No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de sete milhões de famílias não têm casa, apesar de todos os direitos sancionados por lei. Alguns ficam nas ruas, outros vivem à beira de estradas ou fazem abrigos de lona e papelão. Calcula-se que outras quinze milhões vivam em moradias inadequadas. Em contrapartida, os imóveis desocupados nos principais centros urbanos somam cinco milhões, completando o cenário de déficit habitacional no país. Várias conquistas sociais e jurídicas já foram obtidas, mas o problema da moradia é crescente.
Segundo definição da Fundação João Pinheiro, responsável pela medição de índices de habitação no Brasil, o déficit habitacional é entendido por falta de moradias para toda a população, devido à precariedade das construções ou ao desgaste da estrutura física. Ocupar um local sem as mínimas condições de habitabilidade já confere situação de déficit. A inadequação das moradias é caracterizada por carência de infra-estrutura, adensamento, depreciação ou inexistência de unidade sanitária interna. Há que considerar ainda a coabitação, ou seja, habitação ocupada por mais de uma família.
Entre 2000 e 2005, o déficit habitacional aumentou de 6,6 milhões de moradias para 7,9 milhões. Desse déficit, 91,6% das famílias ganham até cinco salários mínimos. Para combater o problema, seriam necessários investimentos de R$ 160 bilhões. As estatísticas fazem parte do livro Déficit Habitacional no Brasil 2005, elaborado pela Fundação João Pinheiro em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação, do Ministério das Cidades. De acordo com o estudo, a falta de moradias assume maior dimensão na região Sudeste, especialmente em São Paulo. No entanto, em termos relativos (comparado ao número total de domicílios), a situação é grave no Amazonas, Maranhão e Pará, ao contrário de Paraná, Santa Catarina e Goiás, com os melhores indicadores.
Maria de Fátima Gomes, coordenadora do Núcleo de Pesquisa Favela e Cidadania da Escola de Serviço Social/UFRJ, explica que a acelerada urbanização brasileira nos anos 70 marginalizou uma grande camada da população do mercado de trabalho, que ficou excluída do sistema de proteção social. “O próprio governo não combateu as habitações ilegais e estimulou as ocupações irregulares. Por conta disso, a classe baixa passou a fazer autoconstruções e a ocupar loteamentos periféricos, o que aos poucos resultou no déficit e no crescimento da desigualdade social”, afirma Gomes, que defende que políticas habitacionais consistentes possam minimizar os conflitos urbanos, sobretudo se envolverem a participação dos movimentos sociais.
Além da falta de infra-estrutura, a precarização das moradias nos centros urbanos se deve à exclusão social das pessoas que vieram do campo. Em muitos casos existem moradias suficientes, mas grande parte das pessoas que não está inserida no mercado de trabalho e não pode pagar o aluguel. O resultado é o crescimento desordenado das cidades, sem infra-estrutura para garantir necessidades do cidadão. Além das funções básicas da habitação, como abrigar, oferecer saneamento básico, coleta de lixo e sistema de esgoto, está a função social: o espaço, por menor que seja, é o sonho familiar concretizado e a oportunidade de realizar atividades do cotidiano.
Segundo o diretor de Produção Habitacional da Secretaria Nacional de Habitação, do Ministério das Cidades, Daniel Nolasco, o fenômeno do déficit de moradias está relacionado com o crescimento vegetativo da população e, também, com a questão social. “O desemprego tem relação direta com isso. A pobreza, apesar de ter melhorado o Índice de Desenvolvimento Humano no país, acentua o problema. E, quando há crescimento da população, logicamente é preciso mais casas”, afirma.
Desde 2001, o Estado tem na Lei 10.257, conhecida por Estatuto da Cidade, mecanismos para combater a especulação imobiliária e garantir moradia à população a partir de uma “gestão urbana democrática”. O estatuto reúne instrumentos de política pública para racionalizar a estrutura fundiária e urbana dos municípios brasileiros. “Essa Lei regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. Houve grande dificuldade para que saísse a Lei. Foram quase treze anos de discussão no Congresso até sua aprovação”, conta Nelson Saule Júnior, advogado e coordenador do Instituto Pólis, ONG nacional que atua no setor de políticas públicas para desenvolvimento das cidades.
