“Por favor, não bata no vidro, não perturbe os peixes”, um aviso totalmente plausível em aquários dos mais diversos estabelecimentos comerciais. Evitando tarefas exaustivas e desnecessárias de limpeza e, principalmente, mantendo uma ordem pré-estabelecida: peixes no aquário e pessoas olhando. Não há nenhum estranhamento ou inquietação nessa situação. Os televisores e o sistema televisivo, em geral, poderiam vir com o mesmo anúncio. Porém, tal observação é desnecessária, pois já foi insistentemente observado o efeito de massificação de tal mídia.
Este não é um artigo que deseja criticar as mídias de massa, muito menos a televisão. São anotações-resultados do projeto de iniciação cientifica “Humanização das biotecnologias: educação visual das novas mídias1” que partem de observações sobre “a mensagem” – quais sejam, as imagens da biotecnologia – para a proposição de “meios” – as novas mídias – que buscam um sujeito ativo como ressignificador, porém inconsciente, na divulgação científica e tecnológica e na comunicação em geral.
Uma vez feita uma generalização de certas mídias nomeando-as “mídias aquário” (generalização não por descaso de estudar tais mídias, mas sim pela ânsia de propor novas possibilidades, ao invés de possíveis “soluções”, como será observado mais adiante), é necessário detalhar o funcionamento da comunicação do sujeito passivo, para que se possa entender o que se propõe com isso. Pelo mesmo motivo, não há ainda a intenção de discutir mídias colaborativas totalmente conscientes como as ferramentas da denominada web 2.0, por mais atraente que pareça a oportunidade e que os objetivos sejam similares.
Chamamos de modelo aquário/sujeito passivo qualquer mídia/meio em que o significado chega até o sujeito através do significante. E a relação pessoal do sujeito com o signo pode ser considerada irrelevante, a não ser se as particularidades forem aceitas e homogeneizadas numa multidão (grupo de pessoas). Essa homogeneização e a chegada do significado no sujeito engendram alguns tipos de formação de opinião, por meio de inibição e despotencialização da capacidade de pensar, agir e transformar.
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Modelo aquário/sujeito ativo (construído a partir da leitura de Cardoso Jr. 2007) |
Esse modelo pode ser observado em diversas vertentes da comunicação, como já mencionadas, mas também na educação, na divulgação de C&T, na propaganda, no jornalismo, entretenimento. A ideia de um sujeito passivo pode parecer interessante em algumas dessas vertentes, onde a entrega de opiniões é mais atraente do que a formação, como na propaganda, por exemplo; porém, mesmo nesses casos, o meio pode ser utilizado, não para manipular, mas sim pela capacidade da ressignificação individual ser mais potente pela individualidade do que a massificação, ou seja, de produzir um sujeito ativo. Encontramos tentativas de obter um sujeito ativo através do movimento de circulação da mensagem, principalmente pelas novas ferramentas na internet. O movimento, embora não deva ser confundido com ressignific ação, é a primeira etapa, fundamental, para a existência da comunicação entre multidões.
Feitas as observações sobre as mídias/meios aquário, podemos observar algumas características desejadas para que uma mídia seja considerada como de sujeito ativo. Para que isso ocorra, o sujeito individualmente deve ter a capacidade de ressignificação, ou seja, de adaptar o significado/mensagem que lhe é entregue para suas vontades, necessidades ou realidades. A multiplicidade nesses meios é aceita e incentivada. A possibilidade de cada sujeito expandir e multiplicar a mensagem em um novo nó (de redes) considerado real, sem a necessidade de uma homogeneização, permite a interação entre o sujeito e a multidão como uma única camada no processo de ressignificação. Há a possibilidade, mas não necessidade de um apagamento da origem, do criador do nó. Essa falta de reconhecer o emissor e a opção de não agir frente à mensagem permitem a inconsciência do sujeito no referido processo. Na individualidade, portanto, o significado de cada sujeito não é menos importante que o significado coletivo.
