Desde o final da Segunda Guerra Mundial há dois momentos
marcantes da institucionalização da punição na sociedade de controle. O
primeiro compreende o período de redimensionamento dos direitos humanos, advindos
da declaração de 1948, e que se dirige à preservação da vida e ao combate aos regimes
políticos totalitários. Com ele, obtêm-se, também, repercussões favoráveis às
reformas das condições de vida nas prisões, relativas às insalubridades,
torturas e constrangimentos a prisioneiros e seus familiares. O segundo, mais
recente, procede dos anos 1980, e é próprio do liberalismo pluralista: emerge
com o programa de tolerância zero em Nova Iorque, repercute com a Declaração
dos Princípios da Tolerância, de 1995, e culmina com políticas de penas
alternativas, combinadas com variadas maneiras de dar continuidade à justiça
penal.
As novas e velozes reformas ampliaram o rigor punitivo no
encarceramento e introduziram outras maneiras de punição rápida e flexível a
variadas condutas. Seu escopo é o de atingir um maior leque de novos infratores
na estratificação social, e, com isso, democratizar a punição até dar cabo à
seletividade penal e às impunidades. Estamos diante de uma situação paradoxal:
de um lado, os direitos humanos sustentaram fiscalizações aos excessos da
prisão, da justiça penal e dos regimes políticos totalitários, mas, de outro
lado, suas práticas foram incapazes de estancar as emergenciais medidas de
segurança de Estados para legalizarem discriminações e uso legítimo da tortura,
após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, e que tendem a se institucionalizar.
Direitos humanos e direitos de minorias passam a ser
partituras básicas para a participação democrática, a garantia à variedade
cultural e moralização de condutas. Nova Iorque passou a ser a imagem e o modelo
da segurança na sociedade de controle: punir mais e com flexibilidades, segundo
o regime de tolerância zero; garantir direitos de minorias e articulá-los por
meio de elites minoritárias distribuídas pelos espaços demarcados das cidades;
crer na indústria do controle eletrônico; contar com polícias locais e a
população organizada para gerenciar o regime das variadas penalizações.
A sociedade de controle, assim, une fluxos contínuos de
participação de indivíduos e grupos desde o trabalho até o controle das
penalidades; combina direitos e exceções em arranjos democráticos que
incorporam eleições, influências e tomada de decisão, desde a vida de cada um
até o âmbito estatal; institucionaliza a participação democrática, a ampliação
das punições e a governamentalização com máquinas cibernéticas.
Diversas maneiras de fazer justiça penal aparecem. Os
defensores do sistema de penas alternativas argumentam que sua aplicação geral
reduz o uso indevido da prisão. O resultado foi o oposto e levou ao
aparecimento da supermax, nos Estados Unidos, cujo
correlato brasileiro é o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Antes, ainda
nos anos 1970, aportou a proposta do direito penal mínimo, propondo a redução e
a limitação da tutela penal. Atualizou a corrente do garantismo, procedente do
pós-guerra, pautado no estado democrático de direito, cuja meta era reduzir a
pena da infração informada ao sistema e, ao mesmo tempo, livrá-lo das exceções.
Atualmente, aproxima-se a justiça restaurativa articulando a moral da religião
à jurídica e trazendo a comunidade, onde se encontra vítima ou o vitimizador,
para o campo da tomada de decisão. Assim, democratiza-se a decisão do mesmo
tribunal. Por todos esses fluxos, não houve redução dos encarceramentos, nem
das punições, apenas firmou-se uma moderada variação conservadora do regime das
penas.
As reformas penais não abriram mão do regime da penalização
universal, até mesmo quando considerou o infrator como vítima; em poucas
palavras, a noção de vítima, dilatou ainda mais o controle sobre a população
considerada vulnerável, seja por viver em supostas áreas de risco, seja por ser
composta, potencialmente, por pessoas tidas como risco para a sociedade. Apareceram
os georeferenciamentos, as políticas de inclusões sociais, as ações ampliadas
de ONGs, as parecerias público-privadas e, aos poucos, as zonas de riscos,
periferias, favelas ou comunidades se constituíram em campos de concentração governados
por elites minoritárias, suas polícias, organizações não-governamentais e
Estado. A punição na sociedade de controle se expandiu e é governada,
democraticamente, por meio do incentivo à participação não só na política de
Estado, mas na vida da comunidade-campo de concentração. Formou-se uma consensual
cultura cidadã dos direitos e das penas.