Um das mais importantes diretrizes fixadas pelo estatuto é a integração entre atividades urbanas e rurais, além da função social da moradia. “A Lei não prega o fim da propriedade privada, mas questiona a existência de imóveis urbanos vazios em regiões onde há muitas famílias precisando de abrigo”, afirma Saule. São Paulo é um caso particular nesse cenário. Estima-se que, nesse município, há mais imóveis vazios do que famílias sem casa para morar, sendo que 10% dos imóveis vagos (cerca de 40 mil), estão no centro, descumprindo sua função social. Cerca de dois milhões de moradores estão em cortiços e favelas. Embora alguns municípios utilizem-se de instrumentos urbanísticos para combater especulação de terras, como o IPTU progressivo, a lei que estabelece que o uso da propriedade urbana deve servir a fins coletivos surtiu poucos efeitos sobre a política de habitação do país.
Saule Júnior enfatiza a necessidade de integração entre os vários níveis de governo para combate aos problemas de habitação: “Sem uma ação integrada entre os governos federal, estadual e dos municípios os problemas não serão resolvidos. É preciso que os recursos públicos e privados destinados para questões sociais sejam canalizados para ações comuns e solidárias. A idéia é adotar uma política de desenvolvimento econômico que gere oportunidades de trabalho e renda para a população de toda a região, evitando que os problemas migrem de um município para outro”, explica o advogado.
Movimentos sociais se destacam na luta por moradia
As alternativas de luta em prol da habitação são plurais. Sem tetos de todo o Brasil tentam solucionar o desabrigo ocupando prédios e casas vazios. Em geral, entram em edifícios abandonados pertencentes ao governo ou empresas públicas. Já para integrantes da associação paulistana Viva o Centro, a saída seria, no caso de São Paulo, a construção de prédios nos galpões e fábricas abandonados na região central, o que não interfere nos imóveis vazios e especulação imobiliária.
Entretanto, o que parece ser a iniciativa melhor sucedida até o momento é a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), proposta pela sociedade organizada, que entrou em vigor em 2006, quando o recurso à disposição para habitação era de R$ 1 bilhão, destinados a programas para a população de baixa renda. No entanto, para 2007, o cenário piorou: o orçamento deste ano prevê apenas R$ 458 milhões, o que tem causado protestos por partes de ONGs e movimentos sociais.
Por parte do governo, apesar do foco na expansão da indústria e comércio, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), proposto para o período 2007/2010, busca legitimar o discurso de “crescimento com distribuição de renda”, incluindo um eixo apelidado de “infra-estrutura social”, cuja principal aposta são os investimentos em habitação e saneamento. A expectativa é atender quatro milhões de famílias com aquisição de terrenos, construção e reforma de casas e urbanização de áreas precárias como favelas.
Para a coordenadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da USP, Ermínia Maricato, o PAC pode contribuir para acentuar a queda do déficit habitacional no país, mas o maior desafio atual é melhorar a capacidade operacional do Estado: “Temos problemas de dinheiro sim, mas a grande questão é falta de capacidade operacional do governo. Não temos cultura de investimentos em habitação e saneamento no país, há 27 anos não temos subsídios. Vai ser necessário conquistar a adesão de estados e municípios para conseguir um combate efetivo ao déficit. Além disso, precisamos levar em consideração o aumento natural da população”.
Maricato lamenta por não ter sido possível, ainda, resolver os problemas fundiários do país, mesmo passados seis anos da criação do Estatuto da Cidade. “Não rompemos com a estrutura arcaica que ainda domina o Brasil. O abismo que separa os bairros ricos e os pobres não foi superado”. A pesquisadora ainda destaca o lado social do déficit como foco principal das ações. A maior parte das pessoas que precisa de casa no país tem renda familiar até três salários mínimos, ou seja, insuficiente para assumir as prestações da casa própria: “Quase 90% das vítimas do déficit estão nessa faixa de renda e por isso as políticas públicas devem atingir principalmente essa camada populacional”, afirmou ela, que também defende a regularização de terras, apesar da burocracia brasileira.
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