A perspectiva de uma aliança entre Argentina e Brasil no que diz respeito a uma atuação frente aos temas da política regional e internacional vem sendo mencionada há muitos anos. Em 1996 foi criado nos marcos do Mercosul o Mecanismo de Consulta e Concertação Política (MCCP) com o objetivo, entre outros, de buscar posições internacionais comuns entre os países membros. Mas embora os dois maiores parceiros do bloco vissem a importância de se atuar conjuntamente em termos internacionais e buscassem incrementar as consultas através do MCCP, suas políticas externas seguiram sendo consideradas área sensível e vistas por ambos como questão de soberania nacional.
A opção argentina pelos Estados Unidos como principal parceiro político-estratégico durante os anos 90 dificultou ainda mais a aproximação com o Brasil naquele momento. Mas, a mudança do comportamento argentino frente aos Estados Unidos a partir de 2002 não resolveu as divergências. Existe uma permanente indefinição no interior dos meios políticos argentinos sobre o papel exato que Brasil e Estados Unidos devem ter na política externa do país, o que marca o comportamento externo argentino em termos gerais. E parte significativa da diplomacia argentina mostrou-se sensível a qualquer sinal de proeminência do Brasil no interior do Mercosul, identificando-o como país que busca sempre mais poder na esfera internacional em detrimento dos outros parceiros de bloco.
Por seu turno, a diplomacia brasileira não buscou superar os limites de sua concepção realista de soberania nacional. Procurou sempre evitar que o arranjo de integração viesse a significar uma partilha de soberania no que se refere ao comportamento brasileiro frente a outros parceiros externos. Como agravante, desde a formação do Mercosul, a corporação diplomática brasileira tem uma visão da Argentina como sócio menor, e percebe dois elementos que dificultam a construção de uma parceria mais sólida no campo de política externa. Por um lado, as mudanças freqüentes que ocorrem na política externa argentina geram desconfiança. Por outro, a utilização por parte dos meios políticos argentinos de temas de política exterior para conseguir frutos na política interna faz com que a diplomacia brasileira mantenha um baixo perfil diante de declarações provocativas noticiadas na mídia argentina. Em relação aos Estados Unidos, o Brasil manteve durante todo o período um comportamento mais constante.
Em 2003, a ascensão em poucos meses de Lula da Silva e Néstor Kirchner abriu espaços para a construção de uma parceria mais sólida no campo político entre os dois países. Foi levantada por políticos e acadêmicos a idéia de que a coexistência de governos de esquerda facilitaria esta aproximação, e não faltaram declarações dos dois lados veiculadas na imprensa que apontavam nesse sentido. Houve referências favoráveis a uma aliança estratégica entre os dois países capaz de dar respostas conjuntas frente a temas regionais e internacionais.
Essa aliança mais permanente, porém, seria um elemento ainda a se construir e difícil por tratar-se de uma relação assimétrica onde as partes não têm claro o peso que cada uma delas pode ocupar. O peso desigual dos dois países no cenário tanto regional quanto internacional, assim como as numerosas assimetrias existentes entre ambos em termos de tradição e eficiência de atuações externas, dificultam a construção dessa parceria.
O início do governo de Lula significou para o Itamaraty um fortalecimento de uma corrente que defende com mais vigor a construção de uma liderança brasileira na América do Sul. Com isso, a política deste governo para a região buscou aprofundar o comportamento que já vinha sendo seguido anteriormente, mas de forma mais ativa. A segurança na América do Sul vem sendo articulada à intenção de construir um papel mais protagônico por parte do Brasil na zona e identificada com a estabilidade democrática. Os principais exemplos foram as atuações frente a situações de crise experimentadas por países na região e a formação da Comunidade Sul-Americana de Nações.
Em pouco tempo, essa política proativa brasileira entrou em choque com percepções mais nacionalistas no interior da Argentina que a identificaram como imposição de uma liderança individual do Brasil. A reivindicação de uma “desconstrução” da aliança em construção com Brasil por parte de setores da diplomacia argentina pode ser sentida na crise política experimentada em maio de 2005 entre os dois países. Esta inaugurou um período complicado nas relações de ambos que parecia difícil de ser superado.
