09/03/2007
Aquecimento global. Diante desse problema que perturba, incomoda, preocupa, entrar no cinema para assistir Uma verdade inconveniente,
do diretor Davis Guggenheim, gera expectativas de que o filme contribua
para ampliar a questão, multiplicar suas nuances e produzir novas
percepções e sensibilidades. Mas as opções de Uma verdade inconveniente
pouco contribuem nessa direção. Um filme-palestra repleto de clichês,
tais como a idéia de que o aquecimento global é um problema moral e não
político; a apresentação da ciência como conhecimento superior a outras
formas de conhecimento, que nos oferecerá sempre as alternativas
certas; o mito da natureza intocada; e a noção de consenso sobre o
problema. Ao repetir esses chavões, que há mais de dez anos povoam as
discussões ambientais sem acrescentar muito, aproveita pouco do que a
arte do cinema possibilita. O filme provocou reações de cientistas, que
o consideram pouco confiável e alarmante; de cineastas, especialmente
documentaristas, que o avaliaram como pobre para se pensar nas relações
entre realidade-ficção-verdade, além de ficarem indignados com o Oscar
da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que o
documentário recebeu; e ambientalistas, que atacaram a visão
reducionista que o filme apresenta da complexidade sociopolítica da
questão.
Mas se pensarmos que qualquer obra
não é o que diz, mostra, pensa, mas o que dela dizemos, mostramos,
pensamos, o filme se apresenta como mais uma rica oportunidade de
trazer à tona inúmeras questões que têm sido exploradas pelas ciências
humanas sobre o tema. O filme parece dizer mais pelo que está fora, do
que pelo que há dentro dele. Embora também possamos encontrar nele
possibilidades de fuga que explodem na tela em suas partes
contraditórias, discordantes. São elas que produzem fissuras na tela,
buracos por onde podemos escapar. Brechas que impossibilitam que o
filme, com toda sua vontade de verdade, atinja sua plenitude, deixando
escapar dúvidas, críticas, incertezas. São esses caminhos que me
mobilizam a produzir esta resenha, talvez, inconveniente.
Foco na moral, exclusão da política
“O aquecimento global não é um
problema político, é um problema moral”. Essa é a posição que Al Gore,
ex-vice-presidente dos Estados Unidos e protagonista do filme, defende
repetidas vezes. Ao som da canção “Eu preciso acordar" (I need to wake up, em inglês), de Melissa Etheridge, que também ganhou uma estatueta, é construída a tônica da narrativa fílmica de Uma verdade inconveniente:
a mudança nas condutas individuais. As palavras de ordem que aparecem
na tela escura ao final do filme, também ditas de outra forma durante
toda a projeção, potencializam a idéia: reciclem; economizem energia;
divulguem essas informações; elejam os políticos comprometidos com a
causa.
Ao optar por colocar o problema
enfaticamente sobre a mudança de condutas dos indivíduos, reduzir o
exercício da cidadania ao voto, e responsabilizar as pessoas pela
situação atual do clima do planeta, o filme enfraquece o papel do
Estado, transforma o direito de votar em obrigação, desconsidera outras
formas de atuação política, como a dos movimentos sociais, por exemplo,
e reduz a complexidade da questão à dimensão individual. Não se trata
de diminuir a importância de nos mobilizarmos diante do problema ou de
buscarmos opções e posturas mais sustentáveis, mas de questionar os
efeitos que a simplificação e a complexificação do assunto podem
produzir.
Os interesses políticos, econômicos e
estratégicos relacionados às mudanças climáticas não aparecem no filme.
Não se questiona o consumo, os padrões de desenvolvimento, o paradigma
econômico vigente. Os norte-americanos, para quem o filme é sobretudo
destinado, não teriam que abrir mão de seus estilos de vida, mas apenas
aderir ao ecologicamente correto. A opção de crescimento econômico não
é colocada em cheque pelo filme. Al Gore faz apenas uma denúncia rasa
de que o governo Bush não assinou o Protocolo de Quioto e negou todo
tempo a influência das atividades humanas na mudança climática. Esse
ataque ao governo Bush coloca em questão a própria afirmativa de Gore
de que o problema não é político. A não ratificação de Quioto não é um
problema moral, mas político.
No documento sumário produzido pelo
Grupo I para o Quarto Relatório de Avaliação do Painel
Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês),
entretanto, a dimensão política é expressa já em seu título:
“orientação para formuladores de políticas”. O foco do IPCC não parece
ser apenas nas mudanças de posturas das pessoas, mas na esfera
política, na qual as discussões e a implementação das chamadas medidas
mitigadoras e adaptativas serão pensadas e gestadas. O governo Bush tem
se mostrado, em entrevistas a revistas e jornais, sensível ao
documento, avaliando-o como relevante. Mas o discurso recente do
secretário de energia dos Estados Unidos, após a publicação do
documento, expõe os novos desafios que os dados colocarão: “Nós somos
um pequeno contribuintese olharmos o restante do mundo”. O Brasil é
considerado, pelos novos dados, o quarto maior emissor de gases estufa,
devido ao uso e ocupação dos solos.
