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Reportagem
A vida social numa rede de avatares
Por Danilo Albergaria
10/09/2010

Para muitos, a sigla é esquisita, tão estranha quanto a atividade humana a que ela dá nome. Para outros tantos, ela enseja enormes e familiares mundos virtuais. O aparente palavrão MMORPG é, hoje, a forma mais comum de designar jogos para computador que pressupõem a interação, via internet, de muitos jogadores em ambientes permanentemente ativos, geralmente apresentados em altamente imersivos gráficos tridimensionais. Formada pelas iniciais de Massively Multiplayer Online Role-Playing Game (jogo de interpretação de personagem para múltiplos jogadores em massa), a sigla nomeia este que é o gênero de videogame que mais cresceu em importância na última década. O mais popular desses jogos, o World of Warcraft (WoW), conta com mais de 11,5 milhões de jogadores espalhados ao redor do globo, que pagam taxas mensais de 15 dólares para se transformarem, por algumas (ou muitas) horas diárias, em avatares de sacerdotes elfos ou ogros guerreiros, por exemplo, todos imersos num gigantesco mundo virtual.

Seria possível perceber a relevância desses jogos apenas pelo lado econômico: a Blizzard Entertainment, empresa que criou e administra o WoW, amealha mais de 800 milhões de euros anualmente com o jogo. Mas há, principalmente, outro tipo de relevância: os MMORPGs são jogos sociais. Para completar os objetivos mais difíceis, com os quais um jogador pode ganhar prestígio entre seus pares, é imperativo que ele faça parte de grupos geralmente chamados de guildas, formados por dezenas e até centenas de jogadores. Por design, jogos como o WoW obrigam os jogadores a estabelecerem relações sociais dentro de seu mundo virtual.

A grande quantidade de tempo e energia dedicados por um número crescente de jogadores a conquistas de objetivos dentro desses jogos e as relações sociais que acabam estabelecendo pelo caminho vem sendo objeto de pesquisa acadêmica nos últimos anos. Aos poucos, o preconceito contra o universo dos games e dos gamers vem desaparecendo. Até mais ou menos uma década, quem ousava estudar os games podia não ser levado muito a sério: "se um pesquisador quisesse destacar nos games algo mais do que mero entretenimento, para além de seu aspecto lúdico, podia ter dificuldades. Hoje, essa pecha de 'coisa de criança' está quase terminada", afirma Marcelo Salgado, que vem conduzindo pesquisa sobre os MMORPGs no programa de mestrado da Faculdade Cásper Líbero.

Compreensivelmente, dado que a academia só se debruçou muito recentemente sobre o tema e pela própria novidade de seu objeto de estudo, ainda não há um corpo teórico suficientemente coeso, um paradigma que oriente as indagações e as discussões sobre os mundos virtuais e, especialmente, os MMORPGs. Salgado diz que ainda "é muito cedo para fazer uma análise aprofundada dos impactos sociais e psicológicos dos relacionamentos em mundos digitais".

No entanto, o interesse gerado pela popularidade desses jogos já originou publicações de pesquisa acadêmica inteiramente dedicada à temática, como a Journal of Virtual Worlds Research. Nesta revista encontram-se pesquisas sobre aspectos econômicos, culturais e educacionais de mundos virtuais como o Second Life e o próprio WoW. A natureza das investigações é multidisciplinar: há colaborações de antropólogos, sociólogos, semiólogos; há até mesmo estudos de "etnografia virtual", sobre o comportamento social levando em conta o gênero e aparência dos avatares e indagações antropológicas sobre a moda e as vestimentas no World of Warcraft como veículo autofabulação. Outro exemplo de pesquisa científica sobre as interações humanas nesses jogos é o site The Daedalus Project, construído pelo pesquisador sino-americano Nick Yee e que contém uma substancial base de dados sobre vários MMORPGs. Um dos últimos artigos do pesquisador do Palo Alto Research Center versa sobre a natureza das guildas no WoW: como essas agremiações se desenvolvem e como as pessoas se organizam em grupo em ambientes virtuais. Além de conseguir captar detalhes saborosos sobre a vida "virtual" dos jogadores de MMORPG (como experiências genuínas de altruísmo e egoísmo, frustrações e satisfações), as pesquisas de Yee são principalmente quantitativas e apresentam números que mostram o avanço da disseminação social dos MMORPGs. Segundo Salgado, os estudos de Yee "indicam que a idade média do jogador de World of Warcraft aumentou de 27 para 30 anos de idade entre 2005 e 2010, o que significa duas coisas: os que eram jovens jogadores agora envelhecem e continuam jogando; adultos e idosos que nunca haviam se interessado por jogos, decidiram tentar e gostaram; e a presença feminina subiu de 16% para 20% entre 2003 e 2010, em média, no mundo todo".

