Em
2002, um ano após a formalização da Cidade do Conhecimento como
projeto da USP após um período de “incubação” no Instituto de
Estudos Avançados (IEA), o portal da Fundação Banco do Brasil
“Cidadania-e.com” repercutia as principais características do
projeto de digitalização emancipatória sob minha coordenação
após seleção em concurso público do IEA em 1999: “(...)
pelo menos três transformações prometem muito: maior
interatividade, mais inteligência e renovação de valores coletivos
e comunitários. Digo 'prometem' pois nenhuma tecnologia traz em si
mesma a garantia de um resultado, nunca é um processo automático.
Existe o potencial, mas a sua realização depende de fatores
culturais, sociais e econômicos”. Dez
anos depois de seu lançamento, uma década depois do Livro
Verde da Sociedade da Informação,
o potencial permanece praticamente intocado. Os indicadores de
ampliação do consumo de massa de hardware, software e conteúdos
importados, no entanto, exibiram performance explosiva, colocando em
primeiro plano as empresas start-up
que nasceram como spin-offs
de “cidades de conhecimento”, como Stanford.
Margaret
Pugh O´Mara publicou, em 2005, um livro que deveria ser traduzido e
adotado em todas as escolas de engenharia, economia e negócios,
comunicações e humanidades assim como livro de cabeceira de
reitores, lideranças políticas e intelectuais, hackers e militantes
de Pontos de Cultura e infocentros: Cities
of knowledge – cold war science and the search for the next Silicon
Valley
(Princeton University Press).
Em
2005, eu estava procurando o “next Silicon Valley” na localidade
da Praia da Pipa, município de Tibau do Sul, Rio Grande do Norte, em
convênio com o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação
(ITI) da Casa Civil da Presidência da República. Desde então,
enredado nos tentáculos da máquina político-burocrática do Estado
brasileiro, perdi mais tempo preenchendo formulários e concorrendo a
editais do que fazendo trabalho de campo e laboratório propriamente
dito. No entanto, o experimento foi um sucesso.
Escolhido
pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) como um dos sete mais
importantes projetos de inovação social e tecnológica em 2005,
recebi da agência um convite para levar adiante os resultados que
marcaram a extensão dos experimentos na Praia da Pipa para
comunidades no interior do Pará (Município de Abaetetuba) e Mato
Grosso (aldeia xavante no Município de Campinápolis).
Os ringtones
xavante foram objeto de reportagem pela BBC de Londres, um simulador
do celular com toques sagrados produzidos pelo índios da aldeia foi
mostrado no portal Globo.com
e resolvemos, em face da insuperável barreira das compras por pregão
(inviável comprar equipamento para um projeto-piloto, depois de
todas as torturas burocráticas o leilão correu sem atrair
interessados e o projeto foi suspenso por impossibilidade de equipar
o telecentro da rede Pipa Sabe). A Finep recebeu de volta cerca de
R$220 mil (era melhor devolver do que ser acusado de gastar o
dinheiro sem gerar resultados). Felizmente, apesar da burocracia,
surgiu no local a ONG EducaPipa, que assumiu o telecentro após
vários ciclos de capacitação em gestão de mídias audiovisuais
para o desenvolvimento local com a equipe de professores, estudantes,
funcionários e pesquisadores da USP que ajudaram a instalar no polo
turístico uma antena do programa Gesac (Programa de Inclusão
Digital do Governo Federal).
A
experiência burocrática atribulada, e em muitos momentos dolorosa,
foi no entanto recompensada fartamente pela confirmação da hipótese
de que a distribuição de hardware, software e knoware (ativos
intangíveis) torna viável a criação de espaços de cidadania ou
esferas públicas intensivas em serviços com valor agregado por
exploração do conhecimento. Ou seja, ficou demonstrado que a Praia
da Pipa é tão capaz de gerar tecnologia, conteúdo e valor quanto
Stanford.
O
Nordeste, entretanto, não está na encruzilhada da Guerra Fria nem
repousam suas praias sobre volumes monumentais de petróleo, ouro ou
bauxita. Enquanto os missionários da Cidade do Conhecimento da USP
dedicavam-se a projetos-piloto no Rio Grande do Norte, no Pará e no
Mato Grosso, o investimento público e privado pós-crise da bolha
pontocom (1998) na região do Vale do Silício voltava a acelerar,
com profusão de “anjos de projetos” (business
angels,
em inglês), VCs (venture
capitalists)
e despesas militares e industriais ainda mais colossais após o 11 de
Setembro, turbinando empresas como Google, Orkut, Twitter, Facebook e
outros “big brothers” com rápida expansão em todo o planeta –
quase como ponta de lança de uma nova sociodemocracia digital.
