Em um país com histórica desigualdade social como o Brasil, um dos aspectos que mais expõe explicitamente os contrastes entre pobres e ricos é a moradia da população. Nos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, mansões suntuosas e edifícios de apartamentos luxuosos convivem lado a lado com barracos e casas mal acabadas de favelas em condições precárias e principalmente em relação ao atendimento dos serviços públicos básicos. Reflexo da condição social e econômica de seus moradores – associada à falta de políticas públicas –, a qualidade da habitação para onde retornam os brasileiros após a jornada diária de trabalho ou estudo está diretamente ligada à sua qualidade de vida como um todo.
Embora o fator econômico seja preponderante, alguns países com renda per capita relativamente baixa, como a Costa Rica, apresentam bons níveis de desenvolvimento social, o que levou o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) a criar em 1990 o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), baseado em conceitos e idéias propostas por economistas como o indiano Amartya Sem, vencedor do prêmio Nobel de sua área em 1998. Mesmo com a preocupação de que esse indicador fosse mais abrangente, sobre a qualidade de vida das populações, o IDH considera apenas três fatores: a expectativa de vida ao nascer, as taxas de alfabetização e matrícula em todos os níveis de ensino e a renda per capita. Mas alguns dados sobre a qualidade da moradia da população aparecem entre os 135 indicadores socioeconômicos que a equipe do Pnud utiliza para traçar o Atlas de Desenvolvimento Humano, uma espécie de mapa com a caracterização e distribuição geográfica da qualidade de vida das pessoas.
No Brasil, o Atlas de Desenvolvimento Humano traçado pelo Pnud reflete a também histórica desigualdade regional no país quanto a moradias atendidas por serviços básicos. O estado de São Paulo, que tinha em 1991 o maior percentual de pessoas vivendo em domicílios com banheiro e água encanada (92,94%), manteve-se no topo desse indicador em 2000, chegando a 96,60%. Enquanto isso, o Maranhão, que já tinha o pior indicador em 1991 (19,03%) manteve-se como pior estado, com apenas 26,88% da população residindo em casas com banheiro e água encanada. No quesito residências com energia elétrica, São Paulo, que tinha 99,06% de pessoas morando nessas condições em 1991, perdeu a liderança para o Distrito Federal, que em 2000 alcançou a taxa de 99,68% das pessoas vivendo em casas com energia elétrica.
Os piores índices para moradias com energia elétrica não chegam a ser tão ruins quanto as que têm banheiro e água encanada, mas as taxas de Tocantins (51,45%), o pior estado em 1991, e Piauí (74,68%), o último da lista em 2000, estão bem abaixo dos de São Paulo e Distrito Federal. São esses dois estados que aparecem novamente no topo da lista, com os mais altos percentuais de pessoas que vivem em domicílios com serviço de coleta de lixo: em 1991, o Distrito Federal liderava o ranking, com 98,36%, ultrapassado em 2000 por São Paulo, que atingiu 98,78%. Nesse indicador, o Maranhão aparece mais uma vez como o pior estado, com apenas 26,32% das pessoas vivendo em casas atendidas por coleta de lixo em 1991, e alcançando somente 53,26% em 2000. Não por acaso, Distrito Federal e São Paulo têm, respectivamente, a primeira e a segunda maior renda per capita do país, enquanto o Maranhão amarga a última posição em 1991, mantida em 2000.
Indicadores como esses, sobre a qualidade do domicílio quanto ao atendimento de serviços básicos, foram também incorporados em um índice criado recentemente: o DNA Brasil, um levantamento anual feito pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp, com apoio do Instituto de Economia e do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da mesma universidade, em parceria com o Instituto DNA Brasil. O índice é fruto de um encontro que reuniu, no final de 2004, 46 brasileiros notáveis, entre cientistas, políticos, empresários e líderes de movimentos sociais, para discutir os principais problemas do país e propor soluções para os próximos vinte anos. Uma das sete dimensões consideradas por esse índice é a das condições socioambientais em que vive a população. As outras são: bem-estar econômico, competição econômica, educação, saúde, proteção social básica e coesão social.
A versão 2006 do DNA Brasil destaca, entre outras coisas, a inexistência de uma política nacional para diminuir desigualdades regionais ainda muito grandes, como em relação à porcentagem da população que vive em domicílios com instalações adequadas de esgoto, que no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste estava abaixo de 50% em 2004, enquanto Sul e Sudeste tinham, respectivamente, taxas de aproximadamente 75% e 85%. “É um absurdo ainda termos problemas de saneamento básico no Brasil, que têm a ver com a nossa história de urbanização. É um serviço que sabemos prestar, temos o conhecimento. A questão é investir nisso, e não só, mas também saber definir a prioridade para o investimento do recurso”, avalia Maria Inês Nahas, do Instituto de Desenvolvimento Humano Sustentável, ligado à PUC-Minas, onde são realizados estudos na área, além de cursos e seminários em parceria com o Pnud.
