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Aos 99 anos, Boris Schnaiderman mantinha interesse por tudo que é humano
Por Irineu Franco Perpetuo
23/05/2016

Escritor e tradutor que formou uma geração de estudiosos da literatura russa no Brasil morreu no último dia 18 de maio


Foto: Josias Teófilo

Os tradutores e estudiosos de literatura russa no Brasil ficaram órfãos no último dia 18 de maio, com o falecimeno, em São Paulo, do tradutor, professor e escritor Boris Schnaiderman. Aos 99 anos, ele continuava tão lúcido, ativo e produtivo como sempre, sem jamais perder a centelha criativa, a vontade de aperfeiçoar o que já parecia perfeito, o interesse por tudo que era humano –acabara de lançar, pela Editora 34, a tradução de O Amor de Mítia, do primeiro russo a vencer o Nobel de Literatura Ivan Búnin (1870-1953).

Boris nasceu em Úman, na Ucrânia, no ano da Revolução Russa – 1917. Ainda criança, viu as filmagens de O Encouraçado Potiômkin, de Serguei Eisenstein, em Odessa, antes de vir ao Brasil, com os pais, em 1925.

Formou-se na Escola Nacional de Agronomia do Rio de Janeiro, naturalizou-se brasileiro e, como pracinha, participou da campanha da FEB contra os nazistas na Itália, experiência que ele trataria ficcionalmente em Guerra em Surdina, de 1964 e, mais recentemente, nos ensaios autobiográficos de Caderno Italiano (Editora Perspectiva).

A primeira tradução literária, com o pseudônimo de Boris Solomonov, e posteriormente repudiada, foi do romance Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, em 1944. Em 1957, Schnaiderman passou a colaborar na imprensa, e essa relevante e caudalosa atividade jornalística acabou dando impulso a sua carreira literária. Embora não tivesse feito formalmente curso de Letras, foi escolhido para iniciar o curso de Língua e Literatura Russa na USP, em 1960.

Logo vieram os anos de chumbo da ditadura militar, e ensinar “língua de comunista” virou tão suspeito que ele chegou a ser detido em 1969. A história é conhecida: Schnaiderman escrevia na lousa, em aula, quando a sala foi invadida por militares armados. Pergunta do professor: “Nós estamos aqui com giz e apagador e os senhores vêm interromper a aula armados de metralhadora?” Uma reação suficiente para lhe garantir o “recolhimento” ao Dops.

Aposentado em 1979, continuou não apenas a traduzir, como a continuar burilando as traduções já publicadas. Os Irmãos Karamávoz, em um certo sentido, constituíram uma exceção em seu trabalho – normalmente Boris privilegiava não romances caudalosos, e sim textos mais breves, que este ourives perfeccionista reexaminava incessantemente, sempre em busca da palavra justa, do tom certo, da frase exata. Vieram daí jóias como Dama de Espadas, de Púchkin (Prêmio Jabuti de tradução em 1999), Sonata a Kreutzer e A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, Memórias do Subsolo, Um Jogador e O Eterno Marido, de Dostoiévski, os contos de Tchékhov etc.

Ao lado dos irmãos Campos, ele marcou época na poesia, com memoráveis versões de poetas russos, especialmente Maiakóvski, cuja fortuna crítica em nosso país foi, desde então, definitivamente reconfigurada – de mero propagandista da Revolução, ele passou a ser visto como um dos grandes poetas experimentais das vanguardas da primeira metade do século XX. Ainda na área poética, Boris trabalhou a quatro mãos com Nelson Ascher em traduções da lírica de Púchkin. Foi também pensador de fôlego, recebendo o Prêmio Jabuti de ensaio com Dostoiévski prosa poesia (Perspectiva, 1982). As homenagens incluíram ainda o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras (2003) e a Medalha Púchkin, do governo da Rússia, em 2007.

Não é exagero considerar Boris Schnaiderman o pai fundador da escola moderna da tradução de literatura russa no Brasil. Em um tempo em que as distâncias entre nosso país e a Rússia eram maiores, e que ambos os países viviam regimes ditatoriais, foi fundamental ter um mediador cultural com sua cultura enciclopédica, paixão infatigável, gosto amplo, apetite intelectual pantagruélico e rigor científico. Graças a ele, demos um salto qualitativo decisivo: do diletantismo disperso ao profissionalismo sistemático. E, graças a seus ensinamentos, essa mudança de paradigma ético, estético e intelectual hoje parece irreversível. Se em nossos dias a literatura russa ocupa um lugar especial na cultura brasileira, e os estudos de russo por aqui são os mais avançados da América Latina, isso é devido não apenas à qualidade intrínseca das obras, mas ao tipo altamente qualificado de defesa e difusão que ela vem recebendo de Boris e seus discípulos.

Schnaiderman ajudou a definir o cânone da literatura russa no Brasil e formou, direta ou indiretamente, gerações de tradutores e estudiosos. Só quando o professor Bruno Gomide, da USP, concluir a biografia intelectual dele a que vem se dedicando é que teremos condições de aquilatar seu legado na justa medida.

Irineu Franco Perpetuo é jornalista. Publicou, pela Editora Globo, a tradução, diretamente do russo, de dois livros de A. S. Púchkin: Pequenas Tragédias (2006) e Boris Godunov (2007). Traduziu diretamente do russo os livros Memórias de Um Caçador (Editora 34), de Ivan Turguêniev, Vida e Destino (Editora Alfaguara), de Vassili Grossman, A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói e Memórias do Subsolo, de Dostoiévski (ambos pela Publifolha). É colaborador da revista Concerto e dá palestras nos concertos internacionais da Sociedade de Cultura Artística. Coautor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001), e autor de Cyro Pereira – Maestro (DBA Editora, 2005) e dos audiolivros História da Música Clássica (Livro Falante, 2008), Alma Brasileira: A Trajetória de Villa-Lobos (Livro Falante, 2011) e Chopin: O Poeta do Piano (Livro Falante, 2012).