Está no artigo 206 da Constituição: um dos princípios nos quais deve se basear o ensino ministrado no Brasil é a garantia de padrão de qualidade. Mas o que é qualidade para o legislador, para o gestor público, para os especialistas em educação e, sobretudo, para a comunidade escolar, incluindo pais, alunos e professores? Como garantir um padrão de qualidade em um país com realidades tão distintas, não apenas de uma região para outra, mas, inclusive, entre escolas de periferia e de bairros centrais de uma mesma cidade? A inclusão desse princípio na Constituição, as políticas públicas, as discussões daí decorrentes e as iniciativas de organizações não-governamentais – nessas duas décadas após a promulgação do texto constitucional – indicam um momento histórico em que a noção de qualidade na educação, variável ao longo do tempo, ganha uma nova dimensão em nossa sociedade.
“A primeira noção de qualidade com a qual a sociedade brasileira aprendeu a conviver foi aquela da escola cujo acesso era insuficiente para atender a todos, pois o ensino era organizado para atender aos interesses e expectativas de uma minoria privilegiada”, afirma Romualdo Portela de Oliveira, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Para se ter uma ideia, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o analfabetismo atingia 64,9% da população em 1920. E, segundo o Ministério da Educação (MEC), meio século depois, a taxa de escolarização dos brasileiros entre 7 e 14 anos era de 67%. Com as políticas estaduais e municipais de expansão do ensino, através da construção de escolas, de 1975 até 1991, enquanto a população entre 7 e 14 anos subiu de 21,7 milhões para 27,6 milhões, as matrículas no ensino fundamental saltaram de 19,5 milhões para 29,2 milhões.
O número maior de matriculados em relação à população em idade escolar prevista para o ensino fundamental evidenciou um problema antigo no Brasil que passou a protagonizar as discussões sobre qualidade no ensino na década de 1990: a progressão dos alunos de uma série para outra. “A entrada tardia na escola ou as múltiplas reprovações faziam com que alunos que deveriam estar mais adiantados em seus estudos ocupassem, ainda, os bancos escolares em séries anteriores às adequadas”, diz Oliveira. Dados do MEC indicam que, em 1990, a taxa de aprovação no ensino fundamental era de 60%, enquanto que as reprovações representavam 34%, e as evasões, 6%. Números como esses reavivaram antigas teses: em 1954, o educador Anísio Teixeira já defendia, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, a promoção automática dos alunos até o final do ciclo, apontando que dos alunos que haviam ingressado na 1ª série primária em 1945, apenas 15% concluíram a 4ª série.
Embora a ideia tivesse recomendação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e algumas políticas localizadas tenham tentado implementá-la, é na década de 1990 que ganham força as políticas de progressão dos alunos. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 9.394) dá autonomia aos estados e municípios para adotar ou não o ensino em ciclos e a progressão continuada dentro de cada ciclo. Em São Paulo, onde foi aplicada, a medida enfrenta desconfiança de pais e professores. Para Romualdo Oliveira, entretanto, a progressão continuada não é um problema. “O problema é a criança ficar na escola e não aprender ou reprovar. As reclamações com a permanência da criança que não aprende na escola são a expressão cabal de que a escola fracassa em educar uma massa imensa. Do ponto de vista das consciências culpadas, era mais cômodo que essas crianças fossem excluídas. O desafio é fazer com que todos aprendam, e não obter um salvo conduto para excluir os que não aprendem, dado pela reprovação”, avalia o pesquisador da USP.
Nos anos 1990, também surgiam, em todo o país, os Programas de Correção de Fluxo, com iniciativas como carga horária extra e aulas de reforço para os alunos defasados, que ganharam o apoio de ONGs como o Instituto Ayrton Senna, com o programa Acelera Brasil. Cerca de trezentas mil crianças, de 319 municípios de Pernambuco, Paraíba, Sergipe, Tocantins, Mato Grosso e Goiás, já foram beneficiadas pelo programa desde a sua criação, em 1997. Ele conta com parcerias da Petrobras, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do MEC, e também envolve uma capacitação dos professores participantes. Um levantamento feito em 2001 apontava que quase a metade dos municípios beneficiados pelo programa já havia conseguido reduzir a distorção entre idade e série para índices inferiores a 10% do total de alunos.
A década de 1990 também conheceu o início da aplicação dos testes de larga escala. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), desde então, avalia a cada dois anos uma amostra de alunos das 4ª e 8ª séries do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio. E a partir de 2000, o Brasil começou a participar do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), aplicado a estudantes na faixa dos 15 anos, no qual tem sempre amargado os últimos lugares. Mas a comunidade escolar nem sempre concorda com esses testes. “Por serem baseados em amostras e produzirem resultados agregados por estados ou macroregiões administrativas, os professores e demais agentes escolares não ficam plenamente convencidos de que o diagnóstico se aplica à sua realidade”, observa Claudia Bandeira, coordenadora do projeto Indicadores da Qualidade na Educação, da ONG Ação Educativa.
Para detalhar mais o diagnóstico, o governo federal criou em 2005 um teste complementar ao Saeb, a Prova Brasil, que avalia os estudantes de toda a rede pública urbana e apresenta os resultados por município e por escola. Todos esses testes em larga escala são aplicados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), incluindo o Pisa. Em 2007, o Inep criou também o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que agrega dados do Saeb, da Prova Brasil e as taxas de aprovação dos alunos obtidas no censo escolar. Embora o primeiro levantamento tenha superado as metas do MEC, o índice é baixo nos três ciclos do ensino básico, sendo menos pior nos anos iniciais do ensino fundamental. Em uma escala de zero a dez, o Ideb desse ciclo é de quatro para as escolas públicas e seis para as privadas; nos anos finais do fundamental, o índice cai para 3,5 para rede pública e 5,8 para a privada; e, no ensino médio, cai ainda mais: 3,2 nas escolas públicas e 5,6 nas privadas (leia entrevista com a coordenadora do Saeb, explicando os indicadores).
