A lei brasileira de anistia concede seus benefícios “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos poderes legislativo e judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, com fundamento em atos institucionais ou complementares”.
Um recente debate sobre essa matéria teve início mediante o patrocínio do ministro da Justiça, Tarso Genro, e do ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, mas não foi adiante, porque o presidente Lula entendeu de intervir, desautorizando a atuação de seus colaboradores, para declarar, como se estivesse em palanque eleitoral, que não deveríamos nos empenhar em “xingar” os militares ou civis que torturaram e mataram nos anos de “chumbo”, mas em homenagear os heróis mortos. Com isso, o presidente vai na linha do silêncio, ou seja, da impunidade.
É nessa linha que podemos situar a posição assumida pelo advogado geral da União, ao intervir, na ação declaratória promovida pelo Ministério Público Federal para esclarecer a atuação dos oficiais do Exército, Carlos Alberto Bilhante Ustra e Audir Santos Maciel, no DOI/CODI do então II Exército, em São Paulo, no período compreendido entre 1970 a 1976, em plena ditadura militar.
A Advocacia Geral da União, em extenso arrazoado, pretende que aquele feito seja extinto sem julgamento do mérito, ou se assim não se entender, que se reconheça a prescrição da ação intentada pelo Ministério Público, ou ainda, caso vencidas essas etapas processuais, “determine a completa improcedência do pedido, pelo mérito propriamente dito”, considerando que as alegações do parquet são “totalmente insubsistentes e sem qualquer amparo jurídico”.
O jornalista Jânio de Freitas, em oportuno artigo que se pode ler na edição de 14 de agosto de 2008 no jornal Folha de S. Paulo, asseverou que “o impedimento de chegar-se à decisão definitiva da questão é uma forma de censura que nega o regime democrático e o estado de direito e afirma a prevalência da força armada como uma ameaça tácita”. E conclui: “o reconhecimento de um estado permanente de censura e negação da democracia é explicitado por autoridades de todos os poderes, presidente e ministros do Supremo Tribunal Federal, presidente da República, congressistas a granel”. “Essa discussão não serve à estabilidade; não podemos ter uma conclusão de uma escalada das tensões”, diz Nelson Jobim. “É preciso parar de 'xingar' os que mataram estudantes e operários”, afirma Lula. “Não é oportuno levantar esse assunto; conhecemos também as outras fórmulas”, declaram congressistas do governo e da oposição. Nos últimos vinte e três anos, nem a fórmula das frases variou. A evidência crua e simples: expressam o medo e a convicção de que os militares, em especial os do Exército, reinstalariam a instabilidade, senão mais do que isso.
Depois da intervenção do presidente da República, a mídia silenciou, desaparecendo a questão do noticiário dos órgão de imprensa. Diante, entretanto, da inusitada intervenção de um órgão diretamente subordinado à Presidência da República e que canalizou em termos pretensamente jurídicos o pensamento do chefe do Estado, a discussão sobre o assunto voltou ao noticiário dos jornais, com destaque à posição assumida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal ao afirmar que não se deve ideologizar os direitos humanos, pois, se os crimes da ditadura são imprescritíveis, também o é o terrorismo (Folha de S. Paulo, 04.11.08), esquecido, naturalmente, de que os direitos humanos são os direitos das vítimas e que não se pode falar de terrorismo quando está em jogo uma luta pelo restabelecimento da democracia, no âmbito de um estado de direito.
E se a polêmica retorna aos meios de comunicação, isso acontece porque não se trata de um tema que se possa, pura e simplesmente, jogar para debaixo do tapete... A Lei de Anistia considera conexos, para os seus efeitos, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política (parágrafo 1º, do artigo 1º da Lei nº 6.683/79). Os juristas da ditadura ou aqueles que a ela se acomodaram, encontraram nesse último dispositivo, argumento para beneficiar tantos quantos torturaram e mataram em nome do Estado. Falou-se, então numa lei de “duas mãos”, a contemplar vítimas e seus algozes.
