A sociedade
medieval teve uma relação muito próxima com o livro. Herança direta da
veneração judaica à palavra escrita, o cristianismo, um dos elementos mais
importante dessa sociedade, fundou-se sobre uma Revelação que passou inteiramente pela intermediação da tradição
das letras. A frequência com que o livro aparece como elemento central dos
acontecimentos milagrosos que constituem o núcleo das tópicas hagiográficas
medievais, deixa claro o valor desse objeto para a cultura do período. Para
essa sociedade oral e de poucos leitores, a raridade do material, ou seja, das
folhas de pergaminho ou de vitela, e a dificuldade na reprodução dos livros,
transcritos à mão nos chamados escriptorium
– não devemos nos esquecer que uma boa biblioteca no século X, não contava
com mais de dez exemplares –, acabou instaurando no imaginário medieval uma
relação com esse material cultural próxima a um talismã, associado ao uso
arcaico de escrever e pintar para fins mágicos.
A sempre presente preocupação do homem medieval em
salvar, organizar e conservar a herança cultural escrita, em meio a
desestruturação material que marcou esse período da história europeia, acabaram
por fazer dele um objeto de dimensões às vezes excessivamente imponentes;
livros enormes, no qual eram reunidos, por exemplo, todos os textos da Bíblia e
seus comentários. Grandes, pesados e de uso penoso, os livros tornaram-se,
muitas vezes, menos para serem lidos do que para serem apreciados, acentuando
um caráter sacral e misterioso, posto que privilegiavam-se os aspectos visuais
– solenidade e grandeza do formato – relativamente aos aspectos gráficos.
Dentro
dessa perspectiva, a Idade Média deu às imagens um importante papel ao lado da
escrita, produzindo um riquíssimo material artístico visual que completava e
enriquecia os manuscritos: a arte das iluminuras ou miniaturas. Apoiada numa
tradição que vem da antiguidade, a prática da ilustração dos textos ganhou
nesse período uma riquíssima técnica pictórica que envolvia desde a produção
das tintas – propriedades dos
materiais, a importância da orientação das proteínas de colágeno nas
propriedades físicas da folha de pergaminho –, até as características relacionadas às escolas
artísticas que contemplavam a arquitetura, a escultura, a pintura e os vitrais
das igrejas medievais, como por exemplo, o romântico, o gótico, o mozárabe.
A produção
cada vez mais frequente, ao longo da Idade Média, da ilustração dos
manuscritos, foi possível graças às mudanças no suporte da escrita trazidas
pelo uso do códice – formato muito parecido com o livro moderno, que era mais
manejável do que o rolo, possibilitando que as iluminuras pudessem acompanhar o
texto, auxiliando a sua compreensão.
Com os códices os copistas e iluminadores
introduziram mudanças substanciais na relação texto/imagem. As iluminuras
passaram a ocupar a esquerda e a direita da coluna escrita. Aos poucos se
generalizou e predominou o uso da imagem intercalada com a escritura, o que
permitiu uma relação orgânica com o texto, como é possível ver neste fólio da
Bíblia de São Luís.
Bíblia de São Luís (vol. 3, f. 9r)
O processo
de dissociar o discurso escrito do visual foi paulatino e irreversível. A
princípio se utilizou a metade inferior da página para as iluminuras, logo
depois elas ocupavam uma página inteira. Nesse processo de separação da imagem
em relação ao texto escrito, foi se gestando um discurso paralelo ao textual e
assumindo uma função própria, a de produzir um discurso visual. Em definitivo,
a imagem adquiriu um poder comunicativo próprio.
Saltério Glosado - f. 3r, Cenas da vida de Jesus As
iluminuras completavam as páginas dos códices dos mais diversos assuntos
tratados na Idade Média: a Bíblia e os comentários aos seus livros, saltérios,
livro das horas, livros de medicina, bestiários etc. Algumas obras, tendo a
transcrição do seu texto integral repetida de forma relativamente frequente ao
longo dos séculos medievais, provavelmente pela boa recepção que tiveram no
período, receberam um tratamento especial para suas iluminuras, ganhando a cada
edição peculiaridades próprias, como é o caso dos “Beatos” – série de
iluminuras que compõem os diversos códices produzidos entre os séculos VIII e X
na península ibérica, de um Comentário ao
apocalipse escrito por um monge das Astúrias e que carregam em cada um dos
seus exemplares, características particulares do iluminador, que as interpretou
de acordo com suas regras artísticas, cultura e talento próprio.
Pela
dificuldade na produção e conservação desses manuscritos iluminados, que sempre
contaram com poucos exemplares devido à carestia de folhas e de tintas, e das
condições das técnicas rudimentares e manuais nas quais eram editados, os que
chegaram até nós são de valor inestimável, posto que guardam em suas páginas
parte dos, relativamente modestos, vestígios materiais que compõem a herança da
cultura medieval ocidental, além do seu valor artístico inquestionável.
Na
atualidade podemos encontrar originais desses códices em bibliotecas de obras
raras como a do Metropolitan Museum of Art e Pierpont Morgan Library, de Nova
Iorque, Museu Arqueológico Nacional e Biblioteca Francisco Zabálburu y Basabe,
ambas de Madri, Santa Igreja Catedral Primada, de Toledo, Catedral Metropolitana
de Oviedo, Biblioteca Casanatense, de Roma, Museu Diocesano de Arte, de Girona,
Biblioteca Nazionale Marciana, de Veneza, Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo,
Bibliothèque Nationale de França, The British Library, Museu Calouste Gulbenkian,
de Lisboa.
Na
Europa, casas editoriais como “Moleiros editores”, têm realizado um trabalho
importante de reprodução desses códices compostos de iluminuras, a partir de
técnicas tanto de produção do suporte, como de método de escrita e iluminação que
reproduzem todos os matizes das pinturas e da escrita dos manuscritos
originais. Embora essas obras sejam de alto valor comercial e, muitas vezes,
destinados à bibliófilos, podemos afirmar que essas edições têm contribuído de
forma efetiva para que as iluminuras medievais, que até pouco tempo não eram
valorizadas artisticamente, ganhem seu lugar de importância na história da arte e da cultura do mundo
ocidental.
A
produção de imagens tendo como suporte as folhas dos códices pode ser pensada,
também, para além do seu valor artístico, como um campo de investigação
importante e ainda pouco explorado pelo historiador no que concerne à
compreensão da sociedade medieval. Entendida dentro da perspectiva de que elas
significam, em grande medida, uma experiência cultural e social transformada em
representação, as imagens ganham um caráter de documento. Segundo Eduardo Neiva
em um artigo publicado nos Anais do Museu Paulista sobre história e cultura
material em 1993, as imagens estão sempre saturadas de cultura. Elas estruturam
historicamente formas da experiência humana. São simultaneamente reflexo e
esboço de comportamentos. Da imagem à ação, os vários níveis possíveis da
experiência cultural estão articulados.
Por
conseguinte, seja pensando na perspectiva da história da escrita e da leitura,
fruto do desenvolvimento das técnicas de produção do livro, como documentos
históricos que carregam vestígios da sociedade medieval, ou ainda pelo seu
riquíssimo caráter artístico, as iluminuras são, com certeza, repletas de valor
histórico, que justificam o seu lugar dentro das bibliotecas de obras raras.
Raquel Fátima Parmegiani é historiadora e professora da Universiade
Federal de Alagoas.
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