A guerra eclodiu
há trinta
anos e está longe de chegar a uma trégua. Os
soldados
são principalmente americanos e ingleses. Os generais? Quase
todos vivem nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha.
Desta vez, porém, combatem entre si. Não com
bombas
inteligentes mas, sim, com espertas e afiadas canetas. Quando
Edward O. Wilson, biólogo especialista em formigas, escreveu
seu livro,
em 1975, provavelmente não imaginava que tudo isso iria
acontecer.
Afinal, o que podia haver de estranho ou ameaçador em cunhar
o
nome “sociobiologia” para a nova disciplina de
“estudo
sistemático das bases biológicas de todo
comportamento
social”? Não era óbvio que os animais,
inclusive
o homem, em níveis diferentes, tinham o comportamento
moldado
em parte pelo ambiente (e pelo aprendizado) e em parte por seus
genes? E não era também óbvio que os
seres
presentes no planeta só estavam vivos por terem um
comportamento que não era contraproducente do ponto de vista
da seleção natural?
Não
havia nada de novo na idéia do Wilson. Os
pais da
etologia, Konrad Lorenz e Niko Tinbergen, já haviam
estendido ao homem
parte de suas hipóteses sobre a natureza e as
funções
do comportamento animal. Também Darwin pensava nisso.
Antropólogos como Franz Boas e Ruth Benedict haviam
imaginado
uma interação complexa entre componentes inatos e
aprendidos do comportamento. A novidade da sociobiologia era o
nível
de extensão e detalhe que a hipótese atingia. O
velho debate sobre a relação entre natureza e cultura para a
explicação do
comportamento humano foi reformulado e não podria passar
incólume: nas universidades
norte-americanas da década de 1970, Wilson foi acusado de
racismo, machismo, determinismo e
justificação, por meio da retórica
científica,
do individualismo capitalista e burguês.
Mas
muitos cientistas adoraram a nova onda. Afinal, quem mais conseguiria
ter uma única hipótese e ser capaz de
propor uma
mesma explicação para comportamentos ou costumes
humanos tão diferentes como a música e o
suicídio
de um kamikaze, a masturabação e a vaidade? Os
sociobiólogos têm:
adaptação. Todos
esses
comportamentos surgiram porque são - ou eram - em alguma
medida,
“adaptativos”, ou seja, aumentam as chance de um
indivíduo de propagar parte de seus genes para
gerações
futuras. Ainda hoje, às vezes vestindo um novo traje e
usando a
retórica da nova disciplina chamada psicologia evolucionista, a sociobiologia tenta
explicar,
do ponto de vista da seleção natural e da
propagação
de genes, nossas escolhas sexuais e nossa vida social, o machismo e
as guerras, o canibalismo, o tabu do incesto e até o
infanticídio e o estupro.
Fantoches
rebeldes do
relojoeiro cego
Os estudos em animais
que mostram
uma ligação direta entre genes e comportamentos
são
inúmeros. Monogamia ou poligamia, cuidado parental ou
a estratégia de ter uma prole numerosa
porém
abandonada, grupos sociais liderados por um macho
dominante etc.: todas seriam “escolhas” que
dependem
do que dá mais chance de reprodução
aos
indivíduos. Assim, quase todas as caraterísticas
do
comportamento social dos animais foram explicadas em
função
de estratégias de sobrevivência diferentes para
espécies
adaptadas a situações diversas. Estudos recentes,
por
exemplo, mostram que em abelhas e formigas a diferente
expressão
de alguns genes influencia a transformação de um
indivíduo em soldado, operário, rainhas (e
não
sua alimentação, como se pensava antes).
Por
outro lado, há evidências cada vez mais fortes de
que
muitos animais não só têm capacidade de
aprendizagem, como também sabem transmitir técnicas e conhecimentos.
Pássaros possuem dialetos que
aprendem
escutando o canto de seus similares. Primatas aprendem, imitando a
mãe, a utilizar ferramentas, lavar ou condimentar comida,
utilizar plantas medicinais. Assim, tudo parece convergir para nos
ensinar que animais humanos e não-humanos não
estão
separados por um abismo. Capacidades e atividades que pareciam
tipicamente humanas estão presentes, em vários
níveis,
em outros animais, enquanto comportamentos que pareciam fruto do
livre arbítrio são, pelo menos em parte,
incentivados
e moldados pela seleção natural. Eis porque os
sociobiólogos entraram em euforia e passaram a explicar
quase todo
comportamento em termos de melhor sucesso reprodutivo.