Ao que tudo indica, buscou-se, com base numa interpretação equivocada do que seja conexidade em direito penal, a razão para equiparar-se, para os efeitos da Lei de Anistia, torturadores e torturados. Trata-se de uma solução incompatível com o próprio instituto da anistia. Para demonstrar que semelhante interpretação não tem sustentação nos princípios que informam a anistia convém, antes de mais nada, ponderar que é da essência da anistia o perdão a determinados crimes, tendo em vista a pacificação dos espíritos, agitados por acontecimentos que, engendrando paixões coletivas, perturbam a ordem social, incidindo no direito penal.
É de se perguntar, em seguida, o que são crimes conexos? Crimes conexos contemplam as ações de uma ou mais pessoas objetivando o mesmo resultado. Daí se infere que uma é a finalidade daqueles que praticam crimes políticos ou a eles assemelhados (a lei fala, impropriamente, em crimes conexos aos políticos); bem outra é a meta daqueles que torturam e matam em nome do Estado ou com seu consentimento. Como falar-se em conexidade, se os crimes de uns vão num sentido e os de outros em sentido diverso?
Tudo isso quer dizer que a anistia contempla crimes cometidos contra o Estado, que ao Estado convém esquecer para encontrar a pavimentação imprescindível ao desenvolvimento harmônico da sociedade. Beneficia aqueles sobre os quais o Estado impôs sua vontade, excluindo-os da convivência social ou, extravasando em sua atuação das leis penais a determinadas pessoas, considerando não puníveis os atos que praticaram, embora tipificados nos códigos penais ou leis extravagantes. Tudo isso tendo em vista a motivação que leva à prática de delitos, depois considerados inexistentes pelo próprio Estado.
Ferri, na sua “relazione al progetto” de direito penal italiano, de 1921, falando sobre o delito político, afirmava: “o elemento decisivo – para a sua qualificação – é sempre o psicológico e pessoal dos motivos determinantes do autor do delito, entendendo-se, com isso, os motivos e os escopos de melhoramento coletivo, ainda quando econômico, ou seja, superior e diverso do motivo de vantagem egoística e pessoal”. Isso quer dizer que crimes conexos, conforme dispõe a lei, são aqueles cometidos pelo próprio autor ou por quem se tenha associado a ele. Se Tício comete um homicídio e, ao ser detido pela polícia, é, em seguida, morto por um de seus agentes, trata-se de dois crimes absolutamente independentes um do outro. Não se pode considerar o segundo conexo ao primeiro. Pode-se dizer que o primeiro crime ensejou o segundo, mas não é a ele conexo.
Estudando a problemática dos crimes conexos, Damásio E. de Jesus, fundamentado nas lições de Maggiore, considera que a conexão pode ser: “teleológica (ou ideológica) quando um crime é praticado para assegurar a execução de outro. Exemplo, o sujeito mata o marido para estuprar-lhe a esposa. Há dois crimes: o homicídio e o estupro. O primeiro é denominado crime-meio; o segundo, crime-fim. No caso, o homicídio é qualificado pela condição teleológica. Os dois delitos permanecem ligados pelo laço de causa e efeito, aplicando-se a eles a regra do concurso material (art. 51, caput, do Código Penal); consequencial (ou causal), quando o crime é cometido para assegurar a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro. Exemplo, o sujeito incendeia a casa, após furtar, para fazer desaparecer qualquer vestígio; e, a conexão pode ainda ser ocasional, quando o crime é cometido por ocasião e prática de outro. Exemplo, a subtração de jóias da vítima estuprada (cf. Direito Penal, I / 202 e seguintes)”.
Manzini adverte em seu Tratado de Direito Penal Italiano: “enquanto possa parecer estreito o vínculo de conexidade entre vários crimes, a anistia acordada para um desses crimes não se estende a outros não indicados no ato de concessão”. Por outro lado, se entrarmos no campo da causalidade, iremos concluir ainda pela impossibilidade de considerar-se conexos com os crimes anistiados os delitos praticados pelos agentes do Estado nas diligências policiais destinadas a coibir os crimes que a anistia considerou impuníveis ou inexistentes.
