Um dos grandes desafios do mundo contemporâneo é, ao lado do chamado
desenvolvimento sustentável, a transformação do conhecimento em
riqueza. Como estabelecer padrões de produção e de consumo que atendam
às demandas das populações crescentes em todos os cantos da Terra,
preservando a qualidade de vida e o equilíbrio do meio ambiente no
planeta? Esta é, em resumo, a pergunta que nos põe o assim chamado
desafio ecológico. Como transformar conhecimento em valor econômico e
social, ou, num dos jargões comuns ao nosso tempo, como agregar valor
ao conhecimento?
Responder a essa pergunta é aceitar o segundo desafio acima mencionado
e que poderíamos chamar de desafio tecnológico. Para enfrentar essa
tarefa, própria do que também se convencionou chamar economia ou
sociedade do conhecimento, deveríamos estar preparados, entre outras
coisas, para cumprir todo um ciclo de evoluções e de transformações do
conhecimento. Ele vai da pesquisa básica, produzida nas universidades e
nas instituições afins, passa pela pesquisa aplicada e resulta em
inovação tecnológica capaz de agregar valor comercial, isto é, resulta
em produto de mercado.
Os atores principais desse momento do processo do conhecimento já não
são mais as universidades, mas as empresas. Entretanto, para que a
atuação das empresas seja eficaz, é necessário que tenham no seu
interior, como parte de sua política de desenvolvimento, centros de
pesquisa próprios ou consorciados com outras empresas e com
laboratórios de universidades. O importante é que a política de
pesquisa e desenvolvimento seja da empresa e vise às finalidades
comercialmente competitivas da empresa. Sem isso, não há o desafio do
mercado, não há avanço tecnológico e não há, por fim, inovação no
produto.
Um dos pressupostos essenciais da chamada sociedade ou economia do
conhecimento é, pois, para muito além da capacidade de produção e de
reprodução industriais, a capacidade de gerar conhecimento tecnológico
e, por meio dele, inovar constantemente para um mercado ávido de
novidades e nervoso nas exigências de consumo.
Na economia tipicamente industrial, a lógica de produção era
multiplicar o mesmo produto, massificando-o para um número cada vez
maior de consumidores. Costuma-se dizer que na sociedade do
conhecimento essa lógica de produção tem o sinal invertido: multiplicar
cada vez mais o produto, num processo de constante diferenciação, para
o mesmo segmento e o mesmo número de consumidores. Daí, entre outras
coisas, a importância para esse mercado, da pesquisa e da inovação
tecnológicas.
A ser verdade essa troca de sinais, a lógica de produção do mundo
contemporâneo seria não só inversa, mas também perversa, já que
resultaria num processo sistemático de exclusão social, tanto pelo lado
da participação na riqueza produzida, dada a sua concentração –
inevitável para uns e insuportável para muitos –, quanto pelo lado do
acesso aos bens, serviços e facilidades por ela gerados, isto é, o
acesso ao consumo dos produtos do conhecimento tecnológico e inovador.
Desse modo, aos desafios enunciados logo no início, é preciso
acrescentar um outro, tão urgente de necessidade quanto os outros dois:
o de que, no afã do utilitarismo prático de tudo converter em valor
econômico, tal qual um Rei Midas que na lenda tudo transformava em ouro
pelo simples toque, não percamos de vista os fundamentos éticos,
estéticos e sociais sobre os quais se assenta a própria possibilidade
do conhecimento e de seus avanços. Verdade, beleza e bondade, no
mínimo, dão ao homem, como já se escreveu, a ilusão de que, por elas,
ele escapa da própria escravidão humana.
Dividir a riqueza, fruto do conhecimento, e socializar o acesso aos
seus benefícios, fruto da tecnologia e da inovação é, pois, o terceiro
grande desafio que devemos enfrentar e a sua formulação poderia se dar
dentro de uma perspectiva cuja tônica fosse a de um pragmatismo ético e
social. Quem sabe, possa ele constituir a utopia indispensável ao
tecido do sonho de solidariedade das sociedades contemporâneas.
Todo conhecimento é útil. Como o fundamento da moral é a utilidade, é
possível afirmar que a utilidade do conhecimento é o que o torna ético,
por definição. Nesse sentido, não há conhecimento inútil, já que a ação
de conhecer está voltada para proporcionar felicidade, prazer e
satisfação à sociedade. O conhecimento é útil porque, como outras ações
éticas do ser humano, corresponde à necessidade de uma prática
desejável, aquela que nos leva a buscar a felicidade de nossos
semelhantes e nela sentir o prazer de sua realização no outro. Uma das características fundamentais do conhecimento contemporâneo é o seu utilitarismo.
Em que sentido o conhecimento utilitário das economias globalizadas na
sociedade do conhecimento difere da utilidade ética constitutiva de
todo conhecimento?
Procurar responder a essa questão é também procurar entender, na lógica
de funcionamento das tecnociências, como as grandes transformações
tecnológicas influenciam a ciência e como a ciência, ela própria,
propicia novas tecnologias e inovações que dinamizam os mercados e
ativam o consumo das novidades dos produtos delas decorrentes.
Desse ponto de vista, o conhecimento é utilitário não porque tenha
finalidade prática, mas por agregar valor aos produtos dele derivados e
por ter objetivos fortemente comerciais.
