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Reportagem
Pão e circo vigoram na mídia
Por Germana Barata
10/10/2007

Respeitável público!, não é preciso pagar ingressos para ver os irmãos lobisomem, a dona dos pares de silicones mais volumosos, a boca capaz de abrigar 12 limões e o menor homem do mundo. A televisão e a internet exibem tipos humanos considerados bizarros e estranhos para aqueles que desejam entretenimento em pleno domingo de sol. O limite entre a curiosidade e o desrespeito é freqüentemente ultrapassado, mas quem se importa? “O sono da opinião pública gera monstros”, adverte Roberto Romano, filósofo da Unicamp e autor do livro Moral e ciência: a monstruosidade no século XVIII (Ed. Senac/São Paulo), adaptando título da obra “O sono da razão produz monstros” do pintor espanhol Francisco Goya.

Com a preocupação de brecar ou desestimular os abusos comedidos contra os direitos humanos e a ética o próximo dia 21 será o Dia Contra a Baixaria na TV, promovido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em parceria com entidades da sociedade civil. A campanha que originou a data, “Quem financia a baixaria é contra a cidadania!” surgiu em 2002 e, nesse meio tempo, já soma quase 32 mil denúncias, sendo 1875 realizadas apenas neste ano. Entre as denúncias estão exageros ligados a cenas de sexo, violência, humilhações, desrespeito, discriminação, entre tantas outras.

No vale-tudo pela audiência, o fascínio pelo anômalo torna-se a principal estratégia para atrair a curiosidade do público em um casamento duradouro entre entretenimento e lucro. Era nessa fórmula que apostavam os donos de circo, ou os chamados freak-shows mais populares a partir do início do século XIX, quando recorriam a tipos exóticos aos olhos humanos, como gigantes, anões, gêmeos siameses, portadores de deformações, com excesso de pêlos no corpo, e até mesmo representantes de culturas não européias, tomados como selvagens, canibais. Este foi o caso de Ota Benga, pigmeu da atual República Democrática do Congo levado aos Estados Unidos por Samuel Phillips Verner, missionário da Carolina do Sul, para a Exposição de St. Louis de 1904. Ota foi transferido para o Museu de História Natural de Nova Iorque dois anos depois e terminou seus dias no Zoológico do Bronx, como representante da evolução homem-macaco, dividindo sua jaula com um orangotango.

Se no século XIX existia também, de certa forma, uma compaixão pelos monstros que ganharam visibilidade nos espetáculos, no século seguinte ela se transformou em constrangimento, argumenta Elaine Monteiro, professora de comunicação da Universidade Estácio de Sá, em artigo apresentado no Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação de 2005. Talvez esta seja a razão da apreciação ter migrado para os espaços privativos, entre quatro paredes, livre dos olhares e julgamentos alheios. “A cultura visual tem como suporte as novas tecnologias capazes de renovar as suas monstruosidades”, conclui a pesquisadora.

“(...) A visibilidade pública da monstruosidade, produzida no âmbito privado, é o ponto alto do espetáculo público. O freak-show, tal qual as teratóides (deformidades) humanas que se espalham nas feiras, bulevares e necrotérios ao longo do século XIX, hoje se espalham nas telas de vidro da televisão e de computadores”, compara Monteiro. Sua pesquisa lembra que a Paris do final dos anos de 1800 continha, em seus guias turísticos, uma visita ao necrotério. Este recebia uma multidão de 40 mil pessoas nos dias mais concorridos.

O sujeito normal é desafiado pela monstruosidade, acredita o filósofo Romano. Ela revela, segundo ele, duas facetas: a do paradigma da normalidade, em que é possível questionarmos o que deve ser considerado normal e se conhecemos toda normalidade da natureza; e a que lida com o ponto de vista da correção, na qual a intervenção técnica é a maneira para modificar o indivíduo. A ciência e o desenvolvimento tecnológico são participantes ativos dessa transformação (leia reportagem sobre o tema) seja ela física ou mesmo conceitual. As explicações biológicas das deformações do corpo ganham força no final do século XIX e início do XX, minimizando assim as explicações míticas e religiosas. Nesse momento, a normalidade passa a ser ligada a atributos de beleza, perfeição e produtividade.

