Construímos algo que, de certa forma, pode ser encarado como um paradoxo. Vivemos uma época na qual a ciência e a tecnologia passam a desempenhar importância cada vez maior, e, no entanto, a literatura evidencia que as pessoas não compreendem desde conceitos e fenômenos científicos básicos, cujo consenso e disseminação data de longo período (às vezes até centenas de anos), até outros mais recentes, também insuficientemente compreendidos pelo público.
Um importante elemento para a compreensão dessa questão é a visibilidade da ciência. Para o público em geral, a visibilidade da ciência dá-se através de seus produtos, e não de seus métodos de investigação, teorias, conceitos e modelos. Além disso, cabe observar a relação entre o nível de compreensão do conhecimento científico, que viabiliza o funcionamento dos produtos visíveis da ciência, e o que é requerido do cidadão comum para o seu uso.
Tais produtos são, na grande maioria das vezes, artefatos tecnológicos, vacinas, remédios etc, ou ainda discussões éticas que envolvem o uso e/ou o desenvolvimento de determinadas tecnologias.
Os princípios científicos, que viabilizam tais produtos, tornam-se cada vez mais complexos e de domínio restrito a poucos que detêm determinada especialização, o que contribui para um crescente distanciamento entre a ciência e o cidadão comum, até mesmo quando ele está imerso em um mundo científico e tecnológico. No modelo de consumo vigente, o uso dos produtos da ciência está quase sempre dissociado da compreensão de seus princípios científicos. Muitos são os exemplos nesse sentido. O computador é um deles.
Até os meados da década de oitenta do século XX, o computador estava basicamente restrito a centros de pesquisa e grandes empresas. Aqueles que tinham acesso a um computador deveriam, por absoluta necessidade, dominar alguma linguagem computacional e ainda estar familiarizado com algum sistema operacional. Hoje, esse quadro mudou radicalmente e o computador está em vias de ter status de eletrodoméstico, se é que já não o tem, pelo menos para uma parcela da sociedade.
Para que isso pudesse acontecer, o problema da interação entre o usuário e o computador foi solucionado de uma maneira bastante pragmática. Foram criados sistemas de interface que mediam a comunicação entre o usuário e o sistema operacional de uma forma bastante amistosa. A necessidade do domínio de alguma linguagem foi substituída pelo treinamento no uso de aplicativos, onde o mouse é o principal personagem. Quando o usuário “arrasta“ ou clica um ícone, ele, em geral, não sabe que isso corresponde à implementação de uma série de comandos em alguma linguagem. Hoje, ao invés de programar, usam-se aplicativos. Não é necessário o domínio de nenhuma linguagem computacional para o uso satisfatório de um computador.
Se, por um lado, isso facilitou a massificação do uso do computador, por outro, o descolamento entre a necessidade do conhecimento básico sobre computação e o seu uso construiu uma barreira entre seus usuários e os princípios básicos que viabilizam o seu funcionamento. A ciência que não gera produtos visíveis para o cidadão comum, a ciência básica, tende a ficar restrita a especialistas no âmbito de publicações e fóruns acadêmicos.
A astronomia, no entanto, tem uma posição muito particular, pois diz respeito tanto a fenômenos cruciais para a organização da vida humana (ciclos de natureza astronômica, como dia e noite, estações do ano, marés, a dinâmica do movimento celeste etc) até a procura por respostas a indagações eminentemente filosóficas, como a origem do universo. As questões relacionadas aos ciclos astronômicos constituíram-se em um “programa de pesquisa” imperativo para a humanidade, muito antes da própria institucionalização da ciência, e hoje se constitui em conhecimento consolidado, até que provem o contrário. Já as indagações sobre a origem do universo continuam a ocupar um exército de astrônomos, na condição de profissionais da ciência, e a povoar a imaginação de grande maioria dos seres humanos.
Tal contexto pode ser um caminho para justificar porque a astronomia ocupa uma posição privilegiada no imaginário social, independente de classe social e do nível de escolaridade. Em geral, todos são interessados em possíveis respostas para questões relativas à nossa origem cósmica. Reportagens sobre recentes descobertas na astronomia ocupam, com facilidade, posição de destaque nos meios de comunicação. Com condições de contorno aparentemente tão favoráveis, poderíamos esperar que tal interesse acabasse por gerar, de fato, uma maior compreensão da astronomia quando comparada a outras áreas do conhecimento humano. No entanto, não é bem isso que os educadores e divulgadores constatam. Tal percepção se confirma independentemente do modelo de comunicação adotado, seja ele dialógico ou de mão única.