Mas, a sociedade de controle não funciona somente por esse
fluxo. Ao lado dos direitos, das penalizações flexíveis e ampliadas,
mapeamentos de áreas e pessoas de risco e em risco, governo por elites
minoritárias, inclusões e mais inclusões, vida livre nos campos de concentração
da cidade, a prisão também não é mais a mesma. Ela deixou de ser a expressão do
medo e da revolta contra o insuportável, por quem se atreveu a atentar contra a
propriedade ou o moralizador; por quem, num átimo intempestivo, tirou a vida de
alguém; pelo conjunto de infelizes, otários e fracassados apanhados pela insuperável
seletividade do sistema penal. A prisão se tornou uma empresa e um oportuno aparato
jurídico, assistencial, social e diplomático nas mãos dos presos. Nos Estados
Unidos ela foi integrando a população de rua em suas relações, propiciou
encontros com encarcerados, formação de novas famílias com casamento
consagrado, entrega aos desígnios religiosos, além de compor empreendimentos
econômico-sociais, segundo as regras da legalidade e das ininterruptas ilegalidades.
Essas características, no Brasil recente, combinam-se com o domínio do tráfico
de drogas e de seu sistema próprio de funcionamento administrativo, justiça,
policiamento e negociação com o Estado sobre a produtividade e o apaziguamento na
prisão. A sociedade de controle, com sua variada penalização, facilitou a
emergência da administração da prisão pelos próprios presos, tanto pelo viés
repressor e violento da exceção do PCC (Primeiro Comando da Capital), em São
Paulo, quanto por meio dos direitos que levam à democratização das decisões,
como no caso de Bragança Paulista (SP), ou mesmo pela participação pelo voto
nas eleições, como Porto Alegre (RS).
A sociedade de controle também não supera a relação
legalidade-ilegalidade herdada da sociedade disciplinar, mas proporciona a
descentralização das redes para os fluxos, estabelecendo variadas formas de
participação em que, e de certa maneira, todos acabam incluídos, desde o
morador de rua, o prisioneiro, os múltiplos delatores. O dispositivo para tal, não
pode deixar de ser paradoxal e chama-se campo de concentração: na prisão, na
periferia, nos condomínios luxuosos, no Estado, vive-se de direitos e exceções articulados.
Seja pelo Estado, em nome da defesa e da segurança da
população e do planeta, seja no ermo de um campo de concentração, a segurança
se torna o dispositivo confiável para acabar com as infrações, seus agentes e
seus espaços; para tal, transformou-se os programas de tolerância zero em
política de tolerância zero, articularam direitos com torturas, inclusões
segregadoras com participação, inibições de resistências com participação
democrática. O capitalismo liberal pluralista vive sua realidade e sua utopia
pela conservação moderada dentro e fora da prisão, nos fluxos entre os próprios
campos de concentração, nas empresas, nas universidades, no Estado, com a
certeza que a vigilância eletrônica é capaz de controlar a vida de cada um e
qualquer espaço.
Por fim, deve-se destacar que os direitos humanos e os
direitos de minorias também visibilizaram a freqüência nada surpreendente das
violências contra crianças cometidas por pais, parentes e demais instituições,
e expuseram os efeitos da cultura do castigo que o humanismo moderno e
contemporâneo são incapazes de conter e sequer diminuir, com sua atual cultura cidadã.
Essa pletora de direitos mostrou seus derrisórios começos, feitos de força,
deveres, moral e arrogância. Humanos e de minorias, eles reiteram a crença no
universal em que o proibitivo prepondera, a começar pela liberdade negativa dos
liberais, a soberania do pai, a disciplina que busca o corpo útil e dócil, o
controle inteligente produtivo e participativo, a retórica maioria, a reforma
eficiente e ampliada do sistema de castigos e recompensas.
A vida está onde há resistências e invenções, onde há
transbordamentos; nas experimentações surpreendentes de si e do espaço, ali
onde começa a política com ética, no próprio indivíduo e nas suas relações de
poder e liberdade; no que desmorona para passar, no que provoca vacúolos; na
liberdade de arruinar a comunicação constante, o constrangedor acasalamento
entre religião e razão. Como atentam os abolicionistas penais, o fim da punição
começa em cada um e numa prática que impeça encarceramentos.
Edson Passetti é professor do Depto de Política e
Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, coordena o Nu-Sol (Núcleo de
Sociabilidade Libertária) (link www.nu-sol.org
) e é autor, entre outros livros de Anarquismos e sociedade de controle (2003);
Anarquismo urgente (2007). Dentre os cursos que organizou destacam-se: Curso
livre de abolicionismo penal (2004); e com Salete Oliveira A tolerância e o
intempestivo (2005) e Terrorismos (2006).
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