“Do azul
escuro do mar, elevam-se as margens banhadas de sol e no meio do
verde vivo destaca-se a brancura das casas, capelas, igrejas e
fortalezas. Atrás levantam-se audaciosos rochedos de formas
imponentes, cujas encostas ostentam em toda a plenitude a uberdade da
floresta tropical. Odor ambrosiano derrama-se dessa soberba selva, e,
maravilhado, passa o navegante estrangeiro por entre as muitas ilhas
cobertas de majestosas palmeiras”. É esta a
primeira
impressão dos naturalistas Carl Friedrich Philipp von
Martius
e Johann Baptist von Spix ao aproximar-se da “grandiosa
entrada do
porto do Rio de Janeiro”. O botânico e o
zoólogo
chegavam ao Brasil como parte da comitiva da arquiduquesa Leopoldina,
que vinha casar-se com o futuro imperador Dom Pedro I.
Von Martius foi
condecorado com a "Ordem de Mérito Civil"
Em
sua viagem, Martius e Spix percorreram cerca de dez mil
quilômetros
entre 1817 e 1820. Os pesquisadores partiram do Rio de Janeiro, de
onde rumaram para o norte pela Mata Atlântica, com a
intenção
de devassar o interior, pois o litoral já era bastante
conhecido, como conta a historiadora Karen Lisboa, do Instituto de
Estudos Latino-americanos da Universidade Livre de Berlim. A partir
de Belém do Pará eles atravessaram grande parte
da
bacia amazônica, e de Belém embarcaram de volta
à
Europa.
“Foi
uma viagem longa e minuciosa”, diz Manoel Salgado
Guimarães,
do Departamento de História da Universidade Federal do Rio
de
Janeiro (UFRJ), assim como o relato da expedição,
Viagem pelo Brasil (Belo Horizonte, Editora
Itatiaia, 1981).
As descrições abarcam selva, gente, arquitetura,
marés,
história, costumes, doenças e muito mais. O livro
traz
até cantigas, representadas por partituras e versos.
Percurso
Brasil afora percorrido por Spix e Martius
Salgado
Guimarães explica que, embora fosse botânico por
formação, Martius tinha o espírito das
viagens
filosóficas vigente na época, na
tradição
de Humboldt. Por isso, o empreendimento não podia ser
voltado
para questões específicas. Para compreender a
natureza
era preciso falar da geografia, de aspectos hoje chamados de
antropológicos, de história etc. “Era
um
viajante-filósofo”, conclui o historiador da UFRJ.
E o
relato dos próprios viajantes justificam suas coletas:
“O
Brasil, fechado durante séculos consecutivos às
investigações dos europeus, oferecia farta
oportunidade
de enriquecer com fatos aquelas ciências, e, quanto aos meios
para atingirmos esse alvo, não tínhamos escolha.
Pareceu-nos mais acertado colecionar, durante a viagem, exemplares
tanto de formações geológicas, quanto
de
curiosidades etnográficas, e, em particular, de animais e
plantas, dar
assento em
nosso diário, a descrições e
notícias
minuciosas tanto quanto possível, e com isso preparar uma
exposição científica, uma vez de volta
à
pátria”.
De
acordo com Salgado Guimarães a
exposição nunca
chegou a acontecer. De todo modo, as
contribuições de
Martius a partir da viagem e do material coletado foram
inúmeras.
Destaca-se a Flora Brasiliensis, um
inventário das
espécies vegetais brasileiras que reúne todo o
conhecimento existente na época. São quase 23 mil
espécies, com cerca de 4 mil
ilustrações de
imenso detalhe e rigor. Até hoje é esse o
único
inventário da flora brasileira, embora muitas
espécies
tenham sido descritas e muita informação
acrescida no
século que se seguiu à
publicação da
obra.
Uma
obra moderna do século XIX
Até
março deste ano, consultas à Flora
Brasiliensis
se restringiam a especialistas, pois os exemplares das bibliotecas
universitárias são protegidosem
salas de obras raras.
Mas a iniciativa conjunta de diversas
instituições de
pesquisa de criar a Flora Brasiliensis On-line (ver notícia
na ComCiência) mudou a
situação.
No portal na internet, desenvolvido pelo Centro de Referência
em Informação Ambiental (Cria), qualquer pessoa
pode
ver as ilustrações da obra de Martius ampliadas
em
grande detalhe sem perda de definição,
além de
informações sobre o conteúdo das
imagens, tais
como o nome científico da planta, volume em que se encontra,
número, página etc.. As estatísticas
disponíveis
no site mostram que desde o seu lançamento, a Flora
Brasiliensis On-Line tem recebido cerca de 10 mil visitantes
por
mês.
cha
da Flora Brasiliensis, agora disponível
na internet
Segundo
Vanderlei Canhos, diretor do Cria, a Flora Brasiliensis foi
selecionada para o projeto por ser a obra histórica com
maior
valor científico e cultural, em termos mundiais.
“Entre 1840
e 1906, contribuíram para sua
realização cerca
de 60 especialistas internacionais, os melhores da
época”,
detalha. Entre os ilustradores, o grupo incluía o pintor de
paisagens Thomas Ender e o desenhista de plantas Johann Buchberger.
