Para iniciar, é necessário conceituar cultura política, categoria de análise desenvolvida por cientistas sociais norte-americanos nos anos 1950 e 1960, que tem sido apropriada de maneira seletiva pela historiografia recente. O quadro teórico originalmente desenvolvido por Almond & Verba foi submetido a severas críticas ao longo dos anos, mas recobrou força com a chamada “virada culturalista”. Influenciados pela força ascendente do paradigma culturalista e interessados em renovar o enfoque da história política, os historiadores redescobriram a categoria cultura política e a têm utilizado como ferramenta teórica.
Embora essa categoria acarrete debates e algumas divergências entre os autores que a utilizam, em um ponto central, a inspiração teórica é a mesma: o entendimento de que a cultura – em sentido antropológico – influencia as decisões e ações políticas. Tal compreensão implica certa crítica ao paradigma liberal-racionalista, que vê os agentes políticos como seres movidos essencialmente por ideias e interesses. Na perspectiva do conceito cultura política, supõe-se que os homens agem também movidos por paixões e sentimentos como medo, ódio e esperança; são mobilizados por meio de representações e imaginários que constroem mitos e heróis exemplares, bem como inimigos odientos; e tomam decisões por influência de valores construídos em torno da família, nação ou religião. Assim, a atuação política dos homens não decorre apenas da apreensão racional de interesses e/ou da aceitação de ideias e projetos sistemáticos e coerentes, mas é influenciada também por fatores culturais.
No entanto, isso não implica estabelecer uma espécie de determinismo culturalista que despreze a importância do interesse e da escolha individual. A abordagem cultural é valiosa e inspiradora, mas, se for encarada de maneira absoluta pode empobrecer, em lugar de enriquecer o conhecimento. No momento da decisão, os agentes têm à disposição um leque de opções, e os fatores culturais (sentimentos, identidades, valores) podem exercer maior ou menor influência, a depender do contexto e dos atores em cena.
Nessa perspectiva, pode ser adotada a seguinte definição para cultura política: conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas que é partilhado por determinado grupo humano, expressando identidade coletiva e fornecendo leituras comuns do passado, assim como inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro. Vale ressaltar que se trata de “representações” em sentido amplo, configurando conjunto que inclui ideologia, linguagem, memória, imaginário e iconografia, implicando mobilização de mitos, símbolos, discursos, vocabulários e diversificada cultura visual (cartazes, emblemas, caricaturas, filmes, fotografias, bandeiras etc.).
Tal conceituação pode ser utilizada tanto no plural quanto no singular, ou seja, pode ser aplicada a grupos nacionais (cultura política brasileira, por exemplo) e/ou a projetos políticos específicos em matriz pluralista: comunismo, liberalismo, conservadorismo, fascismo etc. A proposta desenvolvida neste texto é considerar a existência de uma cultura política brasileira que convive e interage com culturas políticas específicas, como o liberalismo ou o socialismo que, por sua vez, são influenciados por traços da cultura nacional.
Reiterando, a existência de padrões e valores gerais não significa que todas as pessoas aderem de modo uniforme, como se o comportamento fosse inexoravelmente determinado por estruturas culturais preexistentes. O campo da política supõe o protagonismo de agentes que fazem escolhas: há sempre margem para optar entre diferentes caminhos de ação. Trata-se apenas de uma orientação geral que, não obstante, é influente ao ponto de configurar traço cultural marcante. O argumento é que as escolhas podem sofrer a influência da cultura política, que oferece aos agentes alguns padrões de ação já inscritos nas tradições, mais atraentes e viáveis, por terem gerado sucesso em ocasiões anteriores. Assim, não há por que supor oposição entre a influência de padrões culturais e o arbítrio dos agentes políticos. A cultura política exerce influência, porém, não por implicar algum tipo de atavismo, mas por indicar aos atores caminhos e estratégias com maiores chances de sucesso.