Parece não ser suficiente que as
alternativas energéticas sejam ambientalmente interessantes, mas,
sobretudo, econômica e politicamente vantajosas. O interesse recente de
Bush pelo álcool brasileiro traz à tona as discussões da sobretaxa ao
álcool, colocando em cena novamente o fato dos Estados Unidos, e também
a Europa, não abrirem mão dos subsídios agrícolas internos. As
negociações para a liberalização do comércio mundial estão emperradas
em razão da insistência dos países ricos em manter subsídios internos à
agricultura, e também altas tarifas de importação para os produtos
agrícolas dos países em desenvolvimento. Uma verdade inconveniente optou por não trazer à tona essas questões.
A situação climática desenhada não
parece decorrer apenas da falta de investimentos, adoção de medidas
mitigadoras e das atitudes pouco conscientes das pessoas, mas de uma
intrincada e complexa rede de relações sociais, políticas, econômicas e
culturais. Rede que Gore-filme ignoram. Ele faz uma simplificada
relação entre economia e ambiente reduzindo a questão, que considera
uma falsa oposição, a uma balança em que barras de ouro são colocadas
em um prato e o planeta de outro. Arranca risos da platéia quando diz
ser esta uma oposição simples de resolver: “se tirarmos o planeta...”;
e se vê a balança despencando. As piadas e exemplos de Gore
ridicularizam questões importantes, podendo levar a pensar que não são
merecedoras de atenção, mas apenas de zombaria e riso.
Outras questões, há muito polêmicas,
também são lançadas no filme sem a menor problematização. Como, por
exemplo, a relação entre clima e doenças, que aponta o ressurgimento e
disseminação de doenças, sem considerar o perigo do determinismo climático e socioeconômico; e a relação entre aumento populacional e emissão de gases estufa, que traz em novas vestes às teses malthusianas.
A exclusão da dimensão política do
aquecimento global, a redução do problema à sua briga política direta
com Bush, e o acionamento dos eleitores a escolherem corretamente seus
representantes, fazem explodir na tela o efeito de propaganda política
do próprio Al Gore. “Votem em mim, votem em mim. Votem certo. Votem em
mim. Escolham certo. Votem em mim”, diziam algumas jovens à minha
frente ao saírem da sessão. Al Gore não assume suas intenções de voltar
a concorrer ao governo estadunidense, mas a possibilidade já está tão
quente quanto o clima. A revista britânica The Economist considerou, em
seu último número, o ex-vice-presidente é uma opção "ideal" entre os
democratas devido a sua oposição à guerra no Iraque, sua opção pela
bandeira verde e o desejo de acertar as contas com Bush.
“Goracle” anuncia o poder divino das ciências
“É preciso ouvir os cientistas”, diz
Gore, cuja imagem no filme é construída como o grande messias que leva
a palavra divina das ciências para todos os cantos do mundo a fim de
salvar a humanidade. Em um experimento animado realizado no filme, um
sapo é colocado em um béquer com água fervente e salta imediatamente.
Em outro béquer, o sapo é colocado em água morna no fogo, que
lentamente é aquecida sem que o sapo se dê conta. Uma mão humana, a de
Gore, resgata o sapo antes que ele morra. Não é à toa que Gore já está
sendo chamado de "Goracle" (combinação de seu sobrenome com palavra
"oracle", oráculo em inglês).
Embora o filme enalteça o papel da
ciência, como aquela que avalia com segurança e confiabilidade a
situação atual e que pode prever inequivocamente o futuro, essa força,
por ironia, se dilui no filme pelas opções que foram feitas. Os dados
apresentados por Gore não correspondem às pesquisas mais recentes, não
levam em consideração os três relatórios do IPCC publicados
anteriormente nos anos de 1990,1995 e 2001 (o último documento foi
publicado após o lançamento do filme). Desconsidera informações
relevantes para cientistas, por exemplo, que outros gases como metano e
óxido nitroso contribuem significativamente para o aumento do efeito
estufa, dando ênfase apenas para o gás carbônico. É interessante
perceber que, mesmo não usando dados que os cientistas consideram
confiáveis, ou fazendo referências acadêmicas à comunidade científica,
o efeito de verdade científica é alcançada no filme por meio dos dados
apresentados com o uso de simulações, mapas, gráficos, diagramas e
experimentos.
A diluição da ciência como entidade
divina, que nos diz como estamos e o que devemos fazer, também acontece
pelo uso por Gore em sua explanação de fontes as mais diversas, entre
elas, amigos. Coloca, assim, seus amigos como fontes tão importantes
quanto os cientistas. As fotografias que tirou em viagens, cartões
postais, fotos de revistas etc, também são usados como provas de como
certos lugares estariam antes e agora. Ao colocar lado a lado essas
fontes diversas, tratando todas como legitimadoras de suas afirmações,
ameniza a noção de superioridade da ciência para dizer e tratar do
problema das mudanças climáticas. O filme aproxima-se, assim, da forma
como grande parte das pessoas lidam com essas informações no cotidiano:
misturando-as, conectando-as, multiplicando-as.