Ora, do problema do nexo de causalidade no direito penal se chega à noção da imputação a título de dolo ou culpa. O problema “del rapporto di causalitá nel diritto penale si ricollega allá nozione della imputatio facti che nel tardo médio evo sorse per opera dei tratici, i quali la consideraron come presupposto della imputatio júris, e cioé dell´imputazione a titolo di dolo o colpa.” (c. Antolisei, II rapporto di causalitá nel diritto penale, Torino, 1960, introduzione). Assim, é causa a totalidade dos elementos indispensáveis para verificar-se o efeito, mas é preciso distinguir a causa das meras condições.
Destarte, os delitos anistiados constituíram-se não em causas, mas em meras condições para que os agentes do Estado, fossem quais fossem, impusessem, aos sujeitos abrangidos pela Lei de Anistia, os tratamentos cruéis e degradantes a que foram submetidos. Então, não há entre uns e outros a pretendida conexidade, que decorre de um nexo causal entre as ações praticadas por uma ou mais pessoas, objetivando um mesmo fim.
No caso, não se pode falar em identidade de propósitos entre delitos políticos e os crimes comuns cometidos pelos agentes da ditadura militar. Ademais, não se pode pensar em conexidade sem relacioná-la com o princípio do fato típico. O fato típico cometido pelo beneficiário da anistia é o delito político ou eleitoral. Os fatos a eles conexos não podem perder a característica dos delitos chamados principais. Por outro lado, o crime cometido, in casu, pelos agentes do Estado, não tem qualificação política e, portanto, entre eles não há conexidade. Conexão é nexo, ligação. Ora, em direito penal só pode haver conexidade se os vários autores buscam a mesma finalidade na prática do ato delituoso.
O festejado Frederico Marques, ao estudar a co-delinqüência, mostra que, no concurso eventual de crimes, existe uma norma de extensão da parte geral do Código Penal que possibilita a punição dos que participam, como autor, da prática delituosa (Tratado, II, p. 306). Mas, como se viu, delitos conexos não podem ser outros senão aqueles que buscam a mesma finalidade. Assim duas, três ou mais pessoas, tendo em vista apropriarem-se de dinheiro público, praticam atos que possibilitam o desenlace. São atos que se constituem em crimes autônomos, mas que levam à consumação do alvo pretendido: são crimes conexos. Agora, pretender-se que intervindo policiais, os atos praticados por estes para deter os culpados ou obter a devolução da coisa apropriada são conexos àqueles primeiros, vai na “contramão” da definição de autoria ínsita no Código Penal: “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa” (artigo 2º).
Isto posto, vamos abordar a questão da imprescritibilidade dos crimes praticados por agentes da ditadura militar. Antes de mais nada, tenha-se em vista o disposto no artigo 5º, incisos XLIII e XLIV, da Constituição Federal. A leitura dos artigos que tratam dos fundamentos da República leva à convicção de que os direitos humanos são parte relevante nessa relação. A Carta Magna fala em dignidade da pessoa humana e na prevalência dos direitos humanos (artigo 1º, III e artigo 4º, II).
Ora, a tortura é considerada crime hediondo, insuscetível de graça ou anistia, bem como imprescritível a ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado democrático. Dessa forma, os crimes cometidos pelos agentes da ditadura militar, civis ou militares, não cabem na Lei de Anistia e são imprescritíveis, quer dizer, os seus autores podem, a qualquer tempo, ser sujeitos à investigação e ulterior submissão ao poder judiciário. A Constituição tem validade universal, abrange passado, presente e futuro, de sorte que não se pode, com fundamento no fator temporal, escapar-se da submissão ao devido processo legal, quem quer que seja, uma vez tendo praticado crimes contra a humanidade. Mas há muito mais a dizer.
