REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
O animal simbólico - Carlos Vogt
Reportagens
Cronologia dos estudos do comportamento
Patricia Mariuzzo e Mariana Perozzi
Cultura: privilégio dos homens?
Susana Dias
A guerra dos genes contra a cultura
Yurij Castelfranchi
Os animais e a beleza
André Gardini
Raça canina não determina agressividade
Marta Kanashiro
Artigos
A sociobiologia e a crítica dos antropólogos
Gláucia Silva
A sociobiologia 30 anos depois
Carlos Roberto F. Brandão
Comunicação animal – problemas e métodos
João Queiroz
Comportamento, biologia e ciências sociais: um diálogo impossível?
João Azevedo Fernandes
Sob o espectro de Darwin
André Luís Ribeiro Ferreira
Resenha
Um relatório para uma academia
Germana Barata
Entrevista
Frans de Waal
Entrevistado por Carolina Cantarino
Poema
Evolução das espécies
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
A guerra dos genes contra a cultura
Por Yurij Castelfranchi
10/09/2006

A guerra eclodiu há trinta anos e está longe de chegar a uma trégua. Os soldados são principalmente americanos e ingleses. Os generais? Quase todos vivem nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha. Desta vez, porém, combatem entre si. Não com bombas inteligentes mas, sim, com espertas e afiadas canetas. Quando Edward O. Wilson, biólogo especialista em formigas, escreveu seu livro, em 1975, provavelmente não imaginava que tudo isso iria acontecer. Afinal, o que podia haver de estranho ou ameaçador em cunhar o nome “sociobiologia” para a nova disciplina de “estudo sistemático das bases biológicas de todo comportamento social”? Não era óbvio que os animais, inclusive o homem, em níveis diferentes, tinham o comportamento moldado em parte pelo ambiente (e pelo aprendizado) e em parte por seus genes? E não era também óbvio que os seres presentes no planeta só estavam vivos por terem um comportamento que não era contraproducente do ponto de vista da seleção natural?

Não havia nada de novo na idéia do Wilson. Os pais da etologia, Konrad Lorenz e Niko Tinbergen, já haviam estendido ao homem parte de suas hipóteses sobre a natureza e as funções do comportamento animal. Também Darwin pensava nisso. Antropólogos como Franz Boas e Ruth Benedict haviam imaginado uma interação complexa entre componentes inatos e aprendidos do comportamento. A novidade da sociobiologia era o nível de extensão e detalhe que a hipótese atingia. O velho debate sobre a relação entre natureza e cultura para a explicação do comportamento humano foi reformulado e não podria passar incólume: nas universidades norte-americanas da década de 1970, Wilson foi acusado de racismo, machismo, determinismo e justificação, por meio da retórica científica, do individualismo capitalista e burguês.

Mas muitos cientistas adoraram a nova onda. Afinal, quem mais conseguiria ter uma única hipótese e ser capaz de propor uma mesma explicação para comportamentos ou costumes humanos tão diferentes como a música e o suicídio de um kamikaze, a masturabação e a vaidade? Os sociobiólogos têm: adaptação. Todos esses comportamentos surgiram porque são - ou eram - em alguma medida, “adaptativos”, ou seja, aumentam as chance de um indivíduo de propagar parte de seus genes para gerações futuras. Ainda hoje, às vezes vestindo um novo traje e usando a retórica da nova disciplina chamada psicologia evolucionista, a sociobiologia tenta explicar, do ponto de vista da seleção natural e da propagação de genes, nossas escolhas sexuais e nossa vida social, o machismo e as guerras, o canibalismo, o tabu do incesto e até o infanticídio e o estupro.

Fantoches rebeldes do relojoeiro cego

Os estudos em animais que mostram uma ligação direta entre genes e comportamentos são inúmeros. Monogamia ou poligamia, cuidado parental ou a estratégia de ter uma prole numerosa porém abandonada, grupos sociais liderados por um macho dominante etc.: todas seriam “escolhas” que dependem do que dá mais chance de reprodução aos indivíduos. Assim, quase todas as caraterísticas do comportamento social dos animais foram explicadas em função de estratégias de sobrevivência diferentes para espécies adaptadas a situações diversas. Estudos recentes, por exemplo, mostram que em abelhas e formigas a diferente expressão de alguns genes influencia a transformação de um indivíduo em soldado, operário, rainhas (e não sua alimentação, como se pensava antes).