As
explosões sociais no Oriente Médio (Tunísia, Egito, Jordânia) e
os problemas do Google na China, no entanto, puseram a nu (para quem
se dispõe a ler mais que o WikiLeaks) a nova frente em que se trava
uma ciberguerra de propaganda, educação e tecnologias de informação
e comunicação.
Nesse
contexto, os investimentos dos governos brasileiros (federal,
estaduais e municipais) atravessaram a primeira década depois da
proclamação da “sociedade do conhecimento” sem atingir os
níveis e a qualidade exigidos para enfrentar e competir, em escala
global, tanto nos aspectos mais luminosos e emancipatórios da arte e
da cultura digitais quanto nas frentes menos evidentes da
“crackolândia” virtual contemporânea.
Os
dois experimentos críticos realizados pela equipe da Cidade do
Conhecimento entre 2003 e 2005 foram a estruturação de uma cadeia
produtiva de conteúdo digital para telefones celulares e a criação
de uma moeda voltada para o desenvolvimento local, ou seja, uma
combinação de mobile
learning
e mobile
payments
que continua atual.
Em
2009, esse projeto foi retomado a convite do Banco Central do Brasil,
que realizava o seu I Fórum de Inclusão Financeira. No mesmo ano, o
projeto “Moedas Criativas” recebeu dois prêmios do Ministério
da Cultura: Interações Estéticas – Residências Artísticas em
Pontos de Cultura (Projetos de Abrangência Nacional) e Cultura e
Pensamento, para organização de ciclos de debates. Foi também em
2009 que a primeira start-up
a surgir como spin-off
da Cidade do Conhecimento veio à luz, conquistando o Prime –
Primeira Empresa Inovadora, programa inédito da Finep que viabilizou
o lançamento no mercado do videogame Conflitos Globais, que em 2011
começa a ser distribuído em escolas públicas e privadas.
Dez
anos depois da criação da Cidade do Conhecimento na USP, o Brasil e
os nossos projetos de cidades criativas, do conhecimento ou qualquer
outro nome da moda que se prefira adotar, não chegam a ser gota
d´água no universo digital da economia da informação e das novas
mídias globais. Nossas sociedades continuam funcionando como
“currais eletrônicos” (para usar a clássica expressão de
Octavio Ianni), sufocadas entre a burocracia sem projeto, e a
inovação sem rumo nem condições, seja de competir, seja de
cooperar com o setor privado, o governo e a sociedade civil.
Retomo
a entrevista de 2002: “A
rede em si não garante a democracia. A máfia opera em rede. Os
canais abertos de televisão operam em rede. As colônias étnicas
são redes fortíssimas. Nesses casos a 'coesão' e a 'solidariedade'
parecem muito mais próximas de mecanismos de repressão, autodefesa
e obscurantismo do que propriamente oportunidades de democratização
e universalização de valores. Aliás, nada cresceu mais com a
internet, sobretudo entre os jovens, do que imagens como a de
'tribo'. No lugar da 'aldeia global' prevista por McLuhan, vemos
principalmente aldeias tribais, particularistas, sectárias e apenas
superficialmente globais. (...) a democratização é um processo
histórico de longo prazo, com momentos terríveis de retrocesso em
todo o mundo. Ainda assim, acho que se observarmos a história
contemporânea, felizmente a democracia ainda é o 'menos ruim' dos
regimes. Ela depende muito da inteligência coletiva, portanto há
uma espécie de círculo vicioso: a democracia avança apenas quando
a inteligência se democratiza, mas essa difusão da inteligência e
do conhecimento é possível apenas onde há mais democracia. Entre o
ovo e a galinha, aposto que a humanidade ainda consegue evoluir em
seu próprio benefício”.
Gilson
Schwartz é professor de economia na Escola de Comunicações e
Artes da USP, membro da Comissão do Programa de Pós-Graduação em
Meios e Processos Audiovisuais (PPMPA) e líder do grupo de pesquisa
“Cidade do Conhecimento”.
É também coordenador no Brasil do Consórcio Pro-Ideal.
Netse momento, prepara o lançamento do projeto “Moedas Criativas”,
com patrocínio do BNDES e
do Ministério da Cultura.
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