O sujeito ativo pode ser explicado com o seguinte fluxo: o significado interage com o sujeito/multidão através do significante; como o significado é maior para o sujeito do que o significante está representando, há a aparição do desejo, a vontade de completar essa diferença. Justamente na consideração desse ponto, tornamos o sujeito ativo na comunicação. Com o desejo presente, a ressignificação, quando não inibida, parece ser “natural”. Desse fato, a ânsia por novas mídias, ainda não adesivadas. Com toda ressignificação considerada na individualidade e a não separação entre sujeito e multidão para a realização da mensagem/significado, é necessário um acontecimento para tornar o “nó” (conector) atual. O acontecimento deriva-se no conector sujeito-multidão, permitindo a proliferação dos devires. A aprendizagem nesse processo, em nossa proposição, requer mídias em que a ênfase na inconsciência seja central.
Foi dito anteriormente que é necessário potencializar a relação entre mensagem e meios. Uma das maneiras encontradas de realizar isso foi selecionar as principais propriedades que desejemos testar/expandir/divulgar de cada mensagem. Mantendo a essência enquanto atualizável, evitando a criação de um conteúdo anacrônico.
No caso da divulgação das biotecnologias, tema abordado pelo grupo de pesquisa “Biotecnologias de Rua2”, foi observada uma vontade nas imagens de divulgação em utilizar cores em alta saturação e algumas matizes específicas como o azul, o roxo, laranja e amarelo. Assim como ocorre em imagens recorrentes, muitas vezes não diretamente relacionadas ao tema. Essas recorrências, então, puderam ser utilizadas como mensagem para a criação/notação e estudo das novas mídias almejadas.
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Imagem de uma indústria farmacêutica utilizada para a divulgação de pesquisas de um laboratório e propaganda impressa para Noah, lado a lado. |
Primeiramente, foram notadas, nas ações já realizadas pelo grupo, indicações das características do sujeito ativo em propostas de divulgação. Uma das experimentações foi a performance realizada no calçadão das ruas centrais de Campinas, São Paulo, denominada “Realejo de imagens” por Susana Dias, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Uma vendedora ambulante, com placas corporais e penduricalhos, ao som do realejo, misturando-se na rua, adquirindo suas características, mas, ao mesmo tempo, suspendendo, imersivamente, o tempo, fluxo em que se encontravam as pessoas de passagem na rua. A surpresa da gratuidade dos cartões postais que continham imagens – a Dolly, o DNA, uma criatura bizarra – que as pessoas podiam apenas tocar, escolher e levar, sem a obrigação de agir. “ Sem a palavra cortante que impede a intimidade da escolha silenciosa ” (Dias, 2006, p.10). Desse ato surgiu a primeira proposta de um sujeito ativo inconsciente. O método de injeção, como se fosse jogado no fluxo de um rio um punhado de corante, ou então injetado com uma seringa. Seus caminhos seriam imprevisíveis, mas seriam assimilados pela corrente, dissolvendo-se ou concentrando-se, descendo ao solo ou estagnando-se permanentemente a uma rocha.
E, dessa forma, ocorreu o ato. Primeiro havia um corpo estranho, assim como toda nova mensagem a ser divulgada, porém sem a intenção de transmitir claramente seu objetivo; era propaganda? Era uma venda? Atraía as pessoas a fim de causar movimento para a continuidade. Em seguida, a falta de uma explicação, a não completude de um signo, seja o sentido daquelas imagens ou o porquê da sua distribuição. Despertava o desejo das pessoas de conversar/pensar/elaborar. Cada sujeito criava seu próprio significado assistido pelo conjunto geral e pela multidão. Era obviamente biologia. Era? O DNA estava em pauta, a Dolly também, e os transgênicos, quem sabe o que são? São bons? O fluxo não era previsível por mais de uma quadra, mas havia se misturado ali, como uma injeção; se os cartões iriam para o lixo, para os correios ou uma moldura, isso não era mais relevante. O movimento permitiu a existência da divulgação e ressignificação. Qual daqueles “nós” seria atualizado, dependia das interações e acontecimentos.
A possibilidade de cada sujeito divulgar seu “nó” e criar uma movimentação própria é mais remota nesse exemplo. A busca de um método que permitisse a movimentação de cada nó resultou no que foi denominado de “agentes polinizadores” onde se libera a fonte de conteúdo principal para que, então, cada receptor da mensagem se torne um ressignificador e, possivelmente, emissor, seja esse processo consciente ou não. Como uma abelha que semeia e continua o ciclo, há uma vontade de maior prolongamento temporal do que na explosão de movimento da injeção.