O que se constata é que mesmo após quatro séculos das primeiras observações astronômicas de Galileu Galilei, a alfabetização e o letramento da população em geral na área de astronomia poderiam estar em um patamar melhor, uma vez que, diferentemente de outras áreas do conhecimento, existe uma atitude positiva do público para com essa área do conhecimento científico. Mas apesar dessa posição aparentemente privilegiada da astronomia e o particular interesse do público pela astronomia de ponta, existe em paralelo um desconhecimento sobre fenômenos básicos relativos ao sistema Terra-Lua-Sol, como por exemplo as marés, as fases da lua, os ciclos das estações do ano e dos dias e noites. Pesquisas na área educacional corroboram tal afirmativa.
Nesse panorama, a questão do acesso aos equipamentos culturais que podem atuar na área de divulgação e popularização da astronomia é um elemento chave. É lugar comum o fato da distribuição dos equipamentos culturais no Brasil ser assimétrica, seja entre as regiões geográficas do país ou ainda em cada região, ou mesmo nas cidades. No geral, as áreas mais nobres ou centrais das capitais acabam por concentrar grande parte das instituições que têm como pelo menos uma de suas missões institucionais promoverem ações culturais. As cidades do interior vivem um vácuo no que diz respeito a instituições formais dessa natureza. Tal contraste é ainda maior quando se considera as instituições de divulgação e ou popularização da cultura científica, e nesse universo já particular, apenas uma pequena parcela contempla a astronomia.
A distribuição de planetários fixos e de observatórios astronômicos pode ser usada para representar a capilaridade das ações de divulgação e ensino não formal da astronomia nas diversas regiões do país. A seguir, são apresentadas duas tabelas geradas a partir do sítio eletrônico Uranometria Nova. Produzido por Irineu G. Varella e Priscila D.C.F. de Oliveira, o sítio apresenta uma relação atualizada dos planetários e observatórios brasileiros instalados em universidades, escolas, instituições públicas e privadas.
A primeira tabela mostra a distribuição de planetários fixos nas regiões do país e evidencia um cenário extremamente preocupante, no qual o número absoluto de planetários fixos é extremamente baixo em relação ao tamanho da população do país; e a distribuição pelas regiões geográficas mostra um total desequilíbrio, pois as regiões Sudeste e Sul concentram 75% (25) de tais equipamentos, enquanto no outro extremo, a região Norte tem apenas 3% (1). Vale destacar ainda que os estados de São Paulo e Rio de Janeiro detêm quase metade dos planetários fixos do país.
Distribuição de planetários fixos nas regiões do país
Sudeste |
Sul |
Nordeste |
Centro-Oeste |
Norte |
17 |
8 |
5 |
2 |
1 |
51,5 % |
24,2 % |
15,2 % |
6,1 % |
3,0 % |
A segunda tabela mostra a distribuição de observatórios astronômicos pelo país e evidencia um quadro ainda mais preocupante. As regiões Sudeste e Sul são as detentoras da maior parte dos observatórios astronômicos, mas com o agravante de que a divulgação e popularização na área da astronomia não acontecem em todos os observatórios e, em sua maioria, tais instituições não são permanentemente abertas ao público geral. No caso da distribuição de observatórios, as regiões Centro-Oeste e Norte são praticamente um deserto.
Distribuição de observatórios astronômicos nas regiões do país
Natureza |
Sudeste |
Sul |
Nordeste |
Centro-Oeste |
Norte |
Universidade |
18 |
6 |
4 |
1 |
0 |
Municipal ou estadual |
9 |
2 |
5 |
0 |
0 |
Particular |
16 |
2 |
0 |
1 |
0 |
Escola |
6 |
3 |
1 |
0 |
0 |
Total |
49 |
13 |
10 |
2 |
0 |
O panorama desenhado sugere que, no quadro geral, o acesso a tais instituições é o principal obstáculo. Apenas a parcela da população brasileira localizada nos respectivos municípios “agraciados” ou na sua vizinhança tem o acesso potencial a planetários e observatórios.