Por outro lado, há evidências cada vez mais fortes de que muitos animais não só têm capacidade de aprendizagem, como também sabem transmitir técnicas e conhecimentos. Pássaros possuem dialetos que aprendem escutando o canto de seus similares. Primatas aprendem, imitando a mãe, a utilizar ferramentas, lavar ou condimentar comida, utilizar plantas medicinais. Assim, tudo parece convergir para nos ensinar que animais humanos e não-humanos não estão separados por um abismo. Capacidades e atividades que pareciam tipicamente humanas estão presentes, em vários níveis, em outros animais, enquanto comportamentos que pareciam fruto do livre arbítrio são, pelo menos em parte, incentivados e moldados pela seleção natural. Eis porque os sociobiólogos entraram em euforia e passaram a explicar quase todo comportamento em termos de melhor sucesso reprodutivo.

Richard Dawkins, zoólogo e um dos maiores entusiastas da idéia, afirma sua célebre hipótese do “gene egoísta”: “somos máquinas de sobrevivência – robôs semoventes programados cegamente para preservar aquelas moléculas egoístas conhecidas com o nome de genes”. A seleção darwiniana, diz Dawkins, é um relojoeiro cego que programa os seres vivos com um único objetivo: propagar o maior número possível de cópias de seus genes.

O raciocínio dos sociobiólogos é simples. Se em um indivíduo, de qualquer espécie, surge um comportamento inato que lhe permite ter a prole ligeiramente mais numerosa que a de seus similares, essa caraterística tenderá a ser mais freqüente a cada geração, porque os que a possuem se reproduzem mais que os outros. Como conseqüência, os comportamentos que observamos hoje nos seres vivos, após mais de três bilhões de anos de evolução natural, deveriam ser, pelo menos em parte, explicáveis em termos de favorecer a procriação. Assim, o psicólogo Steven Pinker afirma que a linguagem é “um instinto”, um “módulo” do cérebro moldado pela seleção natural. Outros declaram que o crescimento exagerado do cérebro humano, em comparação com o dos outros primatas, pode ter sido devido a necessidades sexuais: maior o cérebro, dizem, mais eficaz era a paquera. E ainda: a masturbação teria como “função” melhorar a qualidade do esperma, o estupro favoreceria a propagação dos genes do estuprador.

Cientistas, convencidos que dois gêmeos que fazem a mesma coisa o fazem porque há um gene que os comanda, afirmam ter achado componentes genéticos para anorexia nervosa. Nenhuma surpresa para os psicólogos evolucionistas: eles, há tempos, afirmam a hipótese de que esse seria um comportamento ligado à seleção natural, e não somente uma patologia ligada à pressão social e familiar psicológica. A anorexia poderia ter um significado adaptativo, explicam: em sociedades onde a escassez de comida era elemento de forte risco para reprodução, era selecionada como “bela” a mulher forte. Em sociedades opulentas onde, pelo contrário, a magreza passa a ser sinal de alto status social e econômico, homens tenderiam a preferir as magras como parceiras porque, do ponto de vista da seleção natural, lhes garantiriam mais chance de passar seus genes para gerações futuras.

Com bastante criatividade (e, talvez, um pouco de falta de senso de ridículo), alguns psicólogos evolutivos dizem ter uma explicação darwiniana até para os atos daqueles que cometem atentados suicidas. A seleção natural deveria eliminar rapidamente todos os genes que, de alguma forma, favoreçam um comportamento suicida, porque são justamente genes que dificilmente passamos para nossos filhos. Apesar disso, comportamentos kamikaze seriam mantidos e favorecidos em determinadas espécies porque podem, apesar de matar o indivíduo que os executa, favorecer a sobrevivência de seu grupo de co-sangüíneos, que compartilham os mesmos genes. Assim, dizem os sociobiólogos, os kamikaze humanos poderiam estar, na verdade, agindo para defender uma imaginada comunidade de co-sangüíneos de algo que percebem como ameaça à sobrevivência do grupo: morrendo, tentariam garantir que seus genes sejam passados à frente.

E a música? Porque existe em todas as culturas? Ajuda os indivíduos a fazer mais filhos e propagar sues genes? Sem dúvida, afirmam muitos. A criminalidade também foi “explicada” assim: em algumas situações violar a lei pode ser “adaptativo”, ou seja, poderia favorecer a sobrevivência do indivíduo e sua reprodução. Então, respondem alguns, a pena de morte pode ser uma maneira de tornar o comportamento criminal não adaptativo: matar os criminosos atrapalha a propagação de genes da criminalidade na sociedade.

Até a cultura inteira, diz Dawkins, funcionaria propagando-se por meio de unidades (que não são genes e sim “memes”), selecionadas ou abandonadas dependendo de suas capacidades de se reproduzir melhor na mente das pessoas e em suas culturas. E o filósofo da mente Daniel Dennett defende que a mente humana é um algorítmo (poderia ser instalada num computador, ou qualquer outra máquina suficientemente complexa): a consciência é um efeito colateral da complexidade do cérebro, e o livre arbítrio uma ilusão.

