A expressão terceiro setor denomina um campo formado por atividades que falam em nome do interesse público, sem fins lucrativos e desenvolvidas pela sociedade civil. O setor inclui ações realizadas por diferentes tipos de organizações e associações civis e não governamentais, movimentos sociais, formas tradicionais de ajuda mútua, além de iniciativas isoladas desenvolvidas pela população, e de investimentos filantrópicos de empresas privadas, mais recentemente ressignificados, por vezes, como ações de “responsabilidade social”. Às suas iniciativas caberia o papel de apontar deficiências dos outros dois setores – o Estado e o mercado – mas principalmente de compensá-las, visando o atendimento de demandas não cobertas ou delegadas por aqueles. Como atuação privada voluntária, seu discurso e promoção baseiam-se em valores e pressupostos como solidariedade, ajuda mútua, colaboração, cooperação, altruísmo e atenção aos necessitados, além da idéia de fortalecimento da sociedade civil, “participação cidadã” e cidadania. Com base nesses preceitos, o segmento passa a ganhar maior visibilidade e valorização na época do governo de Fernando Henrique Cardoso, quando cidadania e solidariedade tornam-se demandas pela necessidade de os governos dos anos 1990 liberarem-se dos investimentos em obrigações públicas de proteção e garantia de direitos sociais por imposição da adoção da política econômica neoliberal (Paoli, 2002). Assim, por ter sido apresentado como o remédio solidário para os problemas sociais da atualidade, faz-se importante atentar mais para o modelo de participação em sociedade que este discurso promove. Eficácia simbólica, inconsistência e sujeição de direitos públicos à atuação privada Entre autores que criticam a idéia do terceiro setor, há posicionamentos distintos. A discussão é ampla e complexa, e, mesmo entre seus críticos mencionam-se aspectos positivos, como promoção e fortalecimento da sociedade civil; coexistência de atores e interesses diferenciados tomando espaço na cena pública; e novas práticas empresariais influenciadas pela pressão e interesses da sociedade civil. Entretanto, mesmo quando são levantados indícios dessas situações, há argumentos que restringem tais positividades. Entre os debates que tal segmentação suscita, três aspectos são aqui destacados por colocarem em questão a propriedade de tal circunscrição e conceito ou o caráter de sua contribuição para as populações pelas quais se elege como responsável e em nome das quais se justifica. São eles: a sublimação de fronteiras entre iniciativas distintas, pela reunião de ações de contextos contraditórios como um mesmo setor, em que prevalece um viés de despolitização das ações em sociedade; as fronteiras pouco nítidas entre os elementos que caracterizam o segmento, sendo a inclusão de ações promovidas pelo empresariado caso exemplar, por colocar em questão o interesse público e a finalidade não lucrativa das ações realizadas; e a promoção à redução do papel do Estado ao atendimento às demandas sociais, transferindo antigos direitos sociais públicos para a iniciativa de entes privados. Como lembram Beres e Landim, a noção de setor remete à idéia de que seus integrantes ocupam uma posição particular na sociedade, tendendo à diluição de diferenças que podem ser social e politicamente significativas, ao pensar uma variedade de iniciativas e motivações baseadas em idéias e ideais de origens diversas como religiosas, espirituais, morais ou políticas como elementos de um mesmo conjunto, onde estes se realizariam de maneira similar. Ao incorporar expressões e termos que têm como referencial o engajamento político e a mobilização pela construção e conquista de direitos e pela redução de desigualdades, tais como democracia e cidadania, tal “setorização” carrega para as iniciativas nele inseridas a idéia de participação plena em relação ao contexto social, reforçando a eficácia simbólica de tal circunscrição. Contudo, esses termos, ao serem inseridos no âmbito do terceiro setor, são anulados em sua face mais emancipatória pelo foco na atuação solidária e altruísta que o discurso do campo evoca. A questão torna-se mais densa quando as próprias características que definem o campo passam a ser questionadas por essa sublimação de fronteiras e de diferenças que a noção de setor confere a quaisquer participações privadas em nome da responsabilidade, boa vontade e contribuição social. Em uma época em que a industrialização e a gestão de processos industriais permite a similaridade entre os produtos, agregar elementos além de sua qualidade intrínseca torna-se diferencial de mercado, o que se busca muitas vezes pela construção de uma identidade de marca que materialize determinados valores de acordo com época, lugar e público, o que contribui com as vendas e oferece oportunidades de lucros financeiros e simbólicos, relacionados à imagem organizacional. A participação empresarial no terceiro setor associa-se a esse processo de construção identitária, pois sua atuação firma-se mais acentuadamente no terreno da filantropia ou “responsabilidade social” no momento em que se reivindica uma atuação civil voluntária, pautada pelo discurso humanitário e