O Estado brasileiro subscreveu e ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), reconhecendo, pois, a competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre questões atinentes a matéria. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão principal da Organização dos Estados Americanos (OEA), no campo dos direitos humanos, tem afirmado que “si bien los gobiernos pueden acordar amnistias por razones de paz social, no por ello devan dejar de investigar los delitos de lesa humanidad que pudieron haberso cometido durante los períodos que abarca dicha medida” (cf. Repertório de la Comisíon Interamericana de Derechos Humanos – CIDH, 1971 a 1995).
No seu informe anual de 1985/86, sobre casos de desaparecimentos forçados na Guatemala, assim se expressou a CIDH: “És condenable y grave la responsabilidad de quienes em el ejercício de sus funciones, durante el período que cubre la presente resolución bajo las administraciones de los generales Romeu Lucas Garcia, Enfrian Rios Montt y Oscar Humberto Mejía Víctores, ordenaron las capturas, efectuaron las aprehensiones, mantuvieron detenidos y ijecytaron sumariamente y sin juício o hicieron desaparecer a los miles de ciudadanos gualtemaltecos que no son habidos em la República de Guatemala”. Assim, declara a CIDH: “Los gobiernos democráticos de América pueden conceder amnistia por razones de paz social, pero no dejar de investigar los hechos atroces que pudieran haber acontecido durante los períodos que los han precedido” (apud Repertório, p. 263).
Destarte, ao pronunciar a Lei de Anistia de 1979, dever-se-ia sancionar e punir os criminosos do regime ditatorial. Se isso não foi feito, desconhecendo, o Estado, suas obrigações internacionais, mediante descabida e esdrúxula interpretação da lei, por motivos claramente oportunistas, não se pode, sequer, admitir que essa lamentável omissão sirva de pretexto para entregar-se cargos públicos, relevantes ou não, a quem torturou e matou naquele período. Não se pode argumentar em seu benefício com a ausência de punição, pois essa omissão não encobre as atrocidades que cometeram.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) assinalou, naquela oportunidade, que “la aplicación de leyes de amnistia que impieden el acceso a la justicio em casos de serias violaciones a los derechos humanos hace ineficaz la obrigación de los Estados partes de respetar los derechos y libertades reconocidas en ella y garantizar su libre y pleno ejercício a toda persona sujeita a sua jurisdicción sin discruminación de ninguna clase, según estabelece el artículo I (I) de la Convención. En consecuencia, eliminan la medida mas efectiva para la vigencia de los derechos humanos, vale decir, el enjuiciamiento y castigo de los responsables”.
E a Corte Interamericana já disse que “os Estados não podem, para não dar cumprimento a suas obrigações internacionais, invocar disposições existentes em seu direito interno, como o é no caso de Lei de Anistia que obstaculiza a investigação e o acesso à Justiça. O Estado tem o dever de investigar as violações dos direitos humanos, processar os responsáveis e evitar a impunidade. A Corte tem definido a impunidade como “la falta em su conjunto de investigación, persecución, captura, enjuiciamiento y condena de los responsables de las violaciones de los derechos protegidos por la Convención Americana”, e já assinalou que “el Estado tiene la obligación de combatir tal situación por todos los medios legales disponibles ya que la impunidade propicia la repetición crónica de las violaciones de derechos humanos y la total indefensión de las víctimas y sus amiliares (grifo nosso)” (Caso Paniagua Morales y otros; Corte IDH, Caso Loayza Tamaio, sentencia de reparaciones).
O Brasil assinou a Convenção Americana em 22 de novembro de 1969, e depositou sua ratificação em 25 de setembro de 1992. Sendo a lei de anistia de 1979, poder-se-ia alegar que, não tendo o Brasil ainda ratificado o tratado em apreço, não estava obrigado a cumprir seus termos, o que somente dar-se-ia a partir de 1992, quando, afinal, o ratificou. O argumento não procede porque o Tratado de Viena, sobre o direito dos tratados, esclarece que um país que tenha firmado um tratado, mesmo que não o tenha ratificado, não pode frustrar seu cumprimento. Portanto, no caso do Brasil, as violações à Convenção Americana, anteriores à sua ratificação, não legitimaram a situação daqueles que, na qualidade de agentes do governo, atentaram contra direitos reconhecidos da pessoa humana e, destarte, não poderiam ser sujeitos à Lei da Anistia.
