10/02/2008
Estamira é uma senhora de 63 anos que divide sua vida entre um barraco na velha Rio-Santos e o Aterro de Gramacho, onde se aventura tentando separar o que encontra de aproveitável e os materiais irremediavelmente podres e inúteis que lá ficarão acumulados. É atormentada por distúrbios mentais que a fazem ouvir vozes, ver coisas e ter acessos quase descontrolados de fúria. Tem três filhos, dois deles criados em parte com o dinheiro conseguido no lixão.
Marcos Prado, diretor do documentário que toma emprestado o nome dessa mulher, a conheceu fazendo fotos em Gramacho. Em troca de posar para alguns instantâneos, Estamira pediu que o então fotógrafo sentasse a seu lado e com ela conversasse por alguns minutos. Foi o suficiente para que Prado ficasse fascinado com o que, mais tarde, chamou de “cosmologia de Estamira”: a visão de mundo, misturada com delírios e juízos da personagem, que se indigna contra o “trocadilo”, o “poderoso ao contrário” e que vê as estrelas e a Lua presentes aqui na Terra, sendo o céu apenas um reflexo, espelho do que está embaixo.
Não é um filme fácil. Os vinte primeiros minutos são dedicados exclusivamente aos delírios da personagem, tendo o lixão como cenário. Em belas cenas filmadas ora no preto e branco de uma Super 8, ora com o colorido vivo de uma câmera que parece publicitária, ouvimos a voz da personagem filosofar sobre o que se usa, o que se tem, o que se guarda e o que se joga fora, e vemos as primeiras imagens de seus companheiros de trabalho, outros idosos vivendo do lixo e com quem Estamira parece ter melhores relações do que com sua própria família.
É nesse início que encontramos, possivelmente, a chave para o filme. Diz Estamira sobre o que se encontra em Gramacho: “às vezes é só resto, às vezes vem, também, descuido”. Descobriremos depois que isso não vale apenas para os objetos que lá estão, mas também para as pessoas: no lixão circulam restos de vidas e pessoas que não foram cuidadas.
Marcos Prado nos leva então, vagarosamente, a entrar na história de vida e da loucura de Estamira. Foi levada a um prostíbulo pelas mãos do avô, aos 12 anos. Saída de lá aos 17 para casar-se, passou a ser traída pelo marido, após um breve período de estabilidade. Por meio de um novo casamento, foi parar no Rio de Janeiro. O novo marido, com quem teve o segundo filho, além de a trair, a fez internar em um hospício a própria mãe, também doente mental. Depois de intensas brigas com o marido, saiu de casa e sua primeira providência foi tirar a mãe do Hospital Pedro II, sanatório psiquiátrico reconhecido, até os anos 80, pelos maus tratos a seus pacientes. Foi, ainda, estuprada pelo menos duas vezes.
Depois disso tudo, passou a ter seus delírios. A mente parece ter encontrado uma trajetória de escape pelas alucinações.
Sua grande revolta é contra Deus e a religião. As cenas em que grita intensamente contra o filho, o neto, ou qualquer pessoa que fale em religião causam mal estar. Estamira indigna-se contra quem não cuidou do mundo, que permite que tudo esteja ao contrário, o “poderoso ao contrário”. Diz ser comunista. Não que queira que todos tenham o mesmo trabalho e comam a mesma coisa, mas que exista igualdade.
São os momentos coléricos de Estamira contra a religião que quebram, por minutos, a estetização que o filme faz, mesmo que involuntariamente, do lixão e da loucura. O vento forte, a chuva, o imenso espaço tomado pelo lixo em Gramacho, oferecem ao diretor a matéria-prima para construir – para o espectador que está confortavelmente sentado em sua poltrona e que não sente o mau cheiro, a sensação de insegurança, o frio ou o calor do lugar real – imagens belíssimas. Do mesmo modo, a paixão e a intensidade com que Estamira defende sua “cosmologia”, fazem com que a loucura possa ser lida pelo espectador como genial, filosófica, verdadeira e essencial.
No documentário propriamente dito, o objeto não é o lixo, e sim a vida e as relações de Estamira. Para quem quer conhecer mais sobre o lugar de trabalho da personagem mais interessante (ou inerentemente complementar) é o média metragem Estamira para todos e para ninguém, incluído no DVD duplo disponível nas locadoras. Nesse média-metragem, podemos ver traços da história de outros trabalhadores de Gramacho. Alguns são idosos como Estamira e também têm história de “descuidos” na vida: são alcoólatras, foram abandonados pelos parceiros, não conseguem trabalho. Então, entende-se porque Estamira ficou melhor ao começar a frequentar o lixão – como conta a filha em determinado momento – encontrou um ambiente de companheirismo e cumplicidade, de pessoas que buscam a dignidade ao ganharem a vida.
Outro filme interessante sobre o lixo é Ilha das flores, curta-metragem de Jorge Furtado que já pode ser considerado clássico. O curta mostra a trajetória de um tomate que, plantado, colhido, vendido no supermercado e descartado pela compradora, vai parar no lixo. De lá, é selecionado pelos trabalhadores de uma fazenda para servir de comida aos porcos, enquanto o que sobra disso, o que é pior que um tomate podre, serve de comida a pessoas que não têm dono (como os porcos) ou não têm dinheiro (como o dono dos porcos ou os consumidores do supermercado). São esses os personagens de Estamira e, principalmente, de Estamira para todos e para ninguém: os sem dinheiro, os mal tratados, aqueles que, como diz Estamira, foram libertos, mas para quem não se deu nem trabalho nem terra.
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