Discussões sobre o tema são tão antigas quanto a formação nacional brasileira, já que a identificação de características distintivas é parte do processo de imaginação nacional. Tais debates mobilizaram tanto motivação acadêmica quanto impulsos folclorizantes que, particularmente no último caso, se prestaram a manipulações políticas. Desde o século XIX, vários traços foram apontados como singularidades brasileiras, tanto por viajantes quanto por pensadores sociais destacados como Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Hollanda, Oliveria Vianna, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta. Eles apontaram características ou comportamentos políticos típicos dos brasileiros, embora sem usar a expressão cultura política; até porque, na maioria dos casos, suas reflexões antecederam o debate acadêmico sobre o conceito. Não obstante, é interessante destacar a situação excepcional de Oliveira Vianna, que fez uso pioneiro de cultura política em obra publicada em 1949. No livro Instituições políticas brasileiras, Oliveira Vianna usou cultura política para denominar o conjunto de costumes e tradições políticas brasileiras e, embora não tenha apresentado definição precisa, o sentido é próximo do que foi desenvolvido posteriormente pelas ciências sociais.
Pois bem, a proposta é perceber nesse conjunto de características uma unidade (embora descartando quaisquer determinismos) que constitui e dá forma a uma cultura política; em outras palavras, um repertório de representações e práticas que influenciam os comportamentos políticos de muitos brasileiros.
Primeiramente, para caracterizar uma cultura política enquanto tal é necessário a existência de um imaginário, no caso em tela, um imaginário nacional, um conjunto de representações capaz de instituir o grupo como comunidade política. Desse conjunto, fazem parte heróis, vilões, eventos marcantes, guerras etc., representações construídas por meio de imagens mentais ou visuais que são preservadas, reproduzidas e reapropriadas ao longo do tempo, processo em que atuam tanto a memória como a historiografia, além da literatura, da cultura visual e das diferentes mídias.
Além do imaginário, outro ponto essencial para identificar uma cultura política são comportamentos e valores políticos característicos do grupo. Os ensaístas e pesquisadores que visitaram o tema destacaram uma série de questões, que serão elencadas a seguir sem a preocupação de analisar (e criticar) a todas de maneira aprofundada. Nas obras desses autores, um dos temas mais fortes é o patrimonialismo, ou seja, a tendência a confundir os bens públicos e os privados, supostamente uma herança ibérica, questão analisada, sobretudo, por Raimundo Faoro. Por seu turno, Oliveira Vianna propôs que o personalismo (ou o privatismo) seria elemento central da cultura política, ou seja, a primazia dos laços pessoais em detrimento de relações impessoais. Trocando em miúdos, na sua atuação política, os brasileiros privilegiariam a fidelidade a laços de parentesco, amizade, compadrio ou patronagem à revelia de normas universais, com baixa adesão a projetos políticos impessoais. Essa descrição empreendida por Oliveira Vianna não está muito distante do homem cordial enxergado por Sérgio Buarque de Hollanda, embora este autor não tenha ultrapassado a fase de esboço do seu insight. Em linha parecida, também podem ser situadas as análises de Roberto DaMatta sobre a “casa e a rua”, que apontam igualmente para a tradicional prevalência de laços sociais privados (casa) em detrimento dos espaços e instituições públicas (rua).
Vale a pena notar que a influência do “personalismo” analisado por Oliveira Vianna continua bastante presente nos dias atuais. A maioria dos cidadãos brasileiros ainda faz suas escolhas eleitorais privilegiando pessoas em detrimento de instituições, e acolhe bem líderes carismáticos, depositando neles suas esperanças e anseios. Pesquisas recentes – bem como os resultados eleitorais – mostram como tais comportamentos políticos continuam arraigados entre os brasileiros. Ademais, a tradicional desconfiança em relação às instituições políticas (governo, partidos, parlamentos) permanece grande.
Além dos temas já apontados, poderíamos incluir como elementos integrantes da cultura política brasileira o clientelismo, o elitismo (e seu par inseparável, a exclusão popular dos espaços de decisão), a frágil identificação dos cidadãos com os partidos, o pouco apreço e a escassa participação nos espaços públicos. Alguns autores apontaram que a fraca participação popular na política institucional não significa ignorância e pode representar, bem ao contrário, a sagaz percepção de que o universo da “grande” política exclui os setores sociais subalternos.
