Mais do que uma promessa de campanha do atual governo, estreitar as relações com os países da África e da Ásia é um desejo
da população brasileira, que apresenta mais de 66 milhões de
descendentes de africanos e 10 milhões de pessoas de ascendência árabe.
Verifica-se que a política externa brasileira deslocou-se da América do
Sul para o eixo Sul-Sul, englobando os países em desenvolvimento dos
continentes africano e asiático, ampliando o escopo de atuação, em
relação aos governos anteriores. Um dos desafios que se coloca, é intensificar as
relações sem repetir os padrões que o governo militar brasileiro e os
governos dos países do norte estabeleceram, e em alguns casos ainda
estabelecem, com esses países. O caminho parece estar na criação de
programas que associem desenvolvimento econômico, progresso social,
avanços democráticos e o respeito às diferentes nações e povos, sem
adotar uma política assistencialista. Pensando nessa direção, a agenda
do governo brasileiro sinaliza com a incorporação de prioridades que
vão além do comércio, envolvendo aspectos sociais, culturais e,
sobretudo, políticos. Embora haja bastante otimismo na parceria do
Brasil com os países do Sul, há quem duvide da eficácia dessa
integração na promoção do desenvolvimento econômico do país.
“A
atual política externa brasileira tem operado uma mudança significativa
em curto prazo. Por outro lado, dá continuidade a padrões de
relacionamento que já foram vistos no passado”, analisa o cientista
político Rafael Antonio Duarte Villa, da Faculdade de Filosofia Letras
e Ciências Humanas da USP, lembrando que o interesse do Brasil nos
países africanos foi notório nos governos militares nas décadas de 60 e
70. Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979) adotaram
um projeto de crescimento desenvolvimentista e a noção de
Brasil-Potência, e investiram ostensivamente nas
relações bilaterais com a África, com o objetivo claro de ingressar no
Primeiro Mundo. Além da intenção de entrar na disputa pelo controle das
riquezas africanas, a idéia era promover uma associação com os países
mais fracos buscando uma rota alternativa para o desenvolvimento,
livrando-se assim da dependência das grandes potências. As relações
eram centradas no comércio, e o Brasil ocupava uma posição de
“liderança natural” nas relações com os países do território africano.
Essa
dimensão aparece no atual governo e se manifesta nos números crescentes
de comércio com os países do Sul. De 2003 para cá as exportações
somaram mais de 50 bilhões de dólares, ultrapassando as exportações
para todos os países do Norte juntos. Só com países africanos o
comércio passou de menos de 5 bilhões para 10,7 bilhões de dólares. O
eixo Sul-Sul tem sido apontado como a melhor saída para o país fazer
bons negócios, já que a entrada em mercados como dos EUA, Japão, União
Européia e China é mais difícil.
Negociações desequilibradas
O embaixador Pedro Motta Pinto Coelho, diretor-geral do Departamento da África e Oriente Próximo do Ministério das Relações Exteriores (MRE), admite
que houve um objetivo real de ampliar o comércio com os países
africanos como Uganda, África do Sul e Nigéria, os países de língua
portuguesa, como Angola e Moçambique, e os do norte da África, como
Egito, Marrocos, Argélia, Líbia. “Entretanto, é preciso ressaltar que
queremos mesmo provocar meios e modos de importar mais desses países,
não só matérias-primas. Temos a firme intenção de desenvolver,
sobretudo, negociações desequilibradas em favor desses países, para que
eles possam exportar seus produtos para o Brasil”, defende Motta.
Rafael
Villa reconhece que “embora exista uma percepção da África e da Ásia
como oportunidade de estabelecer boas relações comerciais e fazer bons
negócios, o Brasil se coloca como um país que luta contra a
desigualdade, contra a pobreza, as doenças e a fome”. A formalização do
uso de temas entre eles a pobreza e a fome como instrumento da política
externa brasileira foi um diferencial do governo Lula em relação aos
governos anteriores. “Foi notável”, admite Villa, “desde os primeiros
encontros com governantes como Chirac e Tony Blair, o desenvolvimento
nacional e o combate à pobreza foram colocados como algo que não
poderia estar dissociado. Além disso, as metas internas não poderiam ser atingidas sem o desenvolvimento do país”. Esse caminho era coerente com a agenda social do governo (O Programa Fome Zero) e uma tentativa de projetar uma política interna
no nível externo, inclusive com a criação de um fundo para a pobreza.