Além dos programas de correção de fluxo, iniciados nos anos 1990, terem apresentado resultados primeiro no ciclo inicial do ensino fundamental, a partir de 2005, essa etapa ganhou um ano a mais, com a inclusão de uma série voltada para alunos com pelo menos seis anos de idade. Ao defender a ampliação do ensino fundamental de oito para nove anos, o ministro da Educação, Fernando Haddad, declarou que a antecipação do processo de alfabetização irá refletir positivamente, a longo prazo, nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Para essa última etapa, a mais crítica, segundo o Ideb, o MEC lançou em 2009 o programa Ensino Médio Inovador, com sugestões para as redes estaduais de ensino, como um aumento de duzentas horas na carga horária mínima e a possibilidade de o aluno escolher 20% da grade curricular entre disciplinas eletivas.
Construção coletiva de indicadores de qualidade
As avaliações de larga escala, como o Saeb, são fundamentais para a proposição de políticas públicas que solucionem problemas e para o controle social dessas ações. Mas o uso dos resultados desses testes para a tomada de decisões na própria comunidade escolar ainda é um grande desafio. Essa é a avaliação de Claudia Bandeira, coordenadora do projeto Indicadores da Qualidade na Educação (Indique), cuja primeira versão foi publicada em 2004 e distribuída em todo o país. A ideia do projeto é mobilizar o maior número possível de pessoas, entre pais, mães, alunos, professores, diretores e demais funcionários da escola, para avaliar a qualidade do ensino e propor soluções. “Sem a pretensão de substituir os indicadores existentes, nem de menosprezar seu valor como instrumentos de monitoramento das políticas educacionais, a aposta do Indique é oferecer um instrumento complementar que envolva a comunidade escolar em processos participativos de avaliação e no seu engajamento em ações coletivas que visem à melhoria da qualidade da educação”, explica a coordenadora do projeto.
Com o incentivo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o apoio financeiro do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Ação Educativa desenvolveu o Indique a partir de várias referências, como a LDB e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Os indicadores foram organizados em sete dimensões: ambiente educativo; prática pedagógica e avaliação; ensino e aprendizagem de leitura e escrita; gestão escolar democrática; formação e condições de trabalho dos profissionais da escola; espaço físico escolar; e acesso, permanência e sucesso na escola. Parte dos problemas que essas avaliações refletem depende de políticas públicas, como a necessidade de formação superior dos professores, exigida pela LDB e patrocinada por programas de ensino a distância do MEC para aqueles que só têm o antigo magistério; ou a remuneração docente, que teve um piso nacional aprovado em 2008. Mas certos problemas locais podem ter soluções apresentadas pela própria comunidade escolar que os vivencia.
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Comunidade escolar mobilizada nas EMEF Manoel Nascimento Júnior (esq.) e Ercília Nogueira Cobra (dir.). Fotos: Claudia Bandeira. |
No município de São Vicente (SP), o Indique vem sendo desenvolvido em oito escolas, desde 2008, em parceria com a Fundação Telefônica e a Secretaria Municipal de Educação. Em cada uma delas, a mobilização nas avaliações coletivas tem sido grande, chegando a cerca de cento e trinta pessoas em duas escolas. Para enfrentar os principais problemas detectados, a própria comunidade escolar elaborou planos de ação, com responsabilidades para pais, mães, alunos, professores, funcionários e profissionais de ONGs situadas no entorno das escolas. “Trabalhar em parceria com as ONGs possibilitou, em alguns casos, a discussão sobre atividades esportivas e artísticas articuladas à leitura e escrita. A participação de pais e mães dos alunos contribuiu para um projeto que visa constituir uma escola de pais, com a perspectiva de que seja um grupo que se encontre periodicamente para estudo e acompanhamento dos projetos das escolas. Os alunos, por sua vez, pretendem investir num grêmio estudantil para participar das decisões de maneira mais organizada”, conta Bandeira.
Várias secretarias de educação, em todo o país, têm conhecido o Indique e disseminado o projeto entre escolas da rede pública, mas ainda há muito o que semear, em termos de mobilização coletiva. E no que diz respeito às políticas públicas, embora os avanços sejam notáveis nessas duas décadas da Constituição Cidadã, trata-se apenas do começo do caminho para a melhoria da educação. “Estamos tendo alguns avanços nessa área, mas eles são muito lentos. Os equipamentos nas escolas, na média, têm melhorado, os salários melhoram, mas muito lentamente. Precisamos de um choque que só pode ser conseguido com uma injeção substantiva de recursos na área de educação. A lição que os países que deram saltos substantivos nos dão é que temos de ampliar o gasto nacional em educação. A Coréia do Sul, por exemplo, passou duas décadas aplicando 10% do PIB em educação. Quando o sistema se estabilizar com boa qualidade, esse montante pode ser reduzido”, avalia Oliveira.
Claudia Bandeira, da Ação Educativa, acrescenta: “A escola de qualidade é também um ator político, situado dentro de um sistema amplo com o qual precisa dialogar e negociar. Os indicadores não podem reforçar a ideia de que a escola resolverá todos os problemas somente com base em seus próprios recursos ou nos da comunidade, sem considerar a relevância e responsabilidade do investimento público”. Mas, para ela, nem só de investimento financeiro depende a qualidade do ensino: “A melhoria da educação é responsabilidade de todos e, por meio de uma ação conjunta, estaremos fortalecidos para enfrentar os desafios que estão postos para a educação pública”, conclui.
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