Passo a analisar com mais cuidado uma característica que tem notável incidência no Brasil. Refiro-me à tendência à flexibilidade, à conciliação, ou à negociação de conflitos. Trata-se de tema clássico entre ensaístas e pensadores sociais, mobilizando tanto defensores como críticos. Temos larga história de grandes conciliações políticas (1822, 1853, 1889, 1961, 1979, 1985), quando arranjos foram tecidos para evitar conflitos graves e encontrar saídas políticas aceitáveis para os grupos envolvidos. Tais estratégias tendem a encontrar maior sucesso quando o jogo político não inclui segmentos sociais subalternos, portanto, quando se trata de arranjos entre grupos pertencentes às elites sociais e políticas. Nos momentos em que ocorrem episódios de maior mobilização popular, a tendência a soluções violentas é mais provável (como no caso de Canudos, por exemplo), com menores chances para a mobilização de iniciativas conciliatórias.
Antes de representar um caráter bondoso dos brasileiros ou qualquer adjetivo moral equivalente, a acomodação de diferenças e conflitos representa uma estratégia inteligente. Escamotear e conciliar conflitos têm sido meios eficientes para reduzir tensões sociais e, com isso, manter o poder político e privilégios sociais, facilitando a manutenção do status quo. Entretanto, é necessária a presença de disposição cultural favorável, pois apenas o cálculo estratégico não é suficiente para explicar a adesão a tal comportamento. Claro, na história brasileira houve violência política, tanto mais intensa quanto maior a presença de grupos populares, e o nosso quadro de violência social “comum” é muito elevado, como qualquer habitante das grandes cidades bem sabe. Não obstante, temos uma tendência forte para a conciliação política, fenômeno difícil de negar, dada sua ampla recorrência.
A força desse traço cultural é tamanha que deixou marcas até na ditadura militar, apesar do autoritarismo intrínseco e da maior disposição para a violência política. Centenas de pessoas morreram naqueles anos em luta contra a ditadura e um número maior foi torturado, removido de cargos públicos (houve demissões por motivação política também na iniciativa privada) ou partiu para o exílio. Ainda assim, a influência da cultura política se fez presente, e jogos de acomodação e estratégias conciliatórias ocorreram simultaneamente à violência.
As ambiguidades e os paradoxos da ditadura brasileira podem ser explicados, em parte ao menos, pelo influxo de elementos da cultura política. Nessa linha, o primeiro aspecto a considerar é o caráter simultaneamente modernizador e conservador do regime militar, que conciliou tendências por vezes contraditórias e abrigou agentes com ideias discrepantes, desde liberais a fascistas, passando por conservadores e nacionalistas autoritários. Por isso, o regime de 1964 hesitou entre uma ditadura clássica e o liberalismo autoritário, e manteve casas parlamentares abertas, ainda que manietadas, assim como os partidos e o aparato judiciário, embora eles tenham sido expurgados nos momentos de crise. Na mesma linha, o expurgo dos inimigos ideológicos foi temperado com jogos de acomodação que pouparam da repressão política parte dos intelectuais, acadêmicos e produtores culturais.
No final da ditadura, a acomodação também se fez presente por meio de negociações que tornaram a transição democrática mais suave, o que evitou punições para os responsáveis pelos atos violentos do regime autoritário. Nos governos seguintes, mesmo quando seus líderes tinham execrado a transição conciliada nos anos anteriores, arranjos e acomodações continuaram frequentes, o que colocou lado a lado no poder esquerdistas e conservadores, oponentes da ditadura e antigos apoiadores dos militares. Haveria exemplo melhor do caráter arraigado das tradições conciliatórias entre nós? Importante deixar claro: não se trata de afirmar que a nossa história é imóvel, que vivemos uma espécie de eterno retorno. O argumento é que a força da tradição conciliatória emperra a possibilidade de grandes rupturas, de modo que as mudanças vão ocorrendo apenas lentamente, quase sempre a partir de compromissos que implicam preservação de certos traços do passado.