Richard
Dawkins, zoólogo e um dos maiores entusiastas da
idéia, afirma sua célebre hipótese do
“gene
egoísta”:
“somos máquinas de sobrevivência
– robôs
semoventes programados cegamente para preservar
aquelas moléculas egoístas conhecidas com o nome
de
genes”. A seleção
darwiniana, diz Dawkins,
é um relojoeiro cego que programa os seres vivos com um
único
objetivo: propagar o maior número possível de
cópias
de seus genes.
O
raciocínio dos sociobiólogos é
simples. Se em um indivíduo, de qualquer espécie,
surge
um comportamento inato que lhe permite ter a prole ligeiramente mais
numerosa que a de seus similares, essa caraterística
tenderá
a ser mais freqüente a cada geração,
porque os que
a possuem se reproduzem mais que os outros. Como
conseqüência,
os comportamentos que observamos hoje nos seres vivos, após
mais de três bilhões de anos de
evolução
natural,
deveriam ser, pelo menos em parte, explicáveis em termos de
favorecer a procriação. Assim, o
psicólogo
Steven Pinker afirma que a linguagem é “um
instinto”,
um “módulo” do cérebro
moldado pela seleção
natural. Outros declaram que o crescimento exagerado do
cérebro
humano, em comparação com o dos outros primatas,
pode
ter sido devido a necessidades sexuais: maior o cérebro,
dizem, mais eficaz era a paquera. E ainda: a
masturbação
teria como “função” melhorar
a
qualidade do esperma, o estupro favoreceria a
propagação
dos genes do estuprador.
Cientistas,
convencidos que dois gêmeos que fazem a mesma coisa o fazem
porque há um gene que os comanda, afirmam ter achado componentes genéticos para anorexia nervosa. Nenhuma surpresa para os psicólogos
evolucionistas: eles,
há
tempos, afirmam a hipótese de que esse seria um
comportamento ligado
à
seleção natural, e não somente uma
patologia
ligada à pressão social e familiar
psicológica.
A anorexia poderia ter um significado adaptativo, explicam: em
sociedades onde a escassez de comida era elemento de forte risco para
reprodução, era selecionada como
“bela” a
mulher forte. Em sociedades opulentas onde, pelo contrário,
a
magreza passa a ser sinal de alto status social e econômico,
homens tenderiam a preferir as magras
como
parceiras porque, do ponto de vista da seleção
natural,
lhes garantiriam mais chance de passar seus genes para
gerações
futuras.
Com
bastante criatividade (e, talvez, um pouco de falta de senso de
ridículo),
alguns psicólogos evolutivos dizem ter uma
explicação
darwiniana até para os atos daqueles que cometem atentados suicidas. A
seleção natural deveria eliminar rapidamente
todos os
genes que, de alguma forma, favoreçam um comportamento
suicida, porque são justamente genes que dificilmente
passamos
para nossos filhos. Apesar disso, comportamentos kamikaze
seriam
mantidos e favorecidos em determinadas espécies porque
podem,
apesar de matar o indivíduo que os executa, favorecer a
sobrevivência de seu grupo de
co-sangüíneos, que
compartilham os mesmos genes. Assim, dizem os sociobiólogos,
os kamikaze
humanos poderiam estar, na verdade, agindo para defender
uma imaginada comunidade de co-sangüíneos de algo
que
percebem como ameaça à sobrevivência do
grupo:
morrendo, tentariam garantir que seus genes sejam passados à
frente.
E a música? Porque existe em todas as
culturas?
Ajuda os
indivíduos a fazer mais filhos e propagar sues genes? Sem
dúvida, afirmam muitos. A criminalidade também foi “explicada”
assim: em algumas situações violar a lei pode ser
“adaptativo”, ou seja, poderia favorecer a
sobrevivência do
indivíduo e sua reprodução.
Então,
respondem alguns, a pena de morte pode ser uma maneira de tornar o
comportamento criminal não adaptativo: matar os criminosos atrapalha a propagação de genes da criminalidade na sociedade.
Até a
cultura inteira, diz
Dawkins, funcionaria propagando-se por meio de unidades (que
não
são genes e sim “memes”), selecionadas
ou
abandonadas dependendo de suas capacidades de se reproduzir melhor na
mente das pessoas e em suas culturas. E o filósofo da mente
Daniel Dennett defende que a mente humana é um
algorítmo
(poderia ser instalada num computador, ou qualquer outra
máquina
suficientemente complexa): a consciência é um
efeito
colateral da complexidade do cérebro, e o livre
arbítrio
uma ilusão.
