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Editorial
Ilusão e realidade
Por Carlos Vogt
10/11/2013

O romance A relíquia, de Eça de Queirós (1845-1900), publicado originalmente em folhetins na Gazeta de Notícias, do Porto, em 1887, traz como epígrafe a frase “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.”

A estátua em homenagem ao autor, no largo do Quintela, em Lisboa, traz também essa inscrição e registra, no olhar fixo de Eça para a figura olímpica feminina que lhe está nos braços, o duplo movimento que tanto marcou a estética realista, mesclando realidade e ilusão, enunciados num preceito tornado clássico: quanto mais ilusão do real, mais real.

Em A relíquia, essa duplicidade de realidade e ilusão, de história e de farsa é constitutiva da forma, e do conteúdo do romance, isto é, constitui uma característica estruturante da obra e mostra o quanto verdade e fantasia se combinam na história inventada e nas invenções da história.

A palavra ilusão, que vem do latim illusione, “ironia; ilusão; engano”, conforme anota o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, traz em sua raiz os elementos comuns ao verbo iludir, de illudere, e do adjetivo lúdico, do latim ludus, através do francês ludique. Em todas essas palavras, presente a ideia de diversão, brincadeira, engano, desrespeito, aventura e insulto.

No romance de Eça de Queirós, Teodorico Raposo narra a busca do encontro consigo mesmo, querendo resolver pela religião suas necessidades mundanas e querendo perder-se no mundo para encontrar-se, redimido, na religião.

A tia, Dª Maria do Patrocínio, é tão devota quanto rica, as duas coisas em excesso. Teodorico tem de fingir-se devoto para alimentar o sonho de herdar a fortuna da tia. Faz-se de piedoso para iludir a tia que quer ser iludida na devoção do impossível. Mas não se entrega fácil nem apeia ligeiro da sua ilusão galopante. Antes impõe tarefas, normas, regras de comportamento até delegar ao sobrinho o sonho, a missão e a encomenda de ir por ela, sucedâneo, à Jerusalém e lá rezar como se ela fosse, com fé e persistência, para interceder junto ao Deus de misericórdia por sua combalida saúde.

Teodorico aceita a missão com avidez de neófito, por devoção ao credo do engano e da ilusão. Quer, e acha que o conseguirá, iludir a tia, enquanto se diverte com os prazeres mundanos da vertigem de seu caráter, sempre dividido entre a ascese mística, baseada na infância, e a infância mítica construída sobre um forte viés feminino do cristianismo.

Teodorico Raposo é devoto de um Cristo feminino, como mostra o célebre sonho do personagem no romance. Este sonho, compartilhado com seu amigo, o erudito Topsius, que ocupa boa parte da narrativa, é uma alucinação e um desejo. Alucinação do personagem-narrador e desejo do autor, como bem anota Eduardo Lourenço ao observar que “o universo inteiro para Eça de Queirós está escrito em caracteres femininos”.

Teodorico Raposo é sempre duplo em seus movimentos e em suas intenções. Esta duplicidade se manifesta tanto na ambiguidade de seu caráter como nas ações e nos resultados destas para os fins que almeja, que são, eles próprios, ambíguos. O ápice desta duplicidade está, como atitude, no fato de Teodorico desejar devotamente a fortuna da tia e, por isso, converter-se num devoto da falsidade de comportamento. Por outro lado o personagem padece pela culpa da dissimulação e, no padecimento pela falsa devoção redime-se da insinceridade e converte-se num pecador sinceramente devotado ao logro da tia e ao objetivo de sua felicidade material e espiritual.

Não dá certo. Depois de percorrer os lugares santos e frequentar os bordéis que a viagem lhe oferece como alternativas mundanas ao sagrado de sua missão, Teodorico regressa para entregar a Dª Maria do Patrocínio a relíquia desejada, os galhos da coroa de espinhos do martírio de Cristo. Carrega também um embrulho parecido, contendo a camisola de uma de suas amantes, com a inscrição: “Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos.”

É este o embrulho que vai para a tia e a relíquia da viagem se desfaz em ilusão para quem a promove e para a promovida à faixa da desilusão.

Todos perdem e todos ganham. Ganha mais, contudo, o leitor que, da condição de iludido, pelo realismo da trama, passa à ilusão de sentir-se como protagonista da história.