Até bem pouco tempo atrás, era comum ouvir cientistas declararem sua desconfiança em relação a jornalistas e seu receio de que a informação sobre ciência fosse divulgada para o público leigo de forma distorcida ou superficial. E não era raro um jornalista queixar-se da resistência dos cientistas, tanto para a divulgação de seu trabalho, quanto para abrir mão da terminologia só entendida no meio acadêmico. Eis que surge em 1999 uma receita conciliatória, que aprimorada com alguns ingredientes e temperos ao longo do tempo, culminou na consolidação de uma revista no cenário nacional, a qual orgulhosamente chega agora a sua centésima edição.
A receita inicial: em março de 1999 começa a primeira turma do curso de especialização em jornalismo científico na Unicamp, que coloca lado a lado quatorze jornalistas e dezesseis cientistas de diversas áreas do conhecimento – como biólogos, cientistas sociais e químicos –, todos interessados em divulgar ciência. Um projeto do professor Carlos Vogt, coordenador do curso, e da jornalista Mônica Macedo, do Labjor/Unicamp, cria uma publicação eletrônica para funcionar como uma espécie de oficina prática para os alunos desse curso, e em julho vai ao ar o primeiro número da ComCiência, sobre o genoma da cana, antecipando em parte dois temas que ganhariam destaque posterior: o da genômica, enquanto ramo da ciência, e o da cana-de-açúcar como a menina dos olhos da atual política energética brasileira.
Primeiro ingrediente adicional: em outubro daquele mesmo ano, a Fapesp cria o Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico, o Mídia Ciência. As bolsas concedidas por esse programa possibilitaram que um grupo de alunos do curso encabeçasse um projeto para ampliar a publicação e criar novas seções para se somarem às reportagens que já vinham sendo feitas. Tempero especial: uma parceria entre o Labjor e a SBPC torna a ComCiência uma publicação oficial dessa que é a principal entidade representativa da comunidade científica no país. Após a revista abordar temas de áreas como urbanismo, astronomia e tecnologia da informação, em julho de 2000 ela começa uma nova fase, com periodicidade regular e publicação de artigos, reportagens e entrevistas, como a que o cientista social e futuro editor-chefe Rafael Evangelista fez com o diretor científico da Fapesp José Fernando Perez, sobre o Projeto Genoma.
De lá para cá, a ComCiência tem contribuído consideravelmente não apenas para aparar as arestas entre jornalistas e cientistas e alçá-los a parceiros na divulgação de ciência, como também para ampliar a circulação do conhecimento científico e o aprofundamento dos debates a ele relacionado. A revista passou de uma média mensal de 30 mil acessos em 2001 para 180 mil em 2003, e em janeiro de 2004, já era comparada às principais publicações do ramo. Quase vinte anos após a defesa de sua pioneira tese de doutorado sobre o jornalismo científico no Brasil, o professor da USP Wilson da Costa Bueno afirmou, em carta publicada na revista Pesquisa Fapesp nº 95 daquele mês: “Não tenho dúvida de que a revista Pesquisa Fapesp se constitui, hoje, ao lado da tradicional Ciência Hoje e da jovem ComCiência, nas maiores e melhores referências no campo da divulgação da pesquisa brasileira”.
Além de suas edições dedicadas às ciências exatas (Física Moderna, Modelagem Matemática, Nanociência e Nanotecnologia) e às ciências biológicas (Biodiversidade, Clonagem, Transgênicos, Epilepsia), a caçula desse trio – que tem como diretor de redação o poeta e lingüista Carlos Vogt – também sempre deu destaque às ciências humanas (Psicanálise, Migrações Internacionais, Linguagem, Violência) e a temas multidisciplinares (Amazônia, Cidades, Envelhecimento, Memória), com a participação de todos os membros de sua equipe sempre bastante heterogênea, formada por alunos e ex-alunos do curso de jornalismo científico da Unicamp, nas sugestões das pautas a serem abordadas a cada número.
A perenidade da informação
Inúmeros temas já abordados pela ComCiência continuam em destaque pela sua relevância e impactos na sociedade e, graças aos mecanismos de busca da internet, todas as matérias já publicadas nesses nove anos da revista são constantemente acessadas. Um dos temas mais destacados é o da edição sobre Petróleo, produto ligado a várias questões da atualidade, como a insustentável emissão de gases poluentes relacionada ao vertiginoso crescimento econômico da China, o impacto das escaladas da cotação do barril – que já atingiu US$ 140 no início de junho – nos preços dos alimentos, em particular, e na economia e geopolítica do mundo, de uma forma geral, e o receio quanto ao poder bélico de países que estão se beneficiando dessa alta, como Rússia, Irã e Venezuela. Essa última questão está intimamente ligada a uma reportagem ainda muito acessada: “Petróleo: fonte renovável de guerras”, da cientista social Marta Kanashiro.
O início de junho também assistiu a um fato marcante ligado a uma das edições de maior repercussão da ComCiência. O Partido Democrata dos Estados Unidos confirmou a indicação história do primeiro candidato negro a concorrer à presidência daquele país por um partido grande e com reais chances de vencer. Enquanto isso, aqui no Brasil, o Supremo Tribunal Federal pode retomar em breve o julgamento que dirá se as cotas para negros no Programa Universidade para Todos (ProUni) e em vestibulares de universidades públicas estão ou não em acordo com a Constituição. Em seu editorial para a edição da ComCiência sobre Brasil Negro, Carlos Vogt falava da relação entre a política de cotas no passado recente norte-americano e o atual protagonismo de negros na política dos Estados Unidos. Dessa mesma edição, a reportagem “Dia da Consciência Negra retrata disputa pela memória histórica”, da bióloga Susana Dias, ainda bastante acessada, chegou a ter 100 mil acessos em um único mês; e alguns textos foram muito reproduzidos em sites, revistas, publicações do movimento negro e apostilas de escola.