A importância da contribuição dessas instituições é ampliada quando se leva em conta a questão da formação de professores. É lugar comum a deficiência da sua formação com relação aos conteúdos de astronomia e também a má qualidade dos livros didáticos. A formação deficiente dos professores, associada à carência de laboratórios e outros recursos nas escolas, contribui para os baixos padrões de cultura científica observadas entre os estudantes e a população que não mais frequenta as escolas. A questão assume caráter estratégico nas políticas educacionais relacionadas às ciências. Em particular, um baixo padrão de cultura científica mantida por anos consecutivos pode comprometer o desenvolvimento de qualquer nação. Um contexto como esse contribui para realçar o papel que planetários e observatórios, em parceria com outras instituições, como a escola e museus e centros de ciência, como equipamentos culturais estratégicos para a educação ao longo da vida, o letramento na área de astronomia e para o uso da ciência para a mudança das condições sociais no país. Por tal motivo, é relevante incluir o tema da inclusão social no papel que planetários e observatórios podem desempenhar.
Inclusão social é um desafio a ser conquistado pelas instâncias da sociedade política e da sociedade civil brasileira. Moreira (2006, p.11) a define como sendo “a ação de proporcionar para populações que são socialmente e economicamente excluídas – no sentido de terem acesso muito reduzido aos bens (materiais, educacionais, culturais etc) e terem recursos econômicos muito abaixo da média dos outros cidadãos – oportunidades e condições de serem incorporadas à parcela da sociedade que pode usufruir esses bens”.
Ao pensarmos em promover ações de inclusão social, não podemos desprezar o conceito de “empoderamento”. Segundo Zamora (2001, p.1) “o termo empoderamento se refere ao aumento do poder e da autonomia de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institucionais, em especial, os setores submetidos a condições de discriminação e dominação social”. O processo de empoderamento envolve componentes de diversas naturezas – cognitiva, psicológica, econômica e política. A potencialidade do conceito de “empoderamento” está no fato de implicar “uma posição ética e política que reconhece que é a própria população quem pode identificar suas necessidades e propor caminhos de solução”. O conhecimento científico é um elemento chave para o processo de empoderamento, e, nesse sentido, a astronomia pode desempenhar um papel chave, na medida em que muitas áreas de conhecimento podem ser abordadas a partir da astronomia.
Podemos também contar com Bondia (2001, p.7), que se debruça sobre a maneira como as informações que recebemos são processadas e incorporadas em nossa experiência de vida. Esse autor defende que o que importa é a maneira pela qual as informações são processadas por nós e como interferem em nossa qualidade de vida. Ele repudia a ideia segundo a qual o acúmulo dessas mesmas informações possa nos modificar. Em suas palavras, “se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular ... por isso o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal”. Dessa forma, a experiência de visitar um planetário ou observatório pode ser vista como uma abertura de uma nova categoria de experiência para o público.
Um olhar mais atento à interação proporcionada por uma sessão de planetário ou pela observação do céu por meio de telescópio, atividades ícones promovidas por essas instituições, evidencia o seu potencial para “marcar” a experiência do visitante e constituir-se em uma experiência singular para a vida pessoal do visitante. Nesse sentido, planetários e observatórios podem desempenhar um papel particular, uma vez que as experiências propiciadas podem até mesmo promover o aumento da conscientização ambiental, na medida em que a astronomia consegue mostrar com facilidade o quão são específicas as condições astronômicas para a vida na Terra, ao mesmo tempo em que mostra a ausência dessas mesmas condições na nossa vizinhança astronômica.
No entanto, a fim de contribuir para a inclusão social por meio do conhecimento científico, ou ainda para o aumento da consciência ambiental de nossa população, observatórios e planetários, na condição de equipamentos culturais, precisam existir em maior número e ser melhor distribuídos no país. Nesse sentido, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste precisam de especial atenção. Um segundo aspecto é quanto à existência de setores educativos em tais instituições. No caso dos planetários, o problema se trata do fortalecimento desses setores; no entanto, no caso dos observatórios, a questão se refere à ampliação da missão institucional de forma a contemplar a divulgação e a popularização da astronomia como uma das diretrizes.
Douglas Falcão é coordenador de educação em ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Email: douglas@mast.br
Referências bibliográficas
BONDÍA, J. L. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p.20-28, Jan./Fev./Mar./Abr., 2002. Disponível no site da Anped. Acesso em: 30 de junho de 2009.
MOREIRA, I. de C. “A inclusão social e a popularização da ciência e tecnologia no Brasil”. Inclusão social, Brasília, v.1, n.2, p.11-16, abr./set. 2006.
ZAMORA, M. H. Empoderamento, ação social e meio ambiente. Rio de Janeiro: Tricontinental Editora Ltda., 2001.
Veja também:
Planetários do Brasil
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