No entanto, a monstruosidade não deixou, de maneira nenhuma, de preencher o imaginário dos próprios cientistas, como demonstrou Antília Januária Martins, assistente social do Centro de Genética Médica José Carlos Cabral de Almeida, e colegas em entrevistas com profissionais de saúde. O convívio desses profissionais com doenças genéticas associadas a malformações congênitas e retardo mental em crianças indica que sua formação os prepara para diagnosticar e curar ao invés de se melhorar a qualidade de vida dos pacientes, o que causa frustração e dificuldade em lidar com o não normal. “Os médicos tanto podem contribuir para consolidar os estigmas acerca de doenças que implicam em deficiências físicas e mentais, como também para resignificar tais estigmas, uma vez que partilham das mesmas regras e valores da sociedade a qual pertencem”, apontam os resultados das entrevistas. Martins enfatiza que esses profissionais precisam ter clareza de que a metáfora do monstro é muito antiga e está presente no imaginário social para que não a reforce em seu discurso médico, o que pode dificultar o vínculo das famílias e da sociedade em geral com os pacientes.

“O mais comum é que você se condoa com o sofrimento”, afirma Roberto Romano. Mas o olhar curioso acaba se satisfazendo diante do mal, como se a alegria fosse pelo reconhecimento de não pertencer ao sofrimento, à monstruosidade. Daí o fato do grotesco ser participante assíduo de programas como o Domingão do Faustão (Globo), Pânico na TV (Rede TV!), Programa do Ratinho (SBT) e Domingo legal (SBT). Entre as mais recentes denúncias está o caso do apresentador Carlos Roberto Massa (Ratinho) do SBT, que em setembro alegou ato de censura ao seu programa ao tentar reverter sentença da Justiça paulista que o proibiu de exibir cenas de deficiências físicas ou confrontos físicos. A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi, no entanto, mantida.

Para Robert Bogdan, professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade de Syracuse (EUA) e autor do livro Freak show: presenting human oddities for amusement and profit ( Freak show : apresentando as pecualiaridades humanas para diversão e lucro ), os tipos humanos peculiares não são participantes passivos na sociedade. “Eles se engajam ativamente em vários dos papéis disponíveis, incluindo os de espetáculos na TV. Nos talk shows e outros programas de TV a pessoa que é apresentada como estranha representa esse papel e em muitos casos tira proveio dele”. A exemplo do que ocorria em meados do século XIX, os espetáculos exageravam as anomalias existentes e inventavam outras, de forma a garantir uma grande atração e atrair pomposos lucros. Utilizando-se da mesma estratégia, o apresentador Gugu Liberato do SBT recorreu, em setembro de 2003, a uma entrevista fraudulenta com dois supostos membros do PCC (Primeiro Comando da Capital), uma organização criminosa do estado de São Paulo, em que ameaçavam de morte apresentadores de outras emissoras. Não se trata apenas de anomalias físicas, mas também de apresentar comportamentos considerados desvios da norma.

“O que não se pode negar, todavia, é que toda essa valoração de comportamentos de pessoas tem sua efetivação nas mais variadas práticas de violência muitas vezes aprovadas socialmente”, enfatiza Carlos Alberto Marques, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de For a (UFJF) e autor do artigo “Mídia e deficiência: a violência estampada nas páginas dos jornais” (publicado no número revista Lumina, 2002). As denúncias, a exemplo das efetuadas através da campanha contra a baixaria na TV, não bastam para que a sociedade amenize a violência comedida contra aqueles considerados desviantes, grifa Marques. Mas seriam “um modo comum de se entender e de se tratar a diferença humana”. Se há espetáculo no grande picadeiro televisivo é porque o público está aplaudindo.

Leia mais:

O circo na TV (Revista Veja)
http://veja.abril.com.br/idade/em_dia/tv_capa.html

Conteúdo e qualidade na televisão brasileira (Observatório da Imprensa 5/12/2006)
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=410TVQ003