Embora o campo de investigação ainda seja bastante recente e não tenha vencido completamente a desconfiança sobre ser ou não uma investigação científica relevante, algumas de suas interrogações tocam questões profundas sobre identidade e sociabilidade, levantadas muito antes de esses mundos virtuais sequer aparecerem como possibilidade concreta. Uma das questões que parecem circular permanentemente os debates em torno do tema é se os MMORPGs engendram novas relações sociais ou se apenas abrigam velhas relações sociais em novos suportes tecnológicos. Marcelo Salgado tem a opinião de que "há indícios de que existem, sim, diferenças significativas entre os relacionamentos nesses mundos digitais e os relacionamentos como tradicionalmente os conhecemos – as relações presenciais, cara-a-cara – mesmo que também existam atributos comuns às duas formas de relacionar-se". Com relativo otimismo, Salgado afirma que "pode ser extremamente interessante a possibilidade de conhecer, criar e cultivar laços com pessoas de culturas diferentes, de muito ou pouco longe, e que compartilham ao menos um grande interesse – o jogo. O aprendizado, a troca de ideias, e até mesmo a possibilidade de aprender ou treinar um idioma estrangeiro também são possibilidades reais atraentes, mas apenas adicionais. Amizades, namoros e até casamentos podem começar e acabar a partir desses mundos digitais. Impossível ver limites e inadequado menosprezar o poder dessas redes sociais".

Sob outro prisma, mas ainda dentro da mesma interrogação, questiona-se os efeitos psicológicos sobre uma pessoa que represente diferentes personagens imersos em mundos virtuais. Os jogadores assumiriam uma ou diversas identidades específicas nesses mundos e as primeiras tentativas de compreender esse fenômeno foi interpretá-lo como mais uma evidência da condição pós-moderna: a fragmentação da identidade individual, a multiplicidade do "eu", o abandono de uma concepção de identidade estável e unitária e a afirmação da ocasional preferência das pessoas por suas identidades "virtuais" em detrimento de sua identidade do mundo "real". Na contramão do otimismo que cerca os MMORPGs como objeto de estudo per se e da visão pós-moderna da identidade e da sociabilidade dentro desses ambientes virtuais, Julio Meneses, pesquisador do Internet Interdisciplinary Institute e professor da Universitat Oberta de Catalunya, de Barcelona, discorda que esses jogos sejam relevantes o suficiente para que se afirme ou se investigue sua existência, independentemente da vida cotidiana.


Realidades, virtualidades, identidades

Para entendermos como funcionam esses pontos de vista e com que ideias dialogam, será necessário olharmos um pouco para a história da emergência dos MMORPGs.

