O conhecimento é o
objetivo primeiro e principal e a essência de todas as propostas dos
sistemas de educação superior. Ele é inerente a todo e a qualquer
um desses sistemas, independentemente de seu país e sua estrutura
social. Nenhum conjunto de organizações abrange tão largo campo de
conhecimento como as universidades. A razão é simples: com a
divisão do trabalho na sociedade, todas as produções e resultados
advindos de pesquisadores que estão na educação superior são
definidos como avanços. Este componente prático de conhecimento
avançado configura-se juntamente com alguns diferenciais
humanísticos e filosóficos que são especificamente encontrados no
perfil de tais pesquisadores.
Burton Clark faz uma
consideração elementar sobre tipos de conhecimento e grupos de
conhecimento: “O conhecimento é o material básico ou substâncias,
como corpos de ideias avançadas e redes relacionadas, que abrangem
muito mais que culturas específicas de cada nação. Os acadêmicos
têm se comprometido a descobrir novas facetas desse material básico
e, através dessas descobertas, manipular, conservar, refinar e
transmitir esses conhecimentos”.(Clark,1983, p. 11)
Os autores Helga Nowotny, Peter Scott e Michael Gibbons (2003), em “Mode
2” revisited: the new production of knowledge. (“Modo
2” revisitado: a nova produção do conhecimento), abordam a
dinâmica da ciência e da pesquisa em sociedades contemporâneas.
Eles reuniram, nessa obra, alguns filósofos, historiadores e
sociólogos da ciência prontos a discutir de que maneira a produção
de conhecimento e o processo de pesquisa estão sendo radicalmente
transformados em um novo paradigma.
E
sse novo paradigma
da produção do conhecimento foi chamado de “Modo 2” e envolve o
conceito de um novo formato de produção do conhecimento, um exemplo
de distribuição social de conhecimento. Nele, há melhores
mecanismos de ligar ciência e inovação; seria o conhecimento
“socialmente distribuído”, transdisciplinar e sujeito às
múltiplas responsabilidades.
O “Modo 1”,
descrito por Michael Gibbons e outros (Gibbons et
al.,
1994), seria caracterizado pela teoria hegemônica ou ciência
experimental, e também por uma direção interna de classificação
de disciplinas e pela autonomia de cientistas e suas instituições,
como as universidades. Este seria o modelo acadêmico centrado no
pesquisador e em disciplinas, e a produção de conhecimento seguiria
um padrão linear, da ciência básica à aplicada e, depois, ao
desenvolvimento e à produção.
Ao contrário disso,
no “Modo 2”, a produção de conhecimento seria mais
contextualizada, focada em problemas e capacitada a explorar caminhos
da interdisciplinaridade.
Essa tensão
existente na pesquisa científica refere-se à dicotomia entre
pesquisa básica e pesquisa aplicada e, embora conceitualmente
diferentes, analiticamente e do ponto de vista de seus objetivos, o
que podemos destacar como relevante é a atual discussão de mudança
de paradigmas no conflito entre conhecimento e uso.
Nowotny, Scott e
Gibbons (2003) argumentam que a nova produção do conhecimento é o
resultado de uma visão pós-moderna de pesquisa. Nesse processo, uma
nova linguagem foi inventada: a linguagem da aplicação, da
relevância, da contextualização, do alcance, da transferência
tecnológica e da gestão do conhecimento.
Os autores
argumentam, ainda, que a natureza do processo da pesquisa está sendo
transformada, e descrevem algumas das tendências mais aceitas nessa
transformação: a direção de prioridades da pesquisa, a
comercialização da pesquisa e a responsabilidade da ciência. Como
resultado dessas tendências, temos que o conhecimento é agora visto
não como um bem público, mas como uma propriedade intelectual, que
é produzida, acumulada e comercializada como outros bens e serviços
na sociedade do conhecimento.
O conhecimento
advindo da ciência e aplicado na sociedade, consequentemente, é o
diferencial para a atração de mais investimentos para a própria
ciência. A organização sistêmica que se estende desde a aquisição
do conhecimento até a sua aplicabilidade é o que poderá refluir em
financiamentos para a própria universidade. E, embora consideradas
como elementos de vanguarda pela sociedade contemporânea – por sua
missão institucional –, as universidades veem-se subordinadas a um
sistema de economia global e obrigadas a adequar-se às demandas
desse sistema. Como um caminho, a transformação de sua pesquisa em
inovação.
