Provavelmente,
caro leitor, você já experimentou a sensação
de se divertir, mas pouco conhecer ou descobrir com passeios
promovidos por pacotes de viagem, tão à moda da
próspera atividade turística contemporânea. Isto
se deve à perversão do significado original da viagem,
vinculada à aquisição de conhecimento e à
formação científica e cultural dos indivíduos.
Neste sentido, todos os esforços são válidos
para a reversão da tendência atual de desconsideração
de seu sentido maior. Em sua significação primeira, são
bastante ilustrativas certas experiências em períodos
anteriores da história, em que a realização de
uma viagem, às vezes a lugares remotos e de costumes
desconhecidos, ampliava enormemente o universo cultural dos
viajantes. É este, por exemplo, o caso do pensador francês
Montaigne (1533-1592) que para realizar o desejo de toda uma vida,
fez sua primeira viagem ao exterior percorrendo 5000 quilômetros
em 17 meses. Montado a cavalo, passou por Roma, pela Alemanha,
Áustria e Suíça, juntamente com quatro jovens da
nobreza, incluindo seu irmão e doze servos. A viagem ajudou-o
a entender que povos e modos de vida diferentes não eram
necessariamente piores ou melhores entre si, mas simplesmente
diferentes.
Mas
essa visão pioneira sobre a diversidade entre povos e culturas
nem sempre predominou entre os viajantes da época. Muitas
vezes a necessidade de conhecimento aliava-se às pretensões
de conquista e dominação de povos. As fantásticas
viagens do genovês Cristóvão Colombo (1451-1506),
dos portugueses Vasco da Gama (1460-1524) e Afonso Albuquerque
(1485-1547) e do espanhol Hernando Cortez (1460-1521) estiveram muito
associadas a esses objetivos. A partir da ousadia desses navegadores,
as expedições científicas e “civilizadoras”
multiplicaram-se por todo o mundo.
Sob
vários aspectos o Brasil, que recebeu viajantes estrangeiros
desde o século XVI, teve muitas vezes sua identidade cultural
obscurecida pelo que eles escreviam e divulgavam, sobretudo, no
continente europeu. Foram muitas as visitas dessa natureza recebidas
pelo Brasil, facilitadas e intensificadas, a partir de inícios
do século XIX pela transferência da corte portuguesa
para o Brasil e pela abertura comercial proveniente da queda do
monopólio colonial. Alguns desses viajantes eram comerciantes,
atraídos pelas possibilidades de lucros como a nova situação
do Brasil. Outros eram cientistas ou artistas, apoiados pelo próprio
rei D. João VI.
Particularmente
dignas de interesse são as descrições que
fizeram sobre o conjunto de práticas, ritos, relações
de parentesco, costumes, crenças e sociabilidades das
populações pobres mestiças, indígenas e
negras das várias regiões brasileiras por onde
passavam. Porem, muitas vezes em tais narrativas encontra-se uma das
formas mais incisivas de se promover a diluição da
memória histórica da cultura das classes subalternas.
De devoção coletiva de um povo, as crenças e
rituais populares que aqui encontravam eram em suas descrições
transformadas em coisas para serem vistas e consumidas como mero
entretenimento. Não raro, a partir de seu olhar etnocentrista,
tratavam o tema com zombaria, desconsiderando o valor e a importância
daquelas manifestações.
Ainda
assim os relatos de viajantes constituem-se em fontes históricas
fundamentais para o conhecimento da cultura, das tradições
e da resistência em relação ao modo violento com
que a população era tratada nos primórdios da
formação do Estado brasileiro. É através
do entendimento das dimensões histórico-antropológicas
dessas tradições que podemos perceber as diversas
formas através das quais o povo se transformava às
vezes em co-participante decisivo da nova construção
política que se anunciava em nossa sociedade desde fins do
século XVIII.
Tais
tradições manifestavam-se, dentre outras formas,
através de rituais, cujas origens eram de dimensões
atlânticas, com contribuições culturais de
africanos, indígenas, europeus, que acabaram por ganhar uma
conformação própria na Colônia, e depois
Estado brasileiro. Este é o caso do ritual da malhação
do Judas, relatado por Debret, viajante e artista que veio ao Brasil
em 1816, acompanhado da missão francesa. Debret recolhe
detalhes preciosos desse ritual caracterizado por componentes
culturais e religiosos mais especificamente portugueses. O ritual era
encenado com efeito teatral extraordinário, animado por um
grupo bastante agitado e barulhento de pessoas, entremeadas por
turbilhões de fumaças e petardos detonados. Dois
bonecos compunham o cenário central, um representando Judas e
outro o Diabo, que servia de carrasco. Sob o ponto de vista de sua
cacofonia rude, a Malhação do Judas guardava
similaridades com as rough music (expressão de difícil
tradução, mas que se referia a música grosseira
e barulhenta), tal como as estudou Thompson, normalmente empregadas
para dirigir zombarias ou hostilidades contra indivíduos que
desrespeitavam certas normas da comunidade, na Inglaterra do século
XVIII. Desde a vinda da Corte portuguesa ao Brasil em 1808, as
autoridades policiais tentavam impedir os ajuntamentos em torno de
desses rituais, temerosas de protestos populares. Zombarias e
hostilidades eram impingidas, sobretudo contra personagens
importantes do governo, como foi o caso da malhação do
Judas do sábado de Aleluia de 1831, em que vários deles
foram submetidos a enforcamento ritualizado, dentre os quais o
ministro intendente geral e o comandante das forças militares
da polícia do Rio de Janeiro.