Mas, se alguns adoraram as idéias de Wilson, outros odiaram. O antropólogo Marshall Sahlins decidiu dedicar um inteiro livro (Usos e abusos da biologia) para mostrar como a sociobiologia não passa de um enésimo movimento do pêndulo entre “culturização da natureza e a naturalização da cultura”. Até mesmo para o antropólogo materialista Marvin Harris, não há dúvida que o inato e os comportamentos selecionados ao longo da evolução tiveram um papel importante para a evolução dos hominídeos. Mas, “uma vez que a cultura decola e a seleção cultural opera plenamente” , o comportamento e o modo de pensar não são selecionados ou propagadas pela seleção darwiniana. “Para que calendários, criação de gado ou floppy disk sejam favorecidos pela seleção cultural”, diz Harris, num livro célebre sobre natureza e cultura (Our Kind, 1989), “não é preciso de nenhum incremento da taxa de sucesso reprodutivo dos indivíduos que inventam e propagam os novos costumes”. Algumas grandes invenções culturais, continua, aumentam o bem-estar e satisfazem a “natureza humana” mas são selecionadas justamente porque na verdade reduzem o sucesso reprodutivo. Um exemplo? A camisinha. Diferentemente dos outros animais, “nosso comportamento não é selecionado mais com base na capacidade de aumentar nosso sucesso reprodutivo mas, pelo contrário, em função de aumentar a satisfação de nossos impulsos e desejos”, independentemente de isto causar aumento ou diminuição de nossa reprodutividade. Para Harris, o infanticídio, por exemplo, nem sempre é praticado de forma que um darwinista gostaria (ou seja, matar algumas crianças para aumentar a probabilidade de sobrevivência de outras ou do grupo): em muitas culturas, as elites matam ou tornam estéreis parte de seus filhos não para garantir a vida dos outros e, sim, para não dividir o patrimônio ou o poder. Assim, afirma o antropólogo, o imperativo da procriação, é um mito. É justamente nas sociedade mais ricas que a taxa de natalidade desce abaixo de 2,1 filhos para cada mulher, que seria o mínimo necessário para que uma população humana não se extinga.

Mas, entre os generais do exército que não consideram a seleção darwiniana determinante para o comportamento social humano, não há só sociólogos, antropólogos, humanistas. Geneticistas, evolucionistas e paleontólogos de renome, tais como Stephen Jay Gould (autor, com Niles Eldredge, da teoria da evolução “pontuada”) e Richard Lewontin, estiveram entre os primeiros a entrar em guerra contra uma teoria que, declararam, parecia mais ideologia do que ciência: “ultra-darwinismo” vestido com reducionismo genético.

Gould, por exemplo, escritor brilhante, definiu os sociobiólogos de “fundamentalistas darwinianos”. E acrescentou, em sua célebre coluna no New York Times, que, sem dúvida, a adaptação por seleção natural é importante para explicar muitas características dos seres vivos: “sim, concordo: os olhos são para enxergar, os pés são para caminhar”. Mas, continua, nem todos os processos biológicos, nem toda a história da vida, se explicam só com base na força da seleção natural. Não foi por causa da seleção, explica, que os dinossauros, dominantes e adaptados, morreram, enquanto os pequenos e subordinados mamíferos sobreviveram e evoluíram até a aparição de uma criatura que entendesse a seleção natural. Contingências e acidentes, ou escolhas sociais também podem mudar o caminho da história.

Marx contra Darwin?

Alguns transformaram isso numa guerra entree genes e seleção versus livre arbítrio e natureza humana. Para outros, tornou-se quase uma guerra de Darwin contra Marx. Gould e Lewontin foram acusados de serem contra a sociobiologia não com base em fatos ou dados e, sim, por uma errônea leitura da teoria, devido a preconceitos políticos. Alguns acusam a sociobiologia de ser a projeção no mundo natural do modelo social capitalista e individualista. Outros acusam seus adversários de contrapor a ela não fatos ou teorias científicas e, sim, outra ideologia: a socialista.

Talvez o diálogo tenha sido tão acirrado porque tanto Marx quanto Darwin deixaram o legado de hipóteses e instrumentos de análise extremamente eficazes para analisar problemas complexos. Parece que seus seguidores, alguns também brilhantes, tendem a achar que estes pensadores forneceram não só ferramentas conceituais mas uma explicação final e universal. Talvez seja verdade. Como diz o senso comum, problemas e perguntas complexas têm soluções e repostas simples. Infelizmente, como todos sabemos, muitas vezes essas são as respostas erradas.