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Editorial
Vida sintética e linguagem da vida
Por Carlos Vogt
10/10/2008

No dia 26 de junho de 2000 foi anunciado ao mundo o sequenciamento “virtualmente completo” do código genético humano. Na cerimônia, presentes Craig Venter e Francis Collins representavam o privado e o público para divulgação dos resultados dos dois grandes projetos competidores, ali harmonizados sob a batuta de Bill Clinton, então presidente dos EUA, que contracenava, do outro lado do Atlântico, com Tony Blair, então primeiro ministro do Reino Unido, e, solenemente, prolatava: “Estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida”.

Antes desse evento, muito havia acontecido na biologia desde a descoberta da estrutura do DNA, em 1953, e muito haveria de acontecer no breve tempo que permeia o anúncio do sequenciamento do genoma humano e as pesquisas que embasaram a publicação na revista Science, de 29 de fevereiro de 2008, do artigo “Complete chemical synthesis, assembly, and cloning of a mycoplasma genitalium genome”, de autoria de Daniel G. Gibson e de vários outros pesquisadores, entre eles o próprio Venter, presidente do J. Craig Venter Institute e do Conselho do The Institute for Genomic Research (TIGR) e co-fundador, em 2005, da Synthetic Genomics, empresa voltada ao uso de microorganismos para a produção de etanol e de hidrogênio como combustíveis alternativos na geração de energia.

É esse pragmatismo tecno-comercial que tem, aliás, conduzido a motivação das várias empresas-instituição voltadas, nos EUA e na Europa, para as pesquisas que buscam a construção da vida em laboratório com os tijolos de segmentos sistêmicos de DNAs recombinantes de microorganismos que, se criados efetivamente com vida, poderiam atuar como verdadeiras máquinas vivas promovendo curas, equilíbrio ambiental e gerando novas fontes e formas de riqueza na economia.

A esse propósito, Bob Holmes, em reportagem para a New Scientist, de 12 de fevereiro de 2005, faz referência a Norman Packard, fundador da Protolife, empresa com sede em Veneza, na Itália e cuja finalidade é, nada mais nada menos, que a criação em laboratório de novas formas de vida a partir de substâncias químicas. Citando-o, diz que ele:

“vislumbra farmacêuticos vivos que entreguem drogas para as células doentes por um meio adaptável inteligente, ou formas diagnósticas de vida que possam vagar em nossos corpos colecionando informações e observando sinais de um possível problema. A meta final seria máquinas que se reparam como os seres vivos e até mesmo computadores capazes de cálculos incrivelmente complexos, enquanto enfrentam erros inevitáveis, assim como nossos corpos toleram erros e falhas dentro de nossas centenas de bilhões de células.”

Ao invés do clássico dilema hamletiano do ser e do não ser, tem-se aqui uma questão pragmática que opõe vida e não-vida para saber em que momento ter-se-á quem, onde e como a vida foi, por processos químicos não-convencionais, criada em laboratório.

A vida enquanto capacidade de desenvolvimento e de adaptação, como a biologia bem aprendeu com o evolucionismo darwiniano, vê-se, assim, transtornada, do ponto de vista filosófico, já que uma das conseqüências desse novo processo criativo, se de fato bem sucedido, será a possibilidade de visualizar formas de vida cuja formação e conformação nada ou pouco tem a ver com o que até agora se conhece. Abrem-se, desse modo, janelas de esperança e de medo para a existência dessas e de outras vidas sintéticas em outros lugares e espaços, planetas e galáxias, sob condições ambientais totalmente hostis à vida tal qual hoje a conhecemos e imaginamos.

Voltando à linguagem com que Deus criou o homem, para parafrasear o ex-presidente Clinton, talvez seja interessante notar que os estudos genômicos descobriram, desvendaram, ou deram maior precisão − como se preferir − ao alfabeto helicoidal do DNA. As regras sintáticas de sua intrincada combinatória apenas começam a ser estabelecidas. Quando o forem e como forem, aí, então, poder-se-á falar da efetiva decifração de uma linguagem da vida, mesmo que por linhas menos tortas do que as que são atribuídas, na sabedoria popular e religiosa, à vontade divina.