e da população que vivia na região central para a periferia da cidade. O “modelo Barcelona” transformou uma cidade portuária em um dos principais destinos turísticos europeus, através de um projeto de desenvolvimento tão bem sucedido que muitos ainda hoje tentam copiar.

Da mesma forma que foi instituído o “modelo Barcelona” na Europa, aqui no Brasil instituiu-se o “modelo Curitiba”. Como explica a pesquisadora Rosa Moura, em seu artigo “O turismo no projeto de internacionalização da imagem de Curitiba”, a cidade passou por mais de 40 anos de implementações contínuas. Investindo em ideias consideradas sustentáveis, a cidade foi reestruturada, tornando-se modelo em planejamento e gestão, e não somente conhecida, mas também uma referência mundial nesses assuntos. Neste ano, foi a cidade escolhida para receber o Globe Award Sustainable City 2010, prêmio oferecido pela entidade sueca Globe Fórum pelos incentivos nessa área. O modelo adotado para transporte público na cidade é, certamente, uma das implementações consideradas mais bem sucedidas e conhecidas. Segundo texto de Luiz Massaru Hayakawa, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, publicado no site do Local Governments for Susteinability (ICLEI Global), “embora tenha mais proprietários de veículos per capita do que qualquer outra cidade do Brasil, e a população tenha dobrado desde 1974, o trânsito caiu em 30% e a poluição atmosférica é a mais baixa do Brasil”. Além disso, Curitiba possui 200 kilômetros de ciclovias e uma extensa área verde, que chega a ser 1/5 da cidade.

Dessa forma, muitas cidades, na atualidade, procuram sua inserção em um mundo cada vez menor. Os modelos de gestão considerados bem sucedidos recebem aprovação internacional, inserindo-as no “mapa” e gerando apoio de capital externo. Por seu lado, os planos de reestruturação buscam resgatar a cultura e a história locais, tornando essas cidades únicas – por suas premiadas iniciativas de sustentabilidade e qualidade de vida e por sua história e cultura – o que lhes confere grande potencial turístico, fator importante para sua economia. Como coloca a pesquisadora Fernanda Sánchez, as cidades-modelo também podem ser vistas como “cidades-mercadoria” (leia mais em seu artigo na Revista de Sociologia e Política). Para a autora, as cidades-modelo são o “produto do desenvolvimento do mundo da mercadoria, da realização do capitalismo e do processo de globalização em sua fase atual”. Ou seja, ao mesmo tempo em que fornecem um estilo de vida próprio, também “vendem” esse modelo, tornando-se, elas mesmas, um produto.

Em cada uma de suas dimensões, os espaços urbanos vão se tornando um fruto e um sinal de seu tempo. Novos desafios surgem enquanto os antigos ainda buscam expressar-se. O planejamento das cidades – seja em sua concepção original, seja através da própria reorganização na forma como o mundo se globaliza – nem sempre consegue prever como todos os fatores envolvidos vão se estabelecer. Mas uma coisa parece certa: a questão social, que se reflete na segregação e no descaso em relação aos extratos sociais menos favorecidos, problema corrente em muitas cidades brasileiras, deve ser abordada com mais perseverança e clareza. Não existe democracia sem que todas as camadas da população sejam incluídas no processo decisório – e é importante que o poder público esteja ciente de seu papel para que isso de fato ocorra. A inclusão social é importante, assim como a participação de todas as camadas sociais nos processos decisórios de suas cidades. Segundo Adão de Oliveira, do Observatório das Metrópoles, a melhor opção para vencer essas desigualdades é um governo com “verdadeira vocação democrática” e uma população participativa, “a partir inclusive do movimento social para a sua reivindicação”. “Essa coincidência é o tempero essencial para que a cultura cívica tome a forma da consciência social nessas cidades”, completa.

Leia mais

Carne e Pedra: O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental, de Richard Sennett. Rio de Janeiro: Record, 2008.