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Resenhas
Uma verdade inconveniente
Documentário protagonizado por ex-vice-presidente dos EUA se agarra a clichês e pouco acrescenta ao debate sobre aquecimento global
Por Susana Dias
09/03/2007

Aquecimento global. Diante desse problema que perturba, incomoda, preocupa, entrar no cinema para assistir Uma verdade inconveniente, do diretor Davis Guggenheim, gera expectativas de que o filme contribua para ampliar a questão, multiplicar suas nuances e produzir novas percepções e sensibilidades. Mas as opções de Uma verdade inconveniente pouco contribuem nessa direção. Um filme-palestra repleto de clichês, tais como a idéia de que o aquecimento global é um problema moral e não político; a apresentação da ciência como conhecimento superior a outras formas de conhecimento, que nos oferecerá sempre as alternativas certas; o mito da natureza intocada; e a noção de consenso sobre o problema. Ao repetir esses chavões, que há mais de dez anos povoam as discussões ambientais sem acrescentar muito, aproveita pouco do que a arte do cinema possibilita. O filme provocou reações de cientistas, que o consideram pouco confiável e alarmante; de cineastas, especialmente documentaristas, que o avaliaram como pobre para se pensar nas relações entre realidade-ficção-verdade, além de ficarem indignados com o Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que o documentário recebeu; e ambientalistas, que atacaram a visão reducionista que o filme apresenta da complexidade sociopolítica da questão.

Mas se pensarmos que qualquer obra não é o que diz, mostra, pensa, mas o que dela dizemos, mostramos, pensamos, o filme se apresenta como mais uma rica oportunidade de trazer à tona inúmeras questões que têm sido exploradas pelas ciências humanas sobre o tema. O filme parece dizer mais pelo que está fora, do que pelo que há dentro dele. Embora também possamos encontrar nele possibilidades de fuga que explodem na tela em suas partes contraditórias, discordantes. São elas que produzem fissuras na tela, buracos por onde podemos escapar. Brechas que impossibilitam que o filme, com toda sua vontade de verdade, atinja sua plenitude, deixando escapar dúvidas, críticas, incertezas. São esses caminhos que me mobilizam a produzir esta resenha, talvez, inconveniente.

Foco na moral, exclusão da política

“O aquecimento global não é um problema político, é um problema moral”. Essa é a posição que Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos e protagonista do filme, defende repetidas vezes. Ao som da canção “Eu preciso acordar" (I need to wake up, em inglês), de Melissa Etheridge, que também ganhou uma estatueta, é construída a tônica da narrativa fílmica de Uma verdade inconveniente: a mudança nas condutas individuais. As palavras de ordem que aparecem na tela escura ao final do filme, também ditas de outra forma durante toda a projeção, potencializam a idéia: reciclem; economizem energia; divulguem essas informações; elejam os políticos comprometidos com a causa.

Ao optar por colocar o problema enfaticamente sobre a mudança de condutas dos indivíduos, reduzir o exercício da cidadania ao voto, e responsabilizar as pessoas pela situação atual do clima do planeta, o filme enfraquece o papel do Estado, transforma o direito de votar em obrigação, desconsidera outras formas de atuação política, como a dos movimentos sociais, por exemplo, e reduz a complexidade da questão à dimensão individual. Não se trata de diminuir a importância de nos mobilizarmos diante do problema ou de buscarmos opções e posturas mais sustentáveis, mas de questionar os efeitos que a simplificação e a complexificação do assunto podem produzir.

Os interesses políticos, econômicos e estratégicos relacionados às mudanças climáticas não aparecem no filme. Não se questiona o consumo, os padrões de desenvolvimento, o paradigma econômico vigente. Os norte-americanos, para quem o filme é sobretudo destinado, não teriam que abrir mão de seus estilos de vida, mas apenas aderir ao ecologicamente correto. A opção de crescimento econômico não é colocada em cheque pelo filme. Al Gore faz apenas uma denúncia rasa de que o governo Bush não assinou o Protocolo de Quioto e negou todo tempo a influência das atividades humanas na mudança climática. Esse ataque ao governo Bush coloca em questão a própria afirmativa de Gore de que o problema não é político. A não ratificação de Quioto não é um problema moral, mas político.

No documento sumário produzido pelo Grupo I para o Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), entretanto, a dimensão política é expressa já em seu título: “orientação para formuladores de políticas”. O foco do IPCC não parece ser apenas nas mudanças de posturas das pessoas, mas na esfera política, na qual as discussões e a implementação das chamadas medidas mitigadoras e adaptativas serão pensadas e gestadas. O governo Bush tem se mostrado, em entrevistas a revistas e jornais, sensível ao documento, avaliando-o como relevante. Mas o discurso recente do secretário de energia dos Estados Unidos, após a publicação do documento, expõe os novos desafios que os dados colocarão: “Nós somos um pequeno contribuintese olharmos o restante do mundo”. O Brasil é considerado, pelos novos dados, o quarto maior emissor de gases estufa, devido ao uso e ocupação dos solos.