Faltava notar qual mídia nos permitiria tal possibilidade – a da interação – entre a mensagem, o agente e a multidão e a ressignificação imediata além da subjetividade e imersividade.
A solução foi um meio conhecido pela utilização cênica em festas de músicas eletrônicas e em casas noturnas, o VJiing, A forma de um vídeo plural, baseado em sensações e fragmentos, assim como a escolha imediata de imagens a partir de dados, e o abandono da palavra, eram qualidades atraentes.
Video Joquei é o nome dado ao performer de imagens (assim como o DJ ou Disc Joquei o performer de música), em português o VJing poderia ser traduzido como videotecagem. É a técnica de manipular as imagens ao vivo paralelamente ao som. Existem variadas formas práticas de se fazer isso, mas que podem ser divididas em duas categorias. De um lado, a menos usual, analógica, com retroprojetores e líquidos, por exemplo, que acabam por constituir um elemento, de fato, mais cenográfico. De outro lado, a digital que trabalha com três tipos de imagens/tempo. As pré-gravadas ou loops, pequenos trechos de vídeo abstratos ou não, que podem ser repetidos sem uma quebra de continuidade; acrescidos de novos elementos ou manipulações/processamentos podem gerar a suspensão do tempo. Ou as imagens transmitidas, do próprio local, ou de um local distante, mas pertencentes ao tempo atual. Por último, as imagens sintetizadas, construídas por fórmulas matemáticas, normalmente abstratas. A junção desses três tempos-espaços e realidades permite ao VJing uma multiplicidade de tempo e espaço, que, aliados à subjetividade do VJ, dão a essa mídia a capacidade de imersividade, ressignificação e inconsciência.
Da maneira como se encontrava disponível, porém, apenas o artista recria sua obra. Restava, então, encontrar uma maneira de combinar o indivíduo e a multidão em um único sujeito para esse meio. Analisando a estrutura geral do ato da videotecagem, é possível perceber onde estava a solução: começamos com um input do performer, seja através de um teclado, mouse, ou joystick que ativa um determinado processamento; nesse processamento encontram-se os três tipos de imagens – gravadas, transmitidas e sintetizadas, depois de processadas. Por último, temos o output. Os inputs utilizados são interfaces para a interatividade3 (processo mecânico) em oposição à interação (processo subjetivo), e facilitam a comunicação da subjetividade do VJ com a execução da máquina, mas não a coexistência das subjetividades da multidão. Surgiu, então, a necessidade de se pesquisar/desenvolver interfaces para multidões.
A construção das interfaces, porém, não poderia interferir na vontade de facilitar o movimento/ação de agentes; por isso foram buscadas soluções dentro da cultura DIY (Do it yourself), ou seja, modificações caseiras de tecnologias acessíveis. Outro fator decisivo para a criação de interfaces digitais é, justamente, o fato de serem digitais, ou seja, tudo pode ser convertido em dados, na transformação de diferentes inputs em variados processamentos. O que aumenta exponencialmente as multiplicidades de interação e interatividade, possibilitando uma realidade aumentada, por exemplo. Mas existiria uma maneira fácil de realizar esse processo?
Através de programação visual, ou programação em patching, que pode ser traduzido como costura ou retalhos, o usuário pode chamar inputs, processamentos e outputs, e conectá-los de maneira empírica. Por exemplo, podemos conectar um microfone no computador e ligar os dados do volume com os dados do tamanho de um círculo, assim quanto mais barulho no ambiente, maior seria o círculo virtual. Esse é um exemplo simples, podemos associar movimentação do ambiente com velocidade da música e ainda outras opções menos esperadas, como por exemplo, o trabalho mind VJ de Lenara Verle que interfere em imagens através de ondas cerebrais. A programação visual, então, se mostrava ideal para a construção de interfaces digitais.
Das experimentações com novas interfaces surgiram dois trabalhos apresentados durante a permanência do e-vento, uma instalação/evento realizada pelos projetos "Biotecnologias de Rua" e "Num dado momento: biotecnologias e culturas em jogo"4 no Centro de Inclusão e Integração Social Guanabara da Unicamp (CIS-Guanabara), em que foi possível notar comportamentos interessantes de multidões em vista dessas interfaces.