A derradeira década do século passado testemunhou a ascensão de novas maneiras de interações sociais. A já disseminada interação entre homem e computadores combinou-se com a popularização da internet, abrindo possibilidades inebriantes de comunicação quase imediata, sem fronteiras ou demarcações nacionais. Ao mesmo tempo, os videogames acompanhavam o desenvolvimento exponencial da velocidade de processamento dos computadores: os jogos tornaram-se mais e mais complexos, refinados, exigindo do jogador o desenvolvimento de habilidades específicas e um bom tempo despendido em treinamento. Jogos com ambientes virtuais de três dimensões tornaram-se corriqueiros e o seu apuro gráfico e sonoro cresceram a ritmos vertiginosos. O nível de detalhes e a possibilidade de interagir com cada vez mais aspectos desses espaços virtuais conspiraram para que a sensação de imersão do jogador fosse cada vez maior.

A combinação dessas duas criaturas da informática, internet e videogames, criou o fenômeno dos games de múltiplos jogadores em ambientes tridimensionais. Os MMORPGs, variantes específicas dessa espécie de games, são o resultado de uma hibridização entre ambientes tridimensionais e dois gêneros de jogos distintos: o RPG (Role-Playing Game, ou jogo de interpretação de personagens) e sua versão textual eletrônica, o MUD (Multiple User Dungeon, ou calabouço de múltiplos usuários). Nos RPGs, o jogador assume a identidade de um personagem que pode ser de gênero, aparência e temperamento distintos dele. Jogados presencialmente, os RPGs encontraram nos MUDs uma plataforma para serem jogados a distância.

De certa forma, os MUDs podem ser definidos como MMORPGs sem sua interface gráfica tridimensional. O suporte é totalmente textual: os jogadores escrevem suas falas e descrevem suas ações num espaço também textualmente descrito. Esse tipo de jogo de múltiplos jogadores foi estudado por Sherry Turkle, psicanalista e professora de sociologia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), na obra Life on the screen: identity in the age of internet (Vida sobre a tela: a identidade na era da internet). Usualmente descrito como seminal, este trabalho publicado em 1997 foi o principal responsável por projetar para o campo de estudos das experiências humanas "virtuais" em jogos eletrônicos de múltiplos jogadores a já mencionada visão "pós-moderna" de que os jogadores constituem identidades independentes nos mundos virtuais, ou seja, inventam inteiramente a si mesmos nesses ambientes e chegam ao ponto de preferir a identidade desempenhada no jogo à da vida cotidiana.

Em sintonia com a filosofia pós-modernista, ao enxergar identidades completamente distintas elaboradas por um jogador e, seguindo a expressão de alguns, de que aquelas vidas "virtuais" haviam-se tornado mais reais do que a realidade, Turkle borra ou mesmo apaga as fronteiras entre o real e o virtual. Julio Meneses disputa essa visão, ainda de certa maneira predominante nos estudos dos MMORPGs. Para ele, "aceitar a multiplicidade ou complexidade de nossa interação com os outros, e suas consequências para a construção de nossa identidade, não requer que construamos identidades independentes, tampouco que tenhamos diferentes pessoas lutando dentro de nós".

Meneses defende que os MMORPGs sejam investigados do ponto de vista da função que eles desempenham na vida cotidiana dos jogadores. E esta função, para ele, "provavelmente não é diferente das de quaisquer outros espaços de 'jogo'". O pesquisador catalão questiona as conclusões mais otimistas – segundo as quais os MMORPGs ensejariam maneiras inteiramente novas de relações sociais e de autorepresentação – de acordo com as ideias do sociólogo canadense Erving Goffman, que em 1959 publicou A representação do eu na vida cotidiana. Goffman vê as interações sociais humanas sob o prisma da dramaturgia, do teatro: em nossas relações sociais, seríamos sempre atores tentando apresentar à audiência os aspectos positivos de nossa identidade. Assim, afirma que ser um idiota num MUD ou num MMORPG "não é tão diferente quanto sê-lo num estádio de futebol … Concluir que a vida na tela se desenvolve independentemente da vida 'real' é apenas uma simplificação errônea". Meneses explica este ponto de vista: "você está atuando interpretando um papel em todos os lugares, não apenas nos jogos, e você está sempre definindo suas ações e sua roupagem para adaptar-se ao 'palco' em que está sua audiência, seu público". O pesquisador torna a metáfora mais palpável e arremata seu raciocínio da seguinte forma: "onde você 'mente' mais? Seja num bar, falando com quem gosta, seja numa entrevista de emprego: você não está tentando representar, de maneiras diferentes, o melhor candidato?".