Mas
o projeto não se restringe a disponibilizar a obra de
Martius
ao público. Em julho deste ano, pesquisadores de diversas
instituições internacionais se
reunirão na sede
da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de
São Paulo (Fapesp) para discutir os rumos do projeto, que
pretende elaborar uma listagem atualizada da flora brasileira. A obra
de Martius contém quase metade do total de
espécies
vegetais estimado para o Brasil. Além de incluir no
levantamento todas as plantas já conhecidas, o projeto visa
atualizar sua nomenclatura. “Cerca de 50% dos nomes
estão
desatualizados”, diz Canhos. O workshop reunirá
representantes das maiores instituições
botânicas
do mundo, como os jardins botânicos de Missouri e Nova Iorque
(EUA), o Smithsonian (EUA), o Jardim Botânico de Kew
(Inglaterra), o de Berlim (Alemanha) e o Museu de Paris
(França).
A idéia é ligar os bancos de dados das
instituições,
de forma a integrar a informação
disponível a
respeito de todas as plantas brasileiras. O evento, cujo programa
será divulgado este mês, incluirá um
simpósio
internacional aberto a interessados e um workshop para especialistas.
E
o projeto não pára por aí,
“Martius foi só
o começo”, afirma o diretor do Cria. Ele esteve
recentemente
no Museu de Paris, que abriga os cadernos e plantas coletadas por
Saint-Hilaire, outro naturalista que percorreu o Brasil. A partir do
ano que vem, Canhos pretende iniciar a
digitalização
desse material e, em seguida, de outros naturalistas-viajantes.
“Todas as instituições que
participarão do
workshop têm material coletado no Brasil por outros
naturalistas; nosso objetivo é recuperar toda essa
informação
disseminada pelo mundo”.
Raça
e cultura
Além
de ser um dos grandes sistematizadores da botânica
brasileira,
Martius descreveu também aspectos da sociedade brasileira.
Suas anotações assustam, tamanha a
desvalorização
explícita do indígena. Para ele, os
índios
seriam vestígios de uma cultura sofisticada no passado, mas
que ruiu. Um povo degenerado tanto cultural quanto fisicamente,
incapaz de criar artes elaboradas ou qualquer esforço
intelectual. Seus relatos demonstram sua crença na
idéia
de que as espécies podem mudar, mas tendem à
degeneração e ao desaparecimento. “Ele
via os
indígenas como restos de uma cultura”, afirma a
professora e
pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz e da UERJ, Lorelai Kury
“Com
seu espírito enciclopédico Martius buscava reunir
o
conhecimento em sua totalidade, ao invés de se prender
unicamente às ciências naturais, daí a vontade de
escrever sobre aspectos etnográficos do Brasil”,
conforme
relatam Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, do
Departamento
de História da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Ilustração
de Viagem
pelo Brasil,
que mostra mameluca
(descendente de
“pai caucásio e mãe de raça
indígena
americana”)
e cafuza (“raça
intermediária entre o
indígena americano e o negro”)
Esse
interesse o levou a participar de um concurso promovido pelo
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), que
buscava um novo plano para relatar a história da
nação.
Martius venceu o concurso com o texto "Como se deve escrever a
história do Brasil", no qual propunha que a
história
fosse escrita não só a partir dos portugueses e
seu
papel de colonizadores – como já se fazia
– mas englobando
a língua e os costumes indígenas, a
atuação
dos jesuítas, a relação entre a igreja
e a
monarquia e o modo de vida colonial.
Apesar
de premiado, seu modelo para escrever a história do Brasil
não
foi seguido. As idéias apresentadas pelo botânico
eram
filosóficas, humanistas, mas não agradaram a
elite da
época, que negou, até o início do
século
XX, a mistura racial que ele acreditava constituir a
identidade nacional com efetiva participação das
raças
branca, negra e indígena, no desenvolvimento
físico,
moral e civil da sociedade.
Para
os pesquisadores da UFMT os escritos de Martius foram essenciais para
incluir as etnias na formação do Brasil.
“Foi uma
ante-sala do discurso da miscigenação,
fundamental para
definir a identidade nacional” diz Karen Lisboa.
Referência
e modelo de difusão científica
Influenciado
pelo pensamento histórico alemão do
século XIX,
Martius quis inserir o Brasil na história universal
“Von
Martius é uma referência fundamental para se
entender o
século XIX, através de escritos literariamente
agradáveis, com descrições tanto da
Mata
Atlântica, como das sensações do
viajante diante
da paisagem e dos nativos”, relata Kury.
Terminada
a viagem, o estado francês, interessado nos empreendimentos
científicos, publica através do
Ministério da
Marinha e das colônias da França uma
espécie de
cartilha para os viajantes. O guia orientava os cientistas como
recolher e preparar os materiais e amostras, enviá-las
à
França e também como redigir os
diários de
viagem. Além disso, enumerava os objetos mais desejados de
cada região do planeta, a serem coletados pelos viajantes
para
compor uma coleção nas
instituições
européias.
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