Embora o filme não diga, se é preciso
estar atento aos dados oferecidos pelas últimas pesquisas, é preciso
também refletir sobre o papel da ciência em relação à conservação da
natureza e às alternativas mitigadoras que propõe. O conhecimento
científico tem autorizado a adoção de práticas de conservação, bem como
a realização de pesquisas e intervenções, que nem sempre alcançam os
objetivos propostos e que geram conflitos e impactos socioambientais
que não podem ser desconsiderados. É preciso dar ouvidos à comunidade
científica, mas também dar ouvidos às outras organizações, povos,
comunidades que há muito discutem esses temas. O diálogo entre o
conhecimento científico e o conhecimento produzido por povos, grupos,
comunidades os mais diversos é fundamental para que aconteça
transformação das práticas científicas e políticas voltadas às mudanças
climáticas.
A própria construção no filme de
Gore, como um homem sensível aos problemas ambientais, não passa apenas
pelo acesso aos dados científicos, mas pela vivência de situações, como
a possibilidade de perda do filho que ficou hospitalizado quando
pequeno. As cenas dos corredores e leitos vazios do hospital são
acompanhadas de um relato emocionado de Gore sobre como esse momento
despertou uma nova percepção para a noção de perda. Sugere que novas
sensibilidades podem ser produzidas no deslocamento para outras
situações. Mas o filme aproveita pouco essa possibilidade, optando por
desfilar uma monstruosa quantidade de dados.
Natureza intocada
O filme começa e termina com a
idílica imagem de uma mata ciliar que envolve o rio, protegendo-o. A
natureza dita em seu estado “puro” ganha a tela. As cidades aparecem em
imagens aéreas como vorazes devoradoras dessa natureza, com suas
colossais construções e pólos industriais poluidores. Cidades como
espaços impossíveis de abrigar a natureza, a vida. Ameaçadoras. Seres
das cidades como seres anti-natureza. Gore diz em vários momentos, e
também usa dramas pessoais seus, para dar potência a essas afirmações,
de que podemos perder a terra, de que nossas gerações futuras não mais
terão acesso à natureza porque nós a destruímos.
Ao persistir nessa dissociação entre
natureza e cultura, em que a interferência humana é sempre colocada
como negativa, o filme traz à tona a visão conservacionista da
“natureza” que orientou as políticas dos Estados Unidos para criação,
por exemplo, de parques e reservas sem a presença humana. Os modelos de
conservação fundamentados na ausência do ser humano partem do princípio
de que a natureza, para ser conservada, deve estar separada das
sociedades humanas. Nessa perspectiva, qualquer intervenção humana é
essencialmente negativa e prejudicial à conservação do mundo natural.
Uma imobilizante opção para quem deseja que todos se envolvam com o
problema.
Esse modelo cria uma hostilidade
às comunidades que habitavam, e habitam no caso brasileiro e de outros
países do Sul, as reservas, matas e florestas. O filme não explora essa
discussão, também não traz à tona as polêmicas que vêm à tona sempre
que esse assunto é colocado em pauta: a proposta de que os países
pobres e em desenvolvimento mantenham intocadas as “grandes reservas de
biodiversidade” que possuem, o que os países ricos já devastaram. Mais
do que administrar e gerir os recursos naturais, o aquecimento global
envolve a administração de visões e interesses humanos, muitas vezes
divergentes.
Consenso acolhe muitas diferenças
Há uma intenção no filme, e também no
texto do IPCC, de apresentar um cenário único consensual para o mundo
aquecido à beira do abismo. Mas o cenário não é um só. Não porque
existem cientistas, políticos ou pessoas de grupos os mais diversos que
não acreditam no aquecimento global, mas porque entre os que crêem ser
este um problema que merece atenção, há mundos muito distintos. A
multiplicidade de cenários não é apenas futura, como projeta o IPCC,
mas também passada e atual. O consenso acolhe muitas diferenças e
divergências, mesmo entre cientistas.
Variam as análises sobre as
quantidades de gases estufa liberados, as principais fontes emissoras,
as possíveis formas de captura de carbono, a contribuição de mares e
florestas, as melhores opções energéticas alternativas. O problema se
multiplica ainda mais quando elementos diferentes são escolhidos e
conectados: naturais, sociais, políticos, econômicos, culturais,
morais. Diante da multiplicidade, apagada no filme, mas que se mostra
em outros tantos filmes, reportagens, artigos científicos, ficam as
questões: que cenários, passados e futuros serão escolhidos? Quais
serão as implicações dessas escolhas? Quais serão as opções para
reduzir e capturar carbono? Quais serão priorizadas? Que países terão
mais peso nesse jogo das decisões? No filme, um urso polar, cansado de
nadar, encontra um pequeno bloco de gelo que se espatifa na tentativa
de subir. Na imensidão do oceano, a imagem do urso sem acolhimento faz
pensar que, talvez, considerar que o consenso sobre o aquecimento
global é repleto de diferenças silenciadas, pode nos fazer encontrar
novas formas de acolhimento.
Uma verdade inconveniente Direção: Davis Guggenheim EUA, 2006
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