A comercialização do produto do conhecimento visa também à felicidade
do outro, pela satisfação e pelo prazer, agora, do consumidor a que
ficou reduzido o seu papel social.
Por outro lado, a dinâmica do conhecimento pressupõe a liberdade de
conhecer. Os limites dessa liberdade são dados pelo alcance de nossa
capacidade de conhecimento, isto é, nos termos dos ensaios de Montaigne
e da filosofia de Pascal, pela portée, pelo raio de ação, do alcance da vida, da vida dentro do alcance de nossa ação no mundo.
Em outras palavras e em termos baconianos, a liberdade do conhecimento
tem os limites do conhecimento puro em oposição ao conhecimento
orgulhoso, oposição que, de certa forma, sob diferentes expressões,
caracteriza todo o iluminismo e a grande e longa herança racionalista
que nos legou e que viva permanece em nossas atitudes teóricas e
metodológicas diante do mundo, de seu conhecimento e dentro do
conhecimento do conhecimento do mundo, para introduzir aí uma pitada de
idealismo kantiano.
A alegoria mais conhecida do elogio da humildade do conhecimento contra
o orgulho e a arrogância da pretensão metafísica das perguntas
essenciais e das respostas definitivas está contida no jardim que
Cândido, na obra homônima de Voltaire, descobre e decide cultivar em
oposição às inquietações sem limite, isto é, sem alcance, sem portée, sem raio de ação, de Pangloss. Da mesma forma, Swift, no livro famoso das Viagens de Gulliver,
descreve os laputanos plenos de predicados que os tornam ilimitados e
inúteis de conhecimento. São dotados para conhecer, sendo matemáticos
exímios, mas são ambiciosos, vivendo nas nuvens, daí terem “um dos
olhos voltado para dentro e o outro apontando diretamente para o
zênite”.
Quer dizer, são orgulhosos porque querem a verdade definitiva e por
serem dotados dessa ambição de conhecimento vivem tropeçando em si
mesmos sem se dar conta do jardim que está ao alcance da vida de cada
um para se cultivar.
Para que se tenha medida da permanência desse tema, e num outro campo
de produção intelectual, vale lembrar o episódio da resenha publicada
em 1915 no The Times Literary Supplement sobre o livro A servidão humana,
de Somerset Maugham, lançado no mesmo ano, e na qual se afirmava que o
herói do romance, Philip Carey, do princípio ao fim da narrativa,
“estava tão ocupado com seus anseios pela lua que jamais conseguia ver
os seis vinténs a seus pés”.
Quatro anos depois da publicação da saga de formação e de aprendizagem
do torturado Philip Carey, Somerset Maugham publica um romance
inspirado na história de vida do pintor Paul Gauguin, cria um
personagem - Charles Strickland - que, de operador da bolsa de Londres,
abandona tudo - vinténs e família - e se entrega, de corpo e alma, no
Tahiti, à obsessão única e exclusiva de sua exuberante produção
artística em pintura. O livro, de 1919, teve seu título - The moon and six pence (Um gosto e seis vinténs, no Brasil) - tirado da resenha do The Times Literary Supplement,
aceita quase como uma provocação a que responde o narrador
autobiográfico do romance com uma forte simpatia pela saga do herói que
despreza os apelos materiais e as obrigações sociais de seus
compromissos e vai em busca da lua e da realização de seus sonhos.
Solução em tudo contrária à do desfecho de romântico prosaísmo que
caracteriza a paz e a tranqüilidade do jardim de amor-afeição (loving-kindness) que o casamento de Philip Carey e Sally Altheny constitui ao final da saga de formação e de amadurecimento do protagonista.
Esses dois romances de Somerset Maugham poderiam ser tomados como que
representando as duas pontas da tensão por que se estende nossa
existência no mundo e o conhecimento do mundo de nossa existência. É
como se fossem tótens epistemológicos entre os quais ressoa a pergunta
que o homem não deixará de fazer enquanto durar sua humanidade: “Qual o
sentido da vida, se é que a vida tem algum sentido?”
Penso que o sentido da vida é o conhecimento que, desse modo, é
ilimitado pela amplitude da pergunta, e é, ao mesmo tempo, limitado e
útil pelo alcance de nossa capacidade de resposta.
Algo parecido pode ser encontrado, ou perdido, na metáfora fantástica e
imortal do universo como a biblioteca de Babel, que nos apresenta Jorge
Luis Borges em seu conto famoso. Depois de perambular pelos paradoxos
do conhecimento contidos em sua labiríntica arquitetura, o
autor/narrador anota, sob a forma de falsa conclusão, que a biblioteca
é ilimitada e periódica. E termina : « Se um eterno viajante a
atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao cabo dos séculos que
os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que repetida, seria uma
ordem : a Ordem). Minha solidão se alegra com essa elegante esperança.
Este artigo é parte do
conteúdo do discurso proferido por ocasião da outorga do título de
Doutor Honoris Causa pela École Normale Supérieure de Lyon, França, em
18/11/2006.
O texto deste discurso foi publicado, pela Fapesp, no mesmo ano da
concessão do título, na forma de plaquete, em edição bilingue
português/francês com o nome A utilidade do conhecimento / L´utilité de
la connaissance .
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