No quadro de afastamento entre ambos, em ações frente aos países da região a Argentina buscou colocar-se como um parceiro alternativo ao Brasil que poderia ocupar também um papel de liderança. Nas situações de crise a Argentina adotou um perfil próprio: buscou assumir uma posição intermediária entre a postura mais intervencionista dos Estados Unidos e a posição de mediador discreto do Brasil, desafiando os esforços brasileiros de construção de uma liderança regional autônoma. Nos marcos da Comunidade Sul-Americana de Nações, a diplomacia argentina buscou mostrar seu descontentamento com a formação de um bloco em torno da liderança brasileira. Levou adiante, neste marco, uma aproximação significativa com o governo venezuelano de Hugo Chávez também no campo político.
Por outro lado, porém, não deixou de existir a percepção dos dois lados da importância de se evitar atritos e de se consolidar posições comuns já conquistadas sobretudo em temas regionais. Frente às manifestações de desagrado por parte da Argentina diante do ativismo brasileiro em política externa para a região, a diplomacia brasileira procurou manter um baixo perfil para não comprometer as relações.
A crise política no Brasil abriu espaços para que a Argentina procurasse ocupar novas posições de liderança (ou mediador) entre países sul-americanos ocupadas até então pelo Brasil. Este cenário trouxe uma diminuição da diplomacia presidencial brasileira e, portanto, maior equilíbrio entre ambos em função da crise; o que favoreceu a implementação, por parte da Argentina, de um comportamento mais conciliador. A Cúpula das Américas, que teve lugar em outubro em Mar del Plata, abriu uma nova fase nas relações Brasil-Argentina.
A Cúpula teve um peso político interno importante para a Argentina e levou a diplomacia argentina a uma revisão do papel que os Estados Unidos deveria ocupar em seu arco de alianças externas. A diplomacia argentina, alinhada com os demais países do Mercosul e a Venezuela, evitou a referência à importância da formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) entrando em choque direto com a diplomacia norte-americana e com o presidente mexicano (defensor da área de livre comércio). Assumiu uma postura “terceiro-mundista” somando-se ao discurso de Chávez. A diplomacia brasileira manteve baixo perfil, mas no geral secundou as posições concretas da Argentina em oposição à Alca.
Pouco depois, a reunião de Foz do Iguaçu entre Lula e Kirchner, de comemoração dos 20 anos da declaração que deu início à integração entre ambos os países, foi um marco importante desta aproximação. Desde aquele momento até os dias atuais as relações entre ambos parecem caminhar no sentido da construção – difícil – de uma aliança política. A entrada da Venezuela no Mercosul deu maior equilíbrio ao bloco e favoreceu a aproximação entre Brasil e Argentina, que passaram a atuar de forma articulada. Neste marco, houve avanços importantes no campo econômico, com a assinatura do Mecanismo de Adaptação Competitiva (uma reivindicação já de muito tempo do governo argentino, difícil para o governo brasileiro).
Mas os bons ventos do momento atual não são garantia de uma aliança futura. As interações políticas entre ambos são instáveis e podem experimentar modificações em função de circunstâncias externas às relações propriamente ditas. Não existe no interior das diplomacias brasileira e argentina um consenso de como tratar o país vizinho. Em princípio, a Argentina deve encontrar a forma de ser confiável para o Brasil, enquanto o último terá que absorver custos maiores para cooperar com seu parceiro menor. Mas as medidas são percebidas por ambos os lados de forma diferente.
Essa parceria não aponta necessariamente para que todas as dimensões das políticas externas de ambos os países sejam comuns. Em situações concretas sempre podem existir divergências de interesses, estilo e preferências. Mas é importante que exista uma percepção e comprensão partilhada dos cenários regional e internacional que dê base às atuações externas dos dois países e possibilite a construção de uma aliança política mais sólida.
Miriam Gomes Saraiva é professora do programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - miriamsaraiva@terra.com.br
|