Um
pouco antes, mas nessa mesma conjuntura tensa da crise do sistema
colonial e da formação do Estado nacional, uma curiosa
manifestação popular é realizada em Pernambuco,
provavelmente testemunhada por viajantes e depois reproduzida por
folcloristas. Às vésperas da
partida de Dom Tomás, quando este deixava em 1798 o governo da
capitania, ouvia-se, segundo os relatos, o povo cantar em versos
jocosos, o fato de o governador ter sido “chifrado” por sua
amante, Dona Brites. Os versos foram cantados quando Dom Tomás
partira, e diziam que Dona Brites aparentava chorar de tristeza, mas
disfarçadamente sorria. Tão logo Dom Tomás
virara as costas ela já estava nos braços de Chiquinho
da Ribeira, o arrematante de dízimos do mercado público
do bairro Santo Antônio, que Dom Tomás construíra.
Não se tem detalhes a respeito dessa zombaria hostil do povo
contra seu governador, exceto a de que os versos eram cantados com
música inventada pelos próprios manifestantes. Contudo,
eram versos fáceis de serem memorizados pela multidão,
o que na Inglaterra do mesmo período recebia a denominação
de nominy. Não há também informações
a respeito do acompanhamento instrumental rude e primitivo que
normalmente compunha esse tipo de ritual. Sabendo, contudo, da forma
draconiana com que o povo era tratado naquela província, é
possível que essa zombaria fosse desencadeada de forma mais ou
menos contida, para evitar reprimendas. De qualquer forma, tratava-se
de uma manifestação popular que respondeu aos maus
tratos e abusos desfechados pelo governador, ridicularizando-o no que
havia de mais sagrado numa sociedade de tipo patriarcal: a traição
e a infidelidade feminina. Estes eram temas sempre explorados quando
a plebe inglesa queria hostilizar seu rei ou alguma outra autoridade
importante, caracterizando também os rituais franceses
denominados charivari, conforme mostram os estudos de Zemon
Davis.
A
rua era sempre o cenário principal utilizado pela população
para ridicularizar personagens que se destacavam nas fileiras dos
infames. O viajante inglês Luccock assistiu e registrou no Rio
de Janeiro, rituais cuja estratégia era a de introduzir letra
jocosa com o nome do indivíduo visado, em música
conhecida, geralmente que se tocava pelas ruas, como por exemplo, a
que acompanhava diariamente os militares no Rio de Janeiro, quando
marchavam do quartel até o palácio. O ridículo
era aplicado de forma tão eficiente que o indivíduo
visado às vezes perdia o cargo e tinha que desaparecer. Uma
dessas reprimendas foi aplicada em inícios do século
XIX a um ilustre membro das elites, como castigo por liderar uma
reforma do catolicismo no Brasil, que contrariava os interesses e as
crenças populares.
Esses
não constituem os únicos exemplos de rituais de
protestos que podem ser encontrados na história das classes
subalternas e sua co-participação na formação
do Estado e da nação no Brasil. Nem mesmo poderíamos
dizer que se trata de manifestações desconectadas umas
das outras. É plausível concebê-las como parte de
uma luta popular contínua contra os desmandos cometidos pelas
autoridades contra os pobres da Colônia e contra a forma
excludente com que dos acordos entre as elites ia se desenhando o
retrato conservador da Independência no Brasil.
José
Carlos Barreiro é professor do Departamento de História
da Unesp, campus de Assis.
Bibliografia
BARREIRO,
J. C. Imaginário e viajantes no Brasil do século
XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência.
São Paulo, Editora Unesp, 2002.
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França Moderna: oito ensaios. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1998.
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J. B. Viagem pitoresta e histórica ao Brasil. 6a. ed.
São Paulo: Martins, Brasília: INL, 1975. 3 vol.
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J. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil.
São Paulo: EDUSP, Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.
PEREIRA
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SILVA,
M. (Org.) Dicionário Câmara Cascudo. São
Paulo, Perspectiva, 2003.
THOMPSON,
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