10/09/2016
Gostaria que o senhor fizesse uma introdução sobre os sistemas de saúde,
o público e o de saúde suplementar, para que possamos ter um panorama sobre o
assunto.
Nós consolidamos um sistema segmentado
público e um sistema privado, constituído por dois subsistemas, o de saúde
suplementar o de desembolso direto, que convivem de forma predatória. Eles
competem entre si e as pessoas que utilizam o sistema da saúde suplementar
utilizam concomitantemente o sistema público. Então, esse sistema segmentado
tende, na experiência internacional, primeiro, a ser ineficiente pela
competição predatória entre os sistemas e, segundo, ele é muito iníquo. Quando
a gente diminui o gasto público, há uma associação inversa entre volume do
gasto público em saúde e equidade em saúde.
Por quê?
Porque quando o gasto com saúde é
muito baixo, como no Brasil, você aumenta muito o gasto público do (próprio)
bolso, que é muito iníquo. Quando comparamos, nas pesquisas de orçamento
familiar do Brasil, o gasto das famílias em saúde diretamente do (próprio)
bolso, a gente vê que os pobres gastam, em termos de percentual de sua renda
total, muito mais do que os mais ricos. Esse problema da segmentação
manifesta-se na organização macroeconômica do sistema e isso não é fácil de
resolver. Não é fácil porque nós já temos mais ou menos consolidado esse
sistema. Isso é uma fonte de ineficiência e de iniquidade muito fortes e há
alguns cenários que podem ser revistos.
Pode dar exemplos de cenários possíveis para resolver esse problema de
ineficiência e desigualdade?
São diferentes cenários possíveis
e com diferentes probabilidades. O cenário mais provável é o que eu chamo de cenário
Lampedusa. Eu quero dizer algo como “mudar para não mudar” (Giuseppe Tomasi di
Lampedusa é autor de O leopardo, em
que um personagem, o príncipe de Falconieri, diz que “tudo deve mudar para que
tudo fique como está”). A gente vai empurrar com a barriga, o cenário vai se
agravar e o sistema vai se tornar mais ineficiente e mais iníquo até o momento
em que o custo de mudar seja menor do que o custo de não mudar. Aparentemente,
por alguns anos, o custo de não mudar, especialmente na percepção do setor
privado, é menor do que o custo de mudar, já que o setor privado está
caminhando para uma crise tão grave ou até mais grave do que o SUS. Esse é o
primeiro cenário, e eu acho que vamos conviver com ele por mais uns cinco ou
dez anos.
Um outro cenário, também possível
mas de menor probabilidade, que chamo de Canadá Tropical, é fazer do SUS um
sistema verdadeiramente único de saúde. É esse cenário que pessoalmente defendo,
porque há evidências robustas na literatura internacional que demonstram que os
sistemas públicos universais são mais eficientes, mais efetivos e mais
equitativos que os sistemas segmentados. Significaria, na prática, fazer uma
carteira de serviços como o SUS tem hoje, mais clara, comunicada e discutida na
sociedade. A partir disso, o setor privado só entraria com o que não tivesse na
carteira de serviços oferecidos pelo SUS, ficando para a saúde pública toda a
carteira de serviços restantes. E qual o problema disso? Isso retiraria
recursos do setor privado na saúde suplementar e, também, de certa forma,
especialmente da indústria farmacêutica, porque o maior gasto diretamente do
bolso da população é com medicamentos. Não é um cenário de grande
probabilidade.
Há ainda um terceiro cenário que
vou chamar de cobertura universal de saúde. Esse modelo reconhece que existem
agentes públicos e agentes privados de saúde suplementar, e que ao invés de uma
competição predatória, como tem sido feito hoje, operariam segundo uma
competição gerenciada ou um pluralismo estruturado entre os setores – que
disputariam entre si a população. As famílias poderiam decidir se ficam no SUS
ou se optam por filiarem-se a organizações privadas. Para as pessoas que
optarem pelas organizações privadas e não tenham recursos para pagar, o Estado financiaria,
dando uma espécie de “bolsa saúde” para quem não quisesse ir ao setor público. Mas,
nesse sentido, você ajustaria a participação do setor público e do privado, que
competiriam entre si pela clientela. A pessoa pode querer continuar com o SUS
através da Secretaria Municipal, mas ela pode também não fazer isso e optar por
pagar para ir ao setor privado. Essa população que quiser pode, então, pagar
pelo serviço privado utilizando a hipotética “bolsa” de que falamos, mas parte
da população que não pode pagar poderia optar pelo serviço público.
O senhor aponta que, em maior ou menor grau, muitos países enfrentam
crise em seus sistemas de saúde por terem soluções atrasadas em relação às
necessidades atuais. Há uma incongruência entre a situação de saúde do século
XXI (que enfrenta problemas crônicos) convivendo com um sistema de atenção à
saúde do século XX (desenhado para tratar problemas agudos). Não acompanhamos
essa “quebra de paradigmas” das doenças?
Não há nenhum país no mundo livre
desse problema. É preciso entender que o sistema fragmentado deu conta das
doenças infecciosas, mas como a transição dos problemas de saúde foi muito
rápida, somada a uma série de interesses e a uma cultura de não se alterar a
forma com que os procedimentos são feitos, o sistema fragmentado é um desastre
para as doenças crônicas. Nós operamos um sistema desenhado no final do século
passado, que dava conta de enfrentar as doenças infecciosas, porque essas
doenças têm cura e podem ser combatidas de forma reativa e episódica. Digamos
que a pessoa tenha uma amigdalite ou uma gripe. Ela vai a uma unidade de saúde,
toma um remédio e em sete dias está bem. Mas com a diabetes e com todas as
doenças crônicas, não funciona assim. A doença vai evoluindo. Por isso, o
sistema para tratar essas doenças não pode ser reativo, ele tem que ser
proativo. O sistema não pode ser episódico, tem que ser contínuo. E não pode
ser fragmentado, tem de ser integrado em redes de atenção à saúde. A realidade
é que o Brasil enfrenta a tripla carga de doenças. O grupo 1 é de doenças
infecciosas e causas maternas e perinatais, o que chamamos de “a velha agenda
da saúde pública” e que responde por cerca de 13% dos problemas. O grupo