A ideia que temos da
universidade como centro de pesquisa, que pode estar associada hoje
ao modelo norte-americano, tem, na verdade, suas raízes no idealismo
germânico do início do século XIX, e uma marca disso pode ser a
fundação da Universidade de Berlim em 1810, sob a liderança de
Humboldt. Esse modelo alemão chegou aos Estados Unidos apenas na
segunda metade do século XIX, com a criação da Universidade de
Cornell, em 1865, e também da Universidade Johns Hopkins, em 1876.
Porém, somente após a Segunda Guerra Mundial a pesquisa científica
ganha proeminência. Desde então e até hoje é desenvolvida pelos
americanos em igualdade de importância, paralelamente alinhada com a
função do ensino.
Podemos perceber que
a conexão e o relacionamento entre ensino superior e economia
norte-americana, em alguns dos mais renomados centros de educação –
como Universidade Stanford e Instituto de Tecnologia de
Massachussets, por exemplo –, têm se provado extremamente adepta
da concepção do “Modo 2” de produção do conhecimento (Gibbons
et
al.,
1994 apud Bernasconi, 2008, p. 46).
Para ilustrar essa
questão da transformação do conhecimento, um estudo que vale
ressaltar aqui é Pasteur's
quadrant: basic
science and technological innovation (O
quadrante de Pasteur: ciência básica e inovação tecnológica), de
Donald Stokes (1997).
Nessa obra, o autor
analisa como uma nação pode ganhar em competitividade, capturando
os frutos da pesquisa básica em novas tecnologias. Ele faz uma
análise das transformações recentes das políticas de ciência e
tecnologia em diferentes países, tomando como referência o
tratamento dado à dicotomia “ciência básica e ciência
aplicada”. O autor toma como ponto de partida as premissas sobre a
essência da pesquisa básica, estabelecidas por Vanevar Bush, em
1944, que serviram de base para o desenvolvimento de toda a política
científica do pós-guerra.
Uma das premissas de
Bush era a necessidade de manter a pesquisa básica afastada do
ambiente de aplicação. O seu primeiro cânone sobre pesquisa básica
expressa sua crença na perda de criatividade da ciência básica
caso ela seja circunscrita pelo objetivo prático, motivada para o
uso, não para a descoberta e avanço de conhecimento. Porém, o
progresso resultante do desenvolvimento da pesquisa aplicada converte
muito depressa as descobertas de ciência básica em inovações
tecnológicas que vão ao encontro de um amplo espectro de demandas
da sociedade, em áreas como economia, defesa, saúde e outras. Bush
expressa sua visão do relacionamento entre ciência fundamental e
inovação tecnológica e conclui que os países que mais investirem
em ciência básica colherão mais frutos em inovação tecnológica,
visto que os avanços da ciência também serão convertidos em
inovação pelos processos de transferência de tecnologia.
Para Bush, se a
pesquisa básica é, em uma palavra, compreensão, e a pesquisa
aplicada, uso, elas são conceitual e analiticamente diferentes e
antagônicas. Essa questão é um conflito já na visão de Bush, em
seu primeiro cânone, quando ele fala de “uma perversa lei
governando a pesquisa, ou seja, a aplicabilidade a afasta da pureza”.
Essa é uma forma estática do paradigma. No segundo cânone de Bush,
há a descrição de uma figura de “modelo linear”, sustentada na
crença de que os avanços científicos serão convertidos em uso
prático pelo fluxo dinâmico da ciência para a tecnologia. Essa
premissa tem sido usada ainda nos dias atuais pelos gestores de
pesquisa e desenvolvimento como a “sequência tecnológica” da
ciência básica para a tecnologia, que mais tarde será conhecida
como “transferência tecnológica”. Essa definição deixa claro
que cada estágio sucessivo depende do seu precedente.
Contrapondo-se a
essas ideias, Donald Stokes (1997) propôs um modelo matricial,
combinando as dimensões de utilidade e fundamentalidade do
conhecimento científico.
Por esse modelo, a
busca de um conhecimento útil não mais se opõe à preocupação
com o avanço do entendimento fundamental da natureza. Ao contrário,
utilidade e fundamentalidade do conhecimento aparecem como dimensões
independentes que se compõem para formar um espaço onde podemos
alocar diferentes estratégias de produção do conhecimento.
Portanto, toda
pesquisa voltada para a produção de conhecimento é complementar.
Uma nova visão da universidade como produtora de conhecimento
contempla os diferentes objetivos da pesquisa, e com essa cooperação
será possível alcançar resultados importantes e transformadores.
Luciane Miranda
de Paula é psicóloga e diretora do Universo do Conhecimento – Fórum
de Educação e Cultura Contemporânea, do qual é
idealizadora, juntamente com Yves Michaud, da Universidade Paris 5
|