Em sua opinião, a estratégia foi enfraquecida com a perda de relevância
do Fome Zero internamente.
A
“agenda prioritariamente social”, como descreve o embaixador Motta,
ganha corpo com ações voltadas à cooperação no desenvolvimento de áreas
básicas como saúde, agricultura e educação. O Brasil tem
disponibilizado experiências consideradas socialmente bem sucedidas
como os telecentros, o programa Bolsa-Escola, a agricultura familiar e
a produção de medicamentos para combate à Aids. “Por termos condições
semelhantes de clima, solo e cultura, podemos oferecer e intercambiar
experiências. Atendemos assim a uma aspiração que é crescente na
sociedade brasileira: a de conhecer suas raízes culturais e sociais”,
defende o embaixador.
Jocélio
Teles dos Santos, diretor Centro Estudos Afro-Orientais (Ceao) da
Universidade Federal da Bahia, ressalta que, embora as ações do governo
Lula remetam à política externa independente promovida no governo
militar, hoje vivemos em outro contexto, que fomenta uma outra relação com a África. “Não
são mais países sendo colonizados. Não cabe mais a idéia de ‘penetração
africana’. A lógica do capital se mantém, mas a diferença é que existem
ONGs e movimentos sociais do Sul e do Norte que atuam pressionando o
governo brasileiro para que se reveja os 40 anos de aproximação com os
países africanos e se promova relações em novas bases”, diz. Santos
destaca a ampliação de intercâmbio entre estudantes brasileiros e
africanos, bem como a proposta de realização da 2ª Conferência de
Intelectuais da África e da Diáspora – que acontecerá em Salvador de 12
a 14 de julho –, como elementos relevantes da política externa
brasileira, que ultrapassam o âmbito comercial.
Para o embaixador Jadiel Ferreira de Oliveira, chefe do Escritório Regional do MRE em São Paulo,
é natural e estratégico que as relações comerciais sejam as primeiras a
se desenvolver. “Tudo começa com o comércio. Tudo nos induz a fazer
negócios com a África e Ásia. É uma forma de convencer a população de
que a iniciativa é boa. Não há um interesse imperialista nem
colonialista nisso. É uma boa maneira de “vender o peixe”. Não se pode
dizer que queremos ter relações com a Ásia e Oriente Médio por razões
ideológicas ou filosóficas. As relações econômicas são importantes e
legítimas, mas a idéia é que sejam também políticas, que se tenha
também uma comunhão política”, diz.
Unindo forças
A
historiadora Fátima Viana Mello, diretora da Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional (Fase) e secretária-executiva da Rede
Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), acredita que a relação
do Brasil com os países do Sul aponta uma clara tentativa de unir
forças em torno de reivindicações comuns nas negociações políticas com
o eixo Norte – EUA, União Européia e Japão.
“No
governo Lula prevalece a idéia de que o investimento nas relações
Sul-Sul não deve apenas ampliar os investimentos e as exportações
brasileiras. A relação deve ser vista como um movimento de reforço de
uma aliança política para atuar de forma mais
coesa no sistema internacional. Isso aconteceu com o G20 e está
acontecendo através da iniciativa Ibas Fórum de Diálogo Índia, Brasil e
África do Sul”. Durante a Conferência Petista de Relações
Internacionais, que aconteceu em São Paulo no início deste mês, Mello
destacou também a participação dos movimentos sociais e ONGs na
definição das prioridades da política externa do governo. “Embora o
governo tenha adotado a agricultura de exportação como eixo central de
sua política, a introdução de temas como segurança alimentar,
agricultura familiar, fim dos subsídios agrícolas, na pauta das
discussões em organismos multilaterais é fruto dessa abertura”.
O
que se espera, diz Motta, é que “a agenda internacional cada vez mais
contemple nossos interesses e não seja ditada apenas pelos países
industrializados”. Para isso, a diplomacia brasileira tem buscado
fortalecer os laços e entendimentos do ponto de vista político, com
países que hoje têm cada vez mais presença e importância na dimensão
internacional, como China, Coréia, África do Sul, Índia, Argélia,
Egito, Angola e República Democrática do Congo.