As solicitações para reprodução de textos da ComCiência em materiais didáticos e o seu uso no ensino básico são freqüentes. “Os artigos publicados na ComCiência estão me proporcionando uma valiosa ajuda. Baseando-me neles, estou elaborando um planejamento de uma boa parte das minhas aulas para o ensino do português nos níveis básico e pré-intermediário, que ministro aqui, na capital da Província de Salta, Argentina”, disse a brasileira Laura Valéria Vesga Gómez em carta para a redação da revista. Pelos dados preenchidos voluntariamente por leitores da ComCiência, em um cadastro que já superava 10 mil nomes em 2005 e hoje está em cerca de 13.500, é possível dizer que a revista é lida em todos os estados brasileiros e em pelo menos mais 30 países, sendo a Argentina, o terceiro país estrangeiro com maior número de leitores, atrás de Portugal e dos Estados Unidos, onde residem muitos estudantes e pesquisadores brasileiros.
Outro acontecimento histórico recente reaqueceu o acesso a uma das edições mais lidas e comentadas da revista. No final de maio, três anos após a aprovação da Lei de Biossegurança que libera pesquisas com células-tronco embrionárias para tratamento de doenças, o Supremo Tribunal Federal finalmente julgou que o texto da lei não fere os princípios constitucionais. Antes mesmo daquela lei ser aprovada, a ComCiência já dava a sua contribuição para o debate, com sua edição de fevereiro de 2004 inteiramente dedicada ao tema Células-Tronco. Um dos textos bastante reproduzidos daquela edição, inclusive em publicações impressas, é a resenha da jornalista Sabine Righetti sobre o livro Células-tronco e o futuro da medicina regenerativa (Stem Cells and the future of regenerative medicine), escrito por cientistas de cinco comissões que coordenam pesquisas biológicas e biomédicas nos Estados Unidos. O artigo “Clonagem terapêutica... e polêmica”, da bióloga da USP Lygia Pereira, também foi um dos mais lidos e comentados daquela edição.
A revista recebeu e continua recebendo dezenas de mensagens de pessoas querendo se informar mais sobre o tema, pedindo o contato de pesquisadores e até mesmo se oferecendo como voluntárias para pesquisas com células-tronco. E novamente profissionais do ensino usaram a revista para atuar como multiplicadores do conhecimento científico. “Frequentemente, utilizo a revista como fonte para debates, trechos para provas, murais. Estamos fazendo, em conjunto com o professor de história, um debate na escola sobre células-tronco, a visão da ciência e da religião. Muitos textos foram retirados da ComCiência”, conta a professora Juliana Rink, de Jundiaí (SP). Outra edição que esses professores aproveitaram no debate foi sobre Ciência e Religião, com textos sobre antagonismos e convergências dessas duas esferas da atividade humana. Um dos destaques dessa edição é a entrevista “Ciência na Índia multireligiosa” feita pela bióloga Germana Barata com o filósofo indiano Ranjit Nair.
O debate sobre células-tronco embrionárias travado no Supremo está diretamente relacionado a uma das questões que preocupa, tanto religiosos, como cientistas: a das origens. Mais uma vez, um acontecimento recente ligado a isso trata de um assunto sobre o qual a ComCiência já havia contribuído para o debate. No final de abril, os técnicos da Organização Européia de Pesquisa Nuclear (Cern, na sigla em inglês) colocaram o último imã supercondutor que faltava para concluir a construção do imenso anel do maior acelerador de partículas do mundo, entre a França e a Suíça. O objetivo desse megaempreendimento científico é tentar reproduzir o Big Bang, a grande explosão que teria dado origem ao universo. Textos que abordam o uso de aceleradores de partículas no estudo do universo aparecem nas edições da revista sobre Raios Cósmicos, Astronomia e Velocidade, como o artigo “Esticando o tempo e voltando ao passado”, do físico Roberto Belisário. Dessa mesma edição, outro destaque é a reportagem “Comunicação à velocidade da luz”, do jornalista Fábio Reynol.
Esse olhar para o que há de mais avançado em ciência e tecnologia, que torna os textos da ComCiência atuais mesmo anos após a sua publicação, nunca exclui a abordagem sobre o passado, com o qual sempre temos muito o que aprender. O revival nas telas de cinema de um herói dos anos 80, o arqueólogo Indiana Jones, reaqueceu os acessos à edição sobre Arqueologia e as descobertas quanto ao passado da humanidade. Outro número com um sabor especial trata do passado da própria investigação científica e se dedica ao tema Ciência dos Viajantes, com textos como a entrevista feita pela jornalista Simone Pallone com a historiadora Miriam Lifchitz Moreira Leite e a gostosa crônica de viagem “De volta ao Orinoco, seguindo von Humboldt”, em que o físico e jornalista Yurij Castelfranchi conta a sua aventura, ao refazer, 200 anos depois, o trajeto percorrido pelo pesquisador alemão na Amazônia. Uma pitada de crônica também aparece na reportagem de minha autoria “Pesquisa e exploração dos aromas amazônicos”, em que um PhD em química conta o que aprendeu com um ribeirinho paraense de 80 anos. Assim é a ComCiência, simples, sem ser superficial.
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