Priveiro, havia um conjunto, apelidado de “jogo dos monstrinhos”, com uma projeção com um DNA circulante e um caça-níquel de partes corporais, ativado pelo toque na água. Segundo, havia um conjunto de televisores com a repetição de um vídeo apresentando uma multidão, ambos com as mesmas características visuais identificadas nas imagens biotecnológicas. Ambos utilizam inputs da multidão para a interatividade/interação. Os “monstrinhos” podiam ser mais facilmente notados na individualidade, já que era possível separar-se dos outros indivíduos da multidão para a sua utilização, colocando a mão na água sem outras pessoas. As reações relevantes, porém, ocorreram principalmente quando o aparato não funcionava de imediato, forçando as pessoas a tentarem entender seu funcionamento, e experimentando ações em conjunto. Houve tentativas de experimentar o próprio corpo e de colaborar como um corpo só.
No conjunto de televisores, onde não era possível isolar o input da multidão, a interatividade não era notada, a menos quando mencionada, apesar da mudança na velocidade de repetição da imagem estar ocorrendo juntamente com o ritmo de caminhada e movimento dos observadores. Tínhamos alcançado aqui um sujeito/multidão ativo, porém inconsciente, alterando a mensagem. Restava apenas juntar essas interfaces ao VJing para atingir os “agentes polinizadores”, permitindo a movimentação necessária para comunicação e também a ressignificação consciente juntamente à inconsciente.
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Vista panorâmica do e-vento: “monstrinhos” à esquerda, experimento com os televisores à direita. |
Finalizamos com o trabalho “dados discotecados”. Um conjunto de loops contendo imagens biotecnológicas será disponibilizado na internet para que outros VJs possam utilizá-las, além de instruções de utilização de um patch (programação em patching), que será distribuído conjuntamente e permitirá a performance através do movimento das multidões, e um controle individual, nas interfaces criadas. Possibilitará a divulgação das biotecnologias num meio passível de movimento, ressignificação e inconsciência, e reconhecimento de novos corpos.
Certamente há outras mídias a serem observadas além do VJing, que se identifiquem com os modelos de agentes polinizadores ou de injeção. E, ainda mais, maneiras de alcançar um sujeito ativo, consciente ou inconsciente, capaz de ressignificar e redistribuir uma mensagem. Causando o desejo, pensamento e ação na divulgação científica e comunicação.
Thiago la Torre é graduando em artes visuais pelo Instituto de Artes da Unicamp, professor de web design além de diretor de uma agência de publicidade. Email: thiagolatorre@retinasonora.com.br. Antonio Carlos Amorim é professor da Faculdade de Educação da Unicamp e bolsista produtividade nível 2 do CNPq. Email: acamorim@unicamp.br.
Notas
1 Financiamento: SAE/Pibic/Unicamp.
2 Grupo associado do projeto de pesquisa "Biotecnologias de Rua" (Edital MCT/CNPQ 12/2006 – Difusão e popularização da C&T). Número do processo: 553572/2006-7.
3 Para diferenciar interatividade e interação ver Capobianco (2009).
4 Projeto financiado pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac-Unicamp), convênio 519-292/auxílio 803-08.
Bibliografia
Capobianco, Ligia. Interação e interatividade na arte tecnológica. Anais. 2º Congresso Internacional em Artes, Novas Tecnologias e Comunicação (Ciantec). 2009.
Cardoso Jr, Helio Rebello. Teoria das multiplicidades e conceito de inconsciente no pensamento de Gilles Deleuze. In: Cardoso Jr, H.R, Santana, R.D. Inconsciente-multiplicidade. Conceito, problemas e práticas segundo Deleuze e Guattari. São Paulo: Editora Unesp, 2007. p. 11-42.
Dias, Susana Oliveira. Pessoas, ruas, imagens e biotecnologias em realejo. Revista de Ensino de Biologia. Número Especial. Novembro de 2007. p. 09-14.
Para saber mais
http://www.unicamp.br/unicamp/comment/reply/50066
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