Na verdade, além de pretender que a Lei de Anistia possa abranger tantos quantos, como agentes do Estado, violaram direitos humanos, busca-se introduzir argumentos que tornariam inviável a persecução penal, acobertando-se no decurso de prazo que não permitiria novas investigações que redundassem na abertura de ação penal pelos crimes cometidos durante a ditadura militar por seus agentes e consequente decisão judicante.
Em primeiro lugar, é preciso reafirmar que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. É o que assevera, em seus considerandos, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, adotada pela Resolução 2391, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 26 de novembro de 1968. A Assembléia Geral, dentre outras considerações, se diz convencida de que “a repressão efetiva dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade se constitui em fator importante da prevenção desses crimes, da proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, encorajará a confiança, estimulará a cooperação entre os povos e irá favorecer a paz e a segurança das nações”.
Sobre a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, nem se alegue que o Brasil – estávamos em pleno regime militar – não ratificou a Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e contra a humanidade. Contudo, a aludida Convenção foi firmada pelo Brasil e, nessas condições, consoante já afirmamos, diante dos dizeres da Convenção das Nações Unidas sobre o direito dos tratados, os Estados que firmam uma obrigação internacional não podem atuar em sentido contrário a ela.
Especulemos, em remate, sobre o valor do costume e como ele impõe o seu cumprimento, como se fosse fruto de uma imposição normativa. A esse respeito, escreve a professora Flávia Piovesan: “Quanto ao costume internacional, sua existência depende: a) da concordância de um número significativo de Estados com relação a determinada prática e do exercício uniforme relativo a elas; b) da continuidade de tal prática e do exercício uniforme relativo a ela; c) da concepção de que tal prática é requerida pela ordem internacional e aceita como lei, ou seja, de que haja o senso de obrigação legal, a opinio juris. Nesse sentido, a prática de tortura, das detenções arbitrárias, dos desaparecimentos forçados e das execuções sumárias cometidas ao longo do nazismo constitui violação ao costume universal.
Na visão de Bruno Simma e Philip Alston, “o direito costumeiro internacional é geralmente concebido como decorrente da existência de uma prática geral (ou extensiva), uniforme e consistente, em maior ou menor grau acompanhada por um senso de obrigação legal, a opinio juris (The sources of rights law, p. 88). A Declaração Universal, afirma Norberto Bobbio, contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade concreta dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais... A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas as suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre (A era dos direitos, apud Antônio Trindade in A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro, 2º ed, p. 194). Assim, como ainda escreve Cançado Trindade, “a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma série de instrumentos internacionais vieram à luz, abordando os temas mais variados do elenco daqueles inalienáveis da pessoa humana, cada um resultante de um movimento e de uma realidade política e histórica, todos, contudo, convergentes e, ao cabo, marcados pela indivisibilidade” (idem ibidem).
Acrescente-se que, na hermenêutica dos tratados de direitos humanos, está estabelecida a primazia das normas mais favoráveis às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. É a solução expressamente consagrada em diversos tratados de direitos humanos da maior relevância por suas aplicações práticas. Nesse sentido, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado-parte, em virtude de outras convenções, ou leis, regulamentos ou costumes, “sob o pretexto de que o presente Pacto não os reconheça em menor grau (artigo 5º , 2).
Tudo o que vem exposto leva à conclusão: a) de que a Lei de Anistia não alcança, na outorga de seus benefícios, os agentes do Estado que cometeram crimes para a sobrevivência da ditadura militar; b) que esses crimes – contra a humanidade – são imprescritíveis, cabendo ao Estado investigá-los, promovendo contra seus autores o devido processo legal. Isso, tendo em vista que sem Justiça não é possível alcançar a Paz.
Hélio Bicudo é advogado ligado à área de direitos humanos da Arquidiocese de São Paulo.
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