Motta concedeu entrevista à revista ComCiência
enquanto participava da 3ª. Reunião em Nível Ministerial do Ibas, no
Rio de Janeiro. O Fórum foi criado em 2003 e congrega três países em
desenvolvimento da América do Sul, Ásia e África, aqueles de maior
expressão no contexto Sul-Sul. “É uma iniciativa típica de uma visão
cooperativa na área política, tecnológica e de integração comercial e
econômica”. No evento, os representantes
dos três países buscaram entendimentos sobre suas posições no plano
multilateral. Brasil, Índia e África do Sul têm trabalhado juntos nas
negociações de Doha, na Organização Mundial do Comércio (OMC),
defendendo, entre outras questões, o fim dos subsídios agrícolas. Para
Motta, a sintonia entre os participantes do Ibas tem produzido
resultados muito bons.
“Há
muito interesse desses países, por exemplo, em desenvolver conosco
cooperação, comercialização e utilização da energia originária da
biomassa, da bioenergia, em específico, do etanol e do biodisel”, conta
Motta. Os biocombustíveis têm sido um importante foco da política
internacional brasileira fora do eixo EUA-União Européia-Japão. A idéia
é que o Brasil exporte tecnologia, serviços, álcool e veículos flex fuel.
Os países do eixo Sul-Sul poderiam se desenvolver e abastecer o eixo
Norte. No início de março, uma comitiva de ministros de oito países
africanos esteve no Brasil para conhecer os programas.
Existe,
também, a possibilidade de que aconteça um acordo na área de livre
comércio que extrapolaria o Ibas, envolvendo o Mercosul, União
Aduaneira da África Austral (Sacu, em inglês) e a Índia. A próxima
reunião do Ibas está prevista para setembro no Brasil. Fátima Mello
avalia positivamente a criação dessa área de livre comércio, mas
defende que esse projeto de integração Sul-Sul priorize a cooperação
produtiva, política, institucional e tecnológica e não o comércio.
“Ainda mais quando se trata de países do Sul, que podem ter economias
similares. Senão vira um problema de competição por mercados”.
Outro
acordo de cooperação econômica, primeiro passo de um futuro tratado
tarifário-aduaneiro foi definido em maio do ano passado, durante a
Primeira Cúpula América
do Sul – Países Árabes, também realizada no Brasil. Representantes dos
países sulamericanos (Uruguai, Paraguai, Argentina e Brasil) e do
Conselho de Cooperação do Golfo (Omã, Arábia Saudita, Bahrein, Qatar,
Emirados Árabes Unidos e Kuwait) assinaram o acordo enfatizando a busca
por formar um mundo multipolar, em contraposição à visão estadunidense
de formação de um mundo unipolar.
Aposta no eixo Sul-Sul
Muitas
fichas estão sendo apostadas na integração do eixo Sul, mas não há
unanimidade quanto à eficácia dessa estratégia do governo. Na opinião
de Fábio Villares de Oliveira, diretor do Instituto de Estudos
Econômicos e Internacionais (IEEI), “a relação Sul-Sul não é a salvação
para o jogo. Vejo essa integração como um instrumento pequeno e lateral
a todo sistema”, critica. O IEEI acaba de lançar um livro, Índia, Brasil e África do Sul: perspectivas e alianças,
organizado por Villares, que resultou de uma ampla pesquisa
desenvolvida sobre o tema. Diferente das análises do governo, os
artigos que constam da obra não mostram com muito otimismo as relações
Sul-Sul e não demonstram resultados positivos substantivos no Ibas. “No
âmbito comercial a possibilidade de troca e comércio entre esses países
será pequena, porque há muitas semelhanças entre as economias. No G20
percebe-se que os países ganharam força, mas não os vejo como aliados
permanentes, e sim estratégicos. Conflitos futuros aparecerão. A
cooperação técnica e cultural também não tem muito futuro. A língua
será uma barreira à integração efetiva”, prevê o autor.
Já
para o cientista político da USP, Rafael Villa, pensar o
desenvolvimento do Brasil se valendo de parcerias e coalizões eventuais
ou permanentes com países do Sul, envolvendo menos o aspecto militar e
mais o político, é uma forma de o governo poder agir em bloco em
organismos multilaterais, como a OMC ou a Assembléia das Nações Unidas,
e poder barganhar melhores condições de política externa comercial, de
transferência de tecnologia e de propriedade intelectual. “A inserção
internacional do Brasil, face à globalização, não pode ser feita
enquanto agente individual, mas sim coletivo, em diferentes níveis, por
meio de coalizões mais ou menos permanentes com os países do Sul”.
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