Recentemente, as relações sociais e culturais em MMORPGs foram descritas pelo editorial do número 3 do primeiro volume da Journal of Virtual Worlds Research como "as nem tão novas experiências que estudamos". Talvez um sintoma do refluxo do otimismo e exagero que cercaram as primeiras pesquisas sobre o tema, o editorial de Mark Bell não apenas coloca em dúvida se os pesquisadores precisam realmente construir novos modelos para entender a humanidade em avatares sociais, como também lembra que "mundos virtuais" são "dificilmente limitados pelas mídias eletrônicas – eles podem ser encontrados em livros, filmes, e outras instâncias artísticas".


Uma fábula capitalista (e disciplinadora)

Alguns dos mais fortes apelos dos MMORPGs residem não apenas na possibilidade de conectar um enorme número de pessoas distantes num mesmo e gigantesco mundo tridimensional. Os MMORPGs pressupõem a permanência desses mundos durante anos a fio, praticamente sem interrupção: ou seja, diferentemente do tradicional modelo do game em single player, quando um jogador deixa o jogo, sabe que as ações e os dramas continuarão a ocorrer naquele "mundo". Os especialistas concordam em apontar que esse aspecto, aliado à possibilidade de crescente interação com o ambiente virtual, são fatores de atração para que os jogadores passem a dedicar cada vez mais tempo e energia a esses jogos, ao desenvolvimento e prestígio de seus avatares.

Jogos como o World of Warcraft prometem – e entregam, de acordo com a dedicação do jogador – recompensas em forma de pontos de experiência e itens com melhores atributos que dão ao avatar mais poder e, consequentemente, mais prestígio. Determinados "feitos" ou "realizações" garantem ao personagem até mesmo títulos de honraria exibidos em seu nome, visíveis a todos. Não surpreendentemente, uma pesquisa quantitativa publicada na revista Cyberpsychology and Behavior (vol. 11, no. 1, 2008) mostrou que "pouco mais de um quarto dos jogadores declararam que o jogo online satisfez necessidades sociais que não foram satisfeitas pelo mundo real". Ao tornar feitos "épicos" e "prestígio social" ao alcance de muitas horas de dedicação, os MMORPGs tornam-se atraentes para uma quantidade enorme e multifacetada de jogadores: quem, afinal, não tem frustrações sociais?

Contudo, os atributos "reais" mais exigidos dos jogadores são, além do tempo e energia disponíveis, a organização e a disciplina: os conteúdos mais difíceis que, vencidos, garantem mais prestígio, só são realizáveis em grandes grupos (raids), com hora marcada e mediante o dispêndio de muitas horas em muitos dias. São necessárias disciplina e disposição para realizar trabalhos repetitivos para que o personagem não fique sem recursos.

Na coletânea de ensaios Digital culture, play and identity, publicado em 2008 pela MIT Press, Scott Rettberg mostra como o WoW pode ser compreendido como uma "fábula capitalista". O jogo, segundo Rettberg, "promete riqueza e status para o trabalhador que dá duro, agindo como um 'treinamento corporativo'". Nick Yee tem conclusões semelhantes, apontando para o fato de que a vida real, onde o acaso joga, não necessariamente premia os mais esforçados. Se os MMORPGs têm potencial para proporcionar a necessária fuga das dores da realidade, dificilmente a realizará apenas oferecendo um espelho da ideologia capitalista, apostando numa versão edulcorada da meritocracia e educando seus jogadores a aceitarem passivamente a fachada da simulação.