Parece um contra-senso de redundância falar em utopias virtuais como se alguma forma de utopia pudesse ser real, já que o termo designa, pelo significado etimológico, um lugar que não há, que não existe e que, por não existir, nos atrai com o fascínio de promessas impossíveis de serem, na realidade, realizadas.
Há, é verdade, as chamadas utopias negativas, mais próximas, por isso, da realidade e do peso constrangedor que o indivíduo tem de suportar em sociedades extremamente organizadas, controladas e controladoras. As expressões literárias mais próximas de nós no século XX, e mais fortes desse tipo de utopia com sinal trocado ─ por isso mesmo chamadas distopias ─ estão nos romances Admirável mundo novo, de 1932, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, publicado originalmente em 1948. No primeiro caso, mais à direita, o totalitarismo se consolida pelo controle tecno-científico da sociedade; no segundo, mais à esquerda, pelo controle político.
Há muitas utopias nos livros de ficção e não menos ficção nas utopias neles representadas. O livro, como se sabe, que deu origem ao termo foi publicado em 1516. Utopia, obra de Thomas More (1478-1535), a ilha do lugar nenhum, sem tempo, sem coordenadas, é uma crítica à situação econômica da Inglaterra ao tempo do autor e também à idealização de um Estado político de igualdade e de virtudes sociais. Matriz do socialismo utópico criticado no século XIX por Marx, em contraposição ao chamado socialismo científico ─ ele próprio uma nova forma de utopia ─, o livro de Thomas More inaugurou uma linhagem de publicações, através dos séculos, que todas foram beber, com maior ou menor saciedade, nas fontes, que tranquilas, na Grécia antiga, jorravam, n' A República, de Platão, o ideal de igualdade entre todos (que não fossem escravos), sem ganância e com virtude.
São muitas, pois, as utopias que trazem os livros e que os livros e também os mitos trazem aos medos e às esperanças dos homens através dos tempos.
Em todas elas há, de uma maneira, ou de outra, a presença de dois traços, dois componentes, mais ou menos intensos, mas sempre constantes: a tristeza e a igualdade.
Como escrevi no ensaio Clones, utopias e ficções : “Num caso, pinta-se o paraíso perdido a que se quer voltar, no outro, projeta-se, em negativo, o paraíso que já se perdeu sem, contudo, a consciência da perda e da própria impossibilidade de sua recuperação. [...] A impossibilidade de sucesso da aventura traz a tristeza do esforço desgastado da humanidade”.
Nova retórica
Na contemporaneidade, fomos nos habituando com um conjunto de novas expressões, todas procurando apreender e comunicar as características mais marcantes do mundo que emergiu da globalização total da economia, cujos últimos obstáculos ruíram com o Muro de Berlim, em 1989, e de cuja ruína nasceu prematuramente o século XXI. Assim, sociedade da informação, sociedade global da informação, economia do conhecimento, sociedade do conhecimento, são expressões que se equivalem, pertencem ao mesmo paradigma, e se não recobrem exatamente os mesmos significados, têm, contudo, em comum a aspiração retórica da igualdade social, agora articulada na figura do igualitarismo do acesso à informação.
De que é feita essa retórica? Entre outras, de expressões como: novo paradigma tecno-econômico, resgatar a dívida social, alavancar o desenvolvimento, constituir uma nova ordem social, excluir a exclusão, economia baseada na informação, no conhecimento e no aprendizado, onda de destruição criadora, evitar que se crie classe de info-excluídos, alfabetização digital, fluência em tecnologias de informação e comunicação (as TICS) aprender a aprender, inclusão social como prioridade absoluta, democratização dos processos sociais pelas tecnologias da informação e comunicação, vencer a clivagem social entre o formal e o informal, agregar valor, redes de conteúdos que farão a sociedade mover-se para a sociedade da informação, igualdade de oportunidades de acesso às novas tecnologias, condição indispensável para a coesão social no Brasil...
Há mais, mas o que aí está ilustra essa retórica da virtualidade igualitária que vai tecendo a cultura em que florescem as utopias virtuais, uma cultura da qual a juventude se apropria, transforma em território de ocupação.
Geografia estendida
As utopias virtuais não são tristes, nem são alegres. Tendem antes a ser chatas e aborrecidas com seus mantras de auto-ajuda e de ajuda autômata, tentando compensar pelo virtual uma igualdade meio abstrata, meio de artifício, que não se dá na realidade.
Um dos maiores feitos do mundo informatizado foi o de tornar a si próprio difuso, porque difundido, oferecendo de vez as condições técnicas e tecnológicas para que dele se desenvolvesse, em nós, uma percepção feita de simultaneidade pura, abolindo as distâncias dos acontecimentos, no tempo e no espaço, reduzindo e amplificando a dimensão do simbólico, de modo a confundir a coisa representada com a sua representação coisificada em simulacro, agora independente do próprio ato de representar.
Uma das características marcantes da globalização torna-se efetivamente realizável pelo desenvolvimento das TICS e consiste na livre circulação do capital financeiro, capaz de migrar com mobilidade incrível de uma praça de mercado para outra, num piscar de olhos, em busca de condições sempre mais favoráveis ao seu ganho e à sua multiplicação, o que, em contrapartida, possibilita também, que condições desfavoráveis, sobretudo em países centrais, logo reflitam crítica e, às vezes, catastroficamente, na periferia.
Por isso o bater das asas da borboleta nos EUA pode provocar terremotos econômicos no mundo ou, ao menos, abalos sísmicos, no equilíbrio econômico do planeta. Se a borboleta bater as asas na China, podemos estar certos de que hoje a Terra treme também. E, dependendo de baterem por júbilo ou desespero, viveremos todos, mesmo estando do outro lado dos oceanos, a euforia ou a disforia dos acontecimentos distantes, às vezes numa ciclotimia de estados antagônicos capaz de pôr as sociedades planetárias em ritmo de psicopatologia bipolar.
O mundo globalizado, conectado, ligado na e pela teia de informação e comunicação tecida pela internet é, assim, quando não aborrecido e chato, um mundo ágil e instantâneo que se oferece sob a forma da alegria fugaz e da fugacidade alegre da percepção do tempo e do espaço como só presente, numa geografia de aproximações na qual o viajante não se move e, no entanto, viaja, sem sair do lugar.
A esse mundo planificado, no sentido de tornado plano, e no sentido de planejado ao extremo, é preciso oferecer conteúdos que adensem a superficialidade das imagens penduradas em si mesmas e quebrem o ritmo monótono de ordenamento de mesmice e desencanto.
As facilidades de comunicação e de circulação da informação oferecidas pela rede global de computadores abre possibilidades reais de programas e projetos culturais e de educação antes não imaginados e sequer vislumbrados.
Poder pensar na oferta de educação formal pública e gratuita, com e pela utilização intensiva das tecnologias de informação e comunicação, nos põe diante de uma nova concepção da escola, com uma nova geografia estendida, alargada, socialmente, distribuída e que, aí sim, permite, com propriedade, falar de uma boa utopia virtual com os pés na realidade.
Notas
Artigo publicado, originalmente, na revista Onda Jovem, ano 4, n. 13, dez., 2008/fev., 2009, p. 32-35, com o título “Igualdade virtual”.
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