Mas,
se alguns
adoraram as idéias de Wilson, outros odiaram. O
antropólogo
Marshall Sahlins decidiu dedicar um inteiro livro (Usos e
abusos da biologia) para mostrar como a sociobiologia
não
passa de um enésimo movimento do pêndulo entre
“culturização da natureza e a
naturalização
da cultura”. Até mesmo para o
antropólogo materialista
Marvin
Harris, não há dúvida que o inato e os
comportamentos selecionados ao longo da evolução
tiveram um papel importante para a evolução dos
hominídeos.
Mas, “uma
vez que a cultura decola e a seleção cultural
opera
plenamente” , o comportamento e o modo de pensar
não são
selecionados ou propagadas pela seleção
darwiniana.
“Para que calendários,
criação de gado ou
floppy disk sejam favorecidos pela
seleção
cultural”, diz Harris, num livro célebre sobre
natureza e
cultura (Our Kind, 1989), “não
é preciso
de nenhum incremento da taxa de sucesso reprodutivo dos
indivíduos
que inventam e propagam os novos costumes”. Algumas grandes
invenções culturais, continua, aumentam o
bem-estar e
satisfazem a “natureza humana” mas são
selecionadas justamente porque na verdade reduzem o
sucesso
reprodutivo. Um exemplo? A camisinha. Diferentemente dos outros
animais, “nosso comportamento não é
selecionado
mais com base na capacidade de aumentar nosso sucesso reprodutivo
mas, pelo contrário, em função de
aumentar a
satisfação de nossos impulsos e
desejos”,
independentemente de isto causar aumento ou
diminuição
de nossa reprodutividade. Para Harris, o infanticídio, por
exemplo, nem sempre é praticado de forma que um darwinista
gostaria (ou seja, matar algumas crianças para aumentar a
probabilidade de sobrevivência de outras ou do grupo): em
muitas culturas, as elites matam ou tornam estéreis parte de
seus filhos não para garantir a vida dos outros e, sim,
para
não dividir o patrimônio ou o poder. Assim, afirma
o antropólogo, o imperativo da
procriação,
é um mito. É justamente nas sociedade mais ricas
que a
taxa de natalidade desce abaixo de 2,1 filhos para cada mulher, que
seria o mínimo necessário para que uma
população
humana não se extinga.
Mas, entre os generais
do exército
que não consideram a seleção
darwiniana
determinante para o comportamento social humano, não
há
só sociólogos, antropólogos,
humanistas.
Geneticistas, evolucionistas e paleontólogos de renome, tais
como Stephen Jay Gould (autor, com Niles Eldredge, da teoria da
evolução “pontuada”) e
Richard Lewontin,
estiveram entre os primeiros a entrar em guerra contra uma teoria que,
declararam, parecia mais ideologia do que ciência:
“ultra-darwinismo” vestido com reducionismo
genético.
Gould,
por exemplo, escritor brilhante, definiu os
sociobiólogos
de “fundamentalistas darwinianos”. E acrescentou,
em sua
célebre coluna no New York Times, que, sem dúvida, a
adaptação por seleção
natural é importante para explicar muitas
características
dos seres vivos: “sim, concordo: os olhos são para
enxergar, os pés são para caminhar”.
Mas,
continua, nem todos os processos biológicos, nem toda a
história da vida, se explicam só com base na
força
da seleção natural. Não foi por causa
da
seleção, explica, que os dinossauros,
dominantes e
adaptados, morreram, enquanto os pequenos e subordinados
mamíferos
sobreviveram e evoluíram até a
aparição
de uma criatura que entendesse a seleção natural.
Contingências e acidentes, ou escolhas sociais
também
podem mudar o caminho da história.
Marx contra Darwin?
Alguns
transformaram isso numa guerra entree genes e
seleção versus livre arbítrio e
natureza humana. Para outros,
tornou-se quase uma guerra de Darwin contra Marx. Gould e Lewontin
foram acusados de serem contra a sociobiologia não com base
em
fatos ou dados e, sim, por uma errônea leitura da teoria,
devido a preconceitos políticos. Alguns acusam a
sociobiologia
de ser a projeção no mundo natural do modelo
social
capitalista e individualista. Outros acusam seus adversários
de contrapor a ela não fatos ou teorias
científicas e,
sim, outra ideologia: a socialista.
Talvez
o diálogo tenha sido tão acirrado porque tanto
Marx
quanto Darwin deixaram o legado de hipóteses e instrumentos
de
análise extremamente eficazes para analisar problemas
complexos. Parece que seus seguidores, alguns também
brilhantes,
tendem a achar que estes pensadores forneceram não
só
ferramentas conceituais mas uma explicação final
e
universal. Talvez seja verdade. Como diz o senso comum, problemas e
perguntas complexas têm soluções e
repostas
simples. Infelizmente, como todos sabemos, muitas vezes essas
são
as
respostas erradas.
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