Lavar a cabeça no salão de beleza, receber uma massagem na nuca, trocar uma lâmpada no teto, alongar o pescoço numa aula de yoga, cabecear a bola numa partida de futebol ou fazer um arremesso num jogo de basquete: atividades tão triviais e aparentemente tão inócuas! Mas você sabia que existem pessoas que apresentaram um tipo especial de acidente vascular cerebral (AVC) instantes, ou mesmo dias, após participarem dessas atividades? Trata-se da dissecção arterial cervical espontânea (Dace), uma doença ainda pouco conhecida pelo público em geral e que acomete principalmente os jovens. Estima-se que ela seja responsável por até 25% dos acidentes vasculares cerebrais isquêmicos em pessoas abaixo de 45 anos.
Existem casos de dissecção arterial após traumatismos de grande impacto, como um acidente automobilístico, por exemplo. Mas não é desse tipo de dissecção que estamos falando. A Dace, ao contrário, é a ruptura não traumática (e por isso chamada de “espontânea”) de uma ou mais camadas internas da parede de alguma das artérias do pescoço responsáveis pela irrigação sanguínea do cérebro. Eventualmente, mais de uma artéria pode ser comprometida ao mesmo tempo.
Para entender melhor o conceito de composição em camadas, imagine que a artéria seja como a manga de um casaco de inverno. Por fora, uma camada mais resistente, geralmente de couro ou tecido forte. Por dentro, um forro delicado, geralmente de seda ou nylon. E, entre os dois tecidos, uma camada de tecido isolante térmico. A dissecção ocorre quando a camada mais interna da artéria, equivalente ao forro de seda do casaco, se rompe. A camada intermediária, entre a mais interna e a mais externa, também pode ser afetada. Esse pequeno rasgo permite, então, que parte do fluxo sanguíneo entre por baixo da camada e se infiltre por dentro da parede da artéria. No local da ruptura ocorre a formação de coágulos, uma resposta fisiológica do organismo na tentativa de recuperar o local lesado e estancar o vazamento de sangue para dentro da parede da artéria. Entretanto, esse coágulo, ou parte dele, pode se desprender do local da ruptura, migrar pela corrente sanguínea em direção ao cérebro e lá ocluir uma outra artéria, causando um AVC isquêmico, ou seja, um AVC por falta de irrigação sanguínea de uma parte do cérebro. Além disso, o sangue infiltrado por dentro da parede da artéria pode causar uma diminuição do calibre interno do vaso, prejudicando o fluxo de sangue em direção à circulação cerebral. A figura 1 demonstra a formação de um coágulo dentro da parede arterial após a ocorrência de uma dissecção arterial.
Representação gráfica de uma dissecção da artéria carótida interna. Observe o coágulo formado entre as camadas da parede arterial. Modificado de Schievink WI. N Engl J Med 2001.
A ocorrência da dissecção arterial espontânea não depende apenas da exposição às atividades consideradas como potenciais fatores de estresse mecânico descritas acima. Acredita-se que fatores genéticos responsáveis pela produção inadequada do colágeno, ou outras substâncias essenciais à formação do tecido conjuntivo da parede das artérias, podem deixar os indivíduos mais vulneráveis, especialmente nos locais anatômicos onde os vasos são mais frequentemente submetidos a movimentos de estiramento, flexão ou torção, como o pescoço. Na prática, não há como saber se uma pessoa está ou não geneticamente predisposta à dissecção arterial baseando-se apenas em sua aparência física, exceto no caso de algumas raras doenças genéticas que cursam com algumas alterações físicas evidentes, como a Doença de Marfan e a Síndrome de Ehler-Danlos. O mais prudente é ter cuidado e evitar situações em que o pescoço fique muito tempo extremamente estendido ou lateralizado. Em relação às massagens cervicais, embora ainda seja um assunto controverso, muitos especialistas têm recomendado cautela em relação, especialmente, às manobras quiropráticas, pois existem vários relatos de casos publicados de pacientes que apresentaram AVC após terem recebido massagem no pescoço.
Entre o início da dissecção e o aparecimento do primeiro sintoma de AVC pode haver alguns dias onde o principal sintoma (que pode servir de “sintoma de alerta”) é uma forte dor de cabeça, bem localizada, geralmente numa metade do crânio, ou próximo à mandíbula, ou atrás de um dos olhos ou na nuca. Mais raramente, a dor pode se localizar na parte da frente do pescoço. A dor de cabeça costuma ser diferente das eventualmente já apresentadas pelo paciente no passado, mais intensa, muitas vezes sendo possível detectar na história o momento exato em que ela começou e se foi desencadeada por algum estresse mecânico do pescoço. Outro sintoma de alerta é o aparecimento do chamado “sinal de Horner”, que é uma leve queda de uma das pálpebras associada à diminuição do tamanho da pupila no mesmo lado. Eventualmente, embora raro, pode ocorrer paralisia da metade da língua e dificuldade para falar e engolir. Quando o diagnóstico da Dace é feito ainda na fase de sintomas de alerta, a instituição do tratamento permite que se evite a progressão para o AVC na grande maioria dos casos. Entretanto, infelizmente, mais de 80% das pessoas que apresentam a Dace só são diagnosticadas após a ocorrência do AVC, ou seja, quando já estão com alguma sequela neurológica.
Portanto, é importante que as pessoas se conscientizem da possibilidade de que movimentos bruscos ou muito amplos do pescoço podem, eventualmente, afetar a integridade das artérias cervicais e até causar AVC, especialmente em indivíduos abaixo de cinquenta anos. O aparecimento de algum dos sintomas referidos como “sintomas de alerta”, bem como algum sinal de comprometimento neurológico, deve estimular o paciente a buscar imediatamente atenção médica. È importante que o paciente preste atenção nas características da dor e em todos os detalhes envolvidos com o seu desencadeamento, especialmente se for uma dor de cabeça “diferente” das anteriores e precedida por algum estresse mecânico do pescoço. A busca por atenção médica especializada permitirá que o profissional, baseado na história clínica e nos sintomas, solicite os exames de investigação diagnóstica, os quais podem incluir ressonância magnética, angiografia por ressonância, angiotomografia e angiografia digital. O tratamento é à base de medicamentos anticoagulantes e antiagregantes e visa dificultar a formação de coágulos no local da dissecção. Esse tratamento deve ser mantido por um período de três a seis meses, tempo necessário para que o próprio organismo cicatrize a lesão da artéria. O prognóstico, ou seja, a possibilidade de recuperação do paciente, dependerá da intensidade das sequelas já apresentadas por ele no momento em que o tratamento for iniciado. Quanto mais precoce se fizer o diagnóstico e o tratamento, melhor.
Cynthia Resende C. Herrera é médica formada pela Unicamp, com residência médica e doutorado em neurologia pela USP-SP, ex-fellow do Departamento de Neurologia da Universidade de Calgary, Canadá. Contato: cynthiaherrer@yahoo.com
Referências
Schievink WI. N Engl J Med. 344(12), p. 898-906, 2001
Campos-Herrera CR; Scaff M; Yamamoto FI; Conforto AB. “Spontaneous cervical artery dissection : an update on clinical and diagnostic aspects”. Arq. Neuro-Psiquiatr. 2008;66(4):922-927.
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