pelo deslocamento da discussão em torno da gestão dos problemas sociais para a esfera privada da doação e da solidariedade. O empresariado aparece como um ator que, junto com outras organizações de origem não-governamental, afirma sua disponibilidade em contribuir com a integração social e profissional de determinadas parcelas da população, e para amenizar os efeitos socialmente perversos da lógica de mercado (Paoli, 2002; Caccia Bava, 2000). Somando-se a isso o fato de que, deslocada para a esfera de atuação privada o atendimento às demandas sociais passa a estar sujeito à escolha dessas organizações, já que, como detentoras dos bens a serem distribuídos, podem deles dispor, da forma como lhes convier. Tal atuação contribui para a institucionalização do poder social das empresas e acento à publicização de sua importância para a sociedade, ainda com reforço de uma aura de generosidade e cooperação. Mesmo que esse posicionamento empresarial conduza a novas práticas voltadas para a redução de carências mais básicas da população ou danos gerados pelo próprio sistema de mercado, tais situações, como conjunto, levam a questionar o interesse público e não lucrativo das ações desenvolvidas, já que conferem ganhos de imagem, de poder e mesmo financeiros para as empresas, ainda que, por vezes, de maneira indireta. Ao deslocar o atendimento às demandas sociais para a esfera da atuação privada, a discussão sobre o terceiro setor toca em outro ponto de questionamento do campo, quando este se coloca no papel de responsável e se justifica em nome do auxílio a camadas precarizadas da população, pois, ao promover a transferência de antigos direitos e garantias sociais da esfera pública para o patamar de ações oriundas da generosidade de entes privados, ainda que estas sejam ações bem intencionadas e buscando sintonia com interesses públicos, retira-se o poder da população de reivindicar por direitos universalizados em lei, reforçando a desigualdade não apenas no aspecto social, mas também no âmbito político. Pelo exposto, observa-se na constituição deste terceiro setor um locus onde valores diversos se realizariam, mas seu foco recai sobre a atuação solidária e valorização do agente privado. O pobre é situado no lugar de aceite das doações, pelo reforço a uma visão minimalista do papel do Estado, que contribui para a precarização do serviço público no atendimento aos direitos e demandas sociais da população. Talvez as respostas aos problemas sociais ganhem novo fôlego quando conseguirem romper com o discurso focado na responsabilidade moral de seus agentes para com a sociedade. É importante encontrar novas brechas de atuação diferentes daquelas voltadas para compensar as vicissitudes de um Estado minimalista, deficitário em relação ao atendimento aos serviços de base da população, fechando os olhos para problemas estruturais do sistema de mercado. Essas brechas devem permitir outras ordenações sociais que considerem a história, os valores, a cultura, e principalmente a humanização pela dignidade e autonomia das populações mais precarizadas. Dignidade e autonomia que se efetivam na criação e existência de condições para que as pessoas possam prover o seu próprio sustento ou possam lutar pela garantia e exercício de direitos sem depender da generosidade alheia, ainda que esta seja importante e, muitas vezes, faça o diferencial entre a vida e a morte nessa nossa maravilhosa, avançada, tecnológica, e a tão poucos acessível, vida contemporânea. Cíntia Liesenberg é mestre em ciências da comunicação pela ECA/USP e professora do curso de relações públicas da PUC-Campinas. Autora da dissertação “A inserção da imprensa no discurso do terceiro setor: análise do Projeto Cidadão 2001 – Correio Popular e da Coluna Social – Folha de S.Paulo” – desenvolvida com apoio da Capes. Referências e fontes de consulta BERES, Neide e LANDIM, Leilah. “Introdução a ocupações, despesas e recursos : as organizações sem fins lucrativos no Brasil”. Extraído de www.rist.org.br em 16/05/2002. CACCIA BAVA, Silvio. “O terceiro setor e os desafios do Estado de São Paulo para o século XX”. Em: Cadernos ABONG, n. 27 - maio/2000. ONGs, identidade e desafios atuais. São Paulo : Editora Autores Associados, 2000. FERNANDES, Rubem César. “O Que é o Terceiro Setor”. IOSCHPE, E. B. (org.). Em: 3º Setor desenvolvimento social sustentado. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997 ______________. Privado porém público. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1994. GOHN, Maria da .Glória. Mídia, terceiro setor e MST. Petrópolis : Vozes, 2000. INTEGRAÇÃO – Revista eletrônica disponível em: http://integracao.fgvsp.br. IOSCHPE, E. B. (org.). 3º Setor desenvolvimento social sustentado. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997. LANDIM, Leilah; SCALON, Maria Celi. Doações e trabalho voluntário no Brasil : uma pesquisa. Rio de Janeiro : 7 Letras, 2000. PAOLI, Maria Célia. “Empresas e responsabilidade social: os enredamentos da cidadania no Brasil”. Em: SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a Democracia : os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2002.
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