De acordo com a pesquisadora, o critério geralmente utilizado para distribuição de recursos federais que melhorem as condições de moradia da população é o IDH do município – quanto mais baixo, maior seria, supostamente, a necessidade de investimento –, lógica que ela considera questionável. “Será que o IDH é o melhor critério? Partindo do pressuposto de que não tem recurso para todos, mesmo que não seja verdadeiro, o critério para distribuição deveria ser baseado na infra-estrutura e na demanda realmente existentes em cada município”, sugere. “Os que precisam de saneamento receberiam mais recursos para o saneamento”, completa. De fato, é possível que um determinado município tenha conseguido elevar seu IDH no quesito educação, por exemplo, com a construção de novas escolas, mas continue com taxas baixas em indicadores não contemplados pelo IDH.
Nahas coordenou o projeto “Construção do Índice de Qualidade de Vida Urbana dos municípios brasileiros”, resultado de uma parceria entre o Ministério das Cidades e o IDHS da PUC-Minas, através do Pnud. Trata-se de um índice (IQVU-BR) ainda mais refinado que o DNA-Brasil, baseado na idéia de mensurar o acesso social e espacial a serviços urbanos. Essa mensuração já é feita em Belo Horizonte pelo IQVU-BH, desenvolvido em 1996 pela prefeitura da capital mineira em parceria com a PUC-Minas e utilizado desde 2000 como ferramenta de planejamento municipal e como critério para distribuição de recursos do orçamento participativo. “É um índice complementar ao Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), focado na população, que mede, entre outras coisas, o percentual de pessoas que vivem em domicílios com água e esgoto. O IQVU é focado no lugar e na quantidade e qualidade da oferta de serviços urbanos, como saúde, educação, cultura, esportes, entre outros”, explica a pesquisadora. Esse foco no lugar torna determinante, no que diz respeito à qualidade da habitação, a sua distância em relação aos serviços urbanos oferecidos.
Por isso, o cálculo final do índice corrige as ofertas de serviços existentes em cada região da cidade por uma “medida de acessibilidade”, estabelecida com base no tempo de deslocamento entre essas regiões, utilizando-se o transporte coletivo. Essa medida leva em conta até mesmo o tempo de espera do ônibus e o ritmo do trânsito no horário de pico. O refinamento do índice leva em conta que é possível residir em domicílio atendido pelo serviço de saneamento básico, porém localizado em bairro onde não há creche, escola ou posto de saúde. “Certos serviços, como os hospitais, são concentrados em determinada região de Belo Horizonte”, exemplifica Nahas. Para calcular o IQVU-BR, o Ministério das Cidades deve considerar também o deslocamento entre municípios. De acordo com o Sistema Nacional de Indicadores Urbanos do próprio ministério, cerca de 450 cidades brasileiras não têm hospital e possuem apenas um posto de saúde e 29 municípios sequer têm posto de saúde para atender a população que ali reside.
Depois do básico, o conforto
Um conceito ainda mais refinado quanto à qualidade da habitação é o de conforto ambiental. “Uma vez que a política de habitação tenha conseguido tirar as pessoas de baixo das pontes e que as moradias sejam atendidas pelos serviços urbanos básicos, é esperado que as pessoas passem a se importar com o conforto do ambiente. Dependendo do fórum de discussão, isso pode parecer um luxo, mas na verdade é uma necessidade do ser humano”, afirma Roberto Lamberts, coordenador do Laboratório de Eficiência Energética em Edificações, ligado ao Departamento de Engenharia Civil da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Um dos projetos já desenvolvidos ali é o de “Normalização em Conforto Ambiental”, que estabelece normas para a construção civil a partir das noções de conforto térmico, acústico e qualidade da iluminação do ambiente.
Os pesquisadores que atuam nessa linha tentam convencer os responsáveis por políticas públicas de que o conforto do ambiente deve fazer parte dos projetos de construção de casas populares. “A idéia da normalização é que não se permita, por exemplo, a construção de casa com telhado sem forro”, diz Lamberts, referindo-se a um item que eventualmente é suprimido em programas de habitação para que o número de casas entregues pelo poder público seja maior. “A casa popular deveria ser entregue com geladeira e coletor de energia solar. Isso aumentaria a renda do morador e haveria menos ‘gato’ na rede elétrica, menos informalidade no consumo de energia”, defende.
O laboratório coordenado por Lamberts está trabalhando atualmente em um projeto de etiquetagem de eficiência energética em edificações, assim como é feita em relação a eletrodomésticos como geladeiras, chuveiros e lâmpadas. O estudo partiu da análise de edificações comerciais, mas já prevê uma segunda fase para medir a qualidade das moradias. A avaliação considera, entre outras coisas, o grau de aproveitamento da captação de luz e energia solar, a existência ou não de veneziana ou outro bloqueador de luz e calor natural, se há ventilação e se há necessidade ou não do uso de ar-condicionado. A eficiência energética da habitação pode não apenas evitar apagões como o de 2001 mas contribuir para equilibrar o consumo desigual. “O Brasil consome muito pouca energia comparado com os Estados Unidos, seis vezes menos, não dá pra comparar. Mas o grande desafio é achar um equilíbrio entre Estados Unidos e África, entre São Paulo e Maranhão”, conclui.
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