Entretanto, tendo em vista os protestos de rua que temos visto desde as “jornadas” de junho de 2013, com o acréscimo recente das manifestações de março de 2015, vale a pena questionar se não estaríamos vivendo um momento político novo. Assim, não poderia terminar este texto sem enfrentar a pergunta: a conjuntura atual poderá significar mudanças importantes na cultura política?
Primeiro, há que se levar em conta as diferenças entre junho de 2013 e março de 2015: no primeiro caso, o movimento foi mais maciço e mais amplo do ponto de vista social e, além disso, com pauta política diferente em relação aos protestos recentes, que são exclusivamente voltados contra o governo Dilma Rousseff. De qualquer modo, os dois momentos teriam em comum o incremento na ocupação das ruas para fins de protesto político, e uma tendência a apostar mais no confronto e menos no arranjo e na negociação. Indícios suficientes de que novos tempos se avizinham no horizonte?
Obviamente, é preciso ter cautela e esperar os desdobramentos futuros. Seria muito arriscado elaborar prognósticos definitivos neste momento. De um lado, porque vivemos anteriormente outros momentos históricos de polarização e de confronto que foram superados à base de saídas conciliadas, culminando em grandes acomodações. Por outro lado, porque certas tendências da conjuntura atual confirmam características tradicionais, como a desconfiança em relação às instituições políticas. Nesse sentido, é significativo que os protestos de 2013 e os movimentos de oposição atuais não tenham sido convocados por instituições e muito menos pelos partidos, e sim por grupos organizados via redes sociais cujos líderes não são figuras públicas reconhecidas. Difícil supor que no rescaldo desses movimentos apareçam organizações associativas ou políticas sólidas. Portanto, muito cedo para imaginar uma quebra de paradigmas.
Seja como for, a gravidade do momento demanda muita atenção e trabalho, para que a crise atual leve ao fortalecimento da nossa incipiente democracia, e não à sua destruição.
Rodrigo Patto Sá Motta é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do grupo de pesquisa “História Política – Culturas Políticas na História”
Almond, G. e Sidney, V. The civic culture: political attitude and democracy in five nations. Boston: Little-Brown, 1965. Entre os historiadores que utilizam o conceito, podemos citar Jean-François Sirinelli e Serge Berstein.
Motta, R. P. S. “Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia”. In Motta, R.P.S. (org.) Culturas políticas na história: novos estudos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.
Vale mencionar que alguns brasilianistas argutos também se interessaram pelo tema, como Philippe Schmitter, que mencionou o pioneirismo de Oliveira Vianna no uso do conceito cultura política. Cf. Schmitter, P. C. Interest conflict and political change in Brazil. Stanford: Stanford University Press, 1971.
Vianna, F. J. de O. Instituições políticas brasileiras. São Paulo: José Olympio, 1949. É importante considerar que a expressão já circulava no Brasil desde a famosa publicação do Estado Novo Cultura política, iniciada em 1941. Os editores não definiram o sentido da expressão, mas pode-se inferir que ela expressava o desejo da elite estadonovista de oferecer cultura política a um povo considerado “inculto” e incapaz de autogoverno. A propósito, é importante destacar que não partilho o pessimismo de Vianna acerca das virtudes políticas do povo brasileiro, tampouco suas conclusões autoritárias.
Carvalho, J. M. de. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DaMatta, R. A casa & a rua. 5a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997; Freyre, G. Ordem e progresso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959; Holanda, S. B. de. Raízes do Brasil. 26a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; Faoro, R.. Os donos do poder. 3a ed. Rio de Janeiro: Globo, 1976.
Carvalho, J. M. de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 (sobretudo o capítulo 5).
Rodrigues, J. H. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1965.
Motta, R P S. As universidades e o regime militar. Cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014. Ver também Tavares, J. A. G. A estrutura do autoritarismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982 e Serbin, K. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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