Parece não ser suficiente que as alternativas energéticas sejam ambientalmente interessantes, mas, sobretudo, econômica e politicamente vantajosas. O interesse recente de Bush pelo álcool brasileiro traz à tona as discussões da sobretaxa ao álcool, colocando em cena novamente o fato dos Estados Unidos, e também a Europa, não abrirem mão dos subsídios agrícolas internos. As negociações para a liberalização do comércio mundial estão emperradas em razão da insistência dos países ricos em manter subsídios internos à agricultura, e também altas tarifas de importação para os produtos agrícolas dos países em desenvolvimento. Uma verdade inconveniente optou por não trazer à tona essas questões.

A situação climática desenhada não parece decorrer apenas da falta de investimentos, adoção de medidas mitigadoras e das atitudes pouco conscientes das pessoas, mas de uma intrincada e complexa rede de relações sociais, políticas, econômicas e culturais. Rede que Gore-filme ignoram. Ele faz uma simplificada relação entre economia e ambiente reduzindo a questão, que considera uma falsa oposição, a uma balança em que barras de ouro são colocadas em um prato e o planeta de outro. Arranca risos da platéia quando diz ser esta uma oposição simples de resolver: “se tirarmos o planeta...”; e se vê a balança despencando. As piadas e exemplos de Gore ridicularizam questões importantes, podendo levar a pensar que não são merecedoras de atenção, mas apenas de zombaria e riso.

Outras questões, há muito polêmicas, também são lançadas no filme sem a menor problematização. Como, por exemplo, a relação entre clima e doenças, que aponta o ressurgimento e disseminação de doenças, sem considerar o perigo do determinismo climático e socioeconômico; e a relação entre aumento populacional e emissão de gases estufa, que traz em novas vestes às teses malthusianas.

A exclusão da dimensão política do aquecimento global, a redução do problema à sua briga política direta com Bush, e o acionamento dos eleitores a escolherem corretamente seus representantes, fazem explodir na tela o efeito de propaganda política do próprio Al Gore. “Votem em mim, votem em mim. Votem certo. Votem em mim. Escolham certo. Votem em mim”, diziam algumas jovens à minha frente ao saírem da sessão. Al Gore não assume suas intenções de voltar a concorrer ao governo estadunidense, mas a possibilidade já está tão quente quanto o clima. A revista britânica The Economist considerou, em seu último número, o ex-vice-presidente é uma opção "ideal" entre os democratas devido a sua oposição à guerra no Iraque, sua opção pela bandeira verde e o desejo de acertar as contas com Bush.

“Goracle” anuncia o poder divino das ciências

“É preciso ouvir os cientistas”, diz Gore, cuja imagem no filme é construída como o grande messias que leva a palavra divina das ciências para todos os cantos do mundo a fim de salvar a humanidade. Em um experimento animado realizado no filme, um sapo é colocado em um béquer com água fervente e salta imediatamente. Em outro béquer, o sapo é colocado em água morna no fogo, que lentamente é aquecida sem que o sapo se dê conta. Uma mão humana, a de Gore, resgata o sapo antes que ele morra. Não é à toa que Gore já está sendo chamado de "Goracle" (combinação de seu sobrenome com palavra "oracle", oráculo em inglês).

Embora o filme enalteça o papel da ciência, como aquela que avalia com segurança e confiabilidade a situação atual e que pode prever inequivocamente o futuro, essa força, por ironia, se dilui no filme pelas opções que foram feitas. Os dados apresentados por Gore não correspondem às pesquisas mais recentes, não levam em consideração os três relatórios do IPCC publicados anteriormente nos anos de 1990,1995 e 2001 (o último documento foi publicado após o lançamento do filme). Desconsidera informações relevantes para cientistas, por exemplo, que outros gases como metano e óxido nitroso contribuem significativamente para o aumento do efeito estufa, dando ênfase apenas para o gás carbônico. É interessante perceber que, mesmo não usando dados que os cientistas consideram confiáveis, ou fazendo referências acadêmicas à comunidade científica, o efeito de verdade científica é alcançada no filme por meio dos dados apresentados com o uso de simulações, mapas, gráficos, diagramas e experimentos.

A diluição da ciência como entidade divina, que nos diz como estamos e o que devemos fazer, também acontece pelo uso por Gore em sua explanação de fontes as mais diversas, entre elas, amigos. Coloca, assim, seus amigos como fontes tão importantes quanto os cientistas. As fotografias que tirou em viagens, cartões postais, fotos de revistas etc, também são usados como provas de como certos lugares estariam antes e agora. Ao colocar lado a lado essas fontes diversas, tratando todas como legitimadoras de suas afirmações, ameniza a noção de superioridade da ciência para dizer e tratar do problema das mudanças climáticas. O filme aproxima-se, assim, da forma como grande parte das pessoas lidam com essas informações no cotidiano: misturando-as, conectando-as, multiplicando-as.

Embora o filme não diga, se é preciso estar atento aos dados oferecidos pelas últimas pesquisas, é preciso também refletir sobre o papel da ciência em relação à conservação da natureza e às alternativas mitigadoras que propõe. O conhecimento científico tem autorizado a adoção de práticas de conservação, bem como a realização de pesquisas e intervenções, que nem sempre alcançam os objetivos propostos e que geram conflitos e impactos socioambientais que não podem ser desconsiderados. É preciso dar ouvidos à comunidade científica, mas também dar ouvidos às outras organizações, povos, comunidades que há muito discutem esses temas. O diálogo entre o conhecimento científico e o conhecimento produzido por povos, grupos, comunidades os mais diversos é fundamental para que aconteça transformação das práticas científicas e políticas voltadas às mudanças climáticas.

A própria construção no filme de Gore, como um homem sensível aos problemas ambientais, não passa apenas pelo acesso aos dados científicos, mas pela vivência de situações, como a possibilidade de perda do filho que ficou hospitalizado quando pequeno. As cenas dos corredores e leitos vazios do hospital são acompanhadas de um relato emocionado de Gore sobre como esse momento despertou uma nova percepção para a noção de perda. Sugere que novas sensibilidades podem ser produzidas no deslocamento para outras situações. Mas o filme aproveita pouco essa possibilidade, optando por desfilar uma monstruosa quantidade de dados.

Natureza intocada

O filme começa e termina com a idílica imagem de uma mata ciliar que envolve o rio, protegendo-o. A natureza dita em seu estado “puro” ganha a tela. As cidades aparecem em imagens aéreas como vorazes devoradoras dessa natureza, com suas colossais construções e pólos industriais poluidores. Cidades como espaços impossíveis de abrigar a natureza, a vida. Ameaçadoras. Seres das cidades como seres anti-natureza. Gore diz em vários momentos, e também usa dramas pessoais seus, para dar potência a essas afirmações, de que podemos perder a terra, de que nossas gerações futuras não mais terão acesso à natureza porque nós a destruímos.

Ao persistir nessa dissociação entre natureza e cultura, em que a interferência humana é sempre colocada como negativa, o filme traz à tona a visão conservacionista da “natureza” que orientou as políticas dos Estados Unidos para criação, por exemplo, de parques e reservas sem a presença humana. Os modelos de conservação fundamentados na ausência do ser humano partem do princípio de que a natureza, para ser conservada, deve estar separada das sociedades humanas. Nessa perspectiva, qualquer intervenção humana é essencialmente negativa e prejudicial à conservação do mundo natural. Uma imobilizante opção para quem deseja que todos se envolvam com o problema.

Esse modelo cria uma hostilidade às comunidades que habitavam, e habitam no caso brasileiro e de outros países do Sul, as reservas, matas e florestas. O filme não explora essa discussão, também não traz à tona as polêmicas que vêm à tona sempre que esse assunto é colocado em pauta: a proposta de que os países pobres e em desenvolvimento mantenham intocadas as “grandes reservas de biodiversidade” que possuem, o que os países ricos já devastaram. Mais do que administrar e gerir os recursos naturais, o aquecimento global envolve a administração de visões e interesses humanos, muitas vezes divergentes.

Consenso acolhe muitas diferenças

Há uma intenção no filme, e também no texto do IPCC, de apresentar um cenário único consensual para o mundo aquecido à beira do abismo. Mas o cenário não é um só. Não porque existem cientistas, políticos ou pessoas de grupos os mais diversos que não acreditam no aquecimento global, mas porque entre os que crêem ser este um problema que merece atenção, há mundos muito distintos. A multiplicidade de cenários não é apenas futura, como projeta o IPCC, mas também passada e atual. O consenso acolhe muitas diferenças e divergências, mesmo entre cientistas.

Variam as análises sobre as quantidades de gases estufa liberados, as principais fontes emissoras, as possíveis formas de captura de carbono, a contribuição de mares e florestas, as melhores opções energéticas alternativas. O problema se multiplica ainda mais quando elementos diferentes são escolhidos e conectados: naturais, sociais, políticos, econômicos, culturais, morais. Diante da multiplicidade, apagada no filme, mas que se mostra em outros tantos filmes, reportagens, artigos científicos, ficam as questões: que cenários, passados e futuros serão escolhidos? Quais serão as implicações dessas escolhas? Quais serão as opções para reduzir e capturar carbono? Quais serão priorizadas? Que países terão mais peso nesse jogo das decisões? No filme, um urso polar, cansado de nadar, encontra um pequeno bloco de gelo que se espatifa na tentativa de subir. Na imensidão do oceano, a imagem do urso sem acolhimento faz pensar que, talvez, considerar que o consenso sobre o aquecimento global é repleto de diferenças silenciadas, pode nos fazer encontrar novas formas de acolhimento.

Uma verdade inconveniente
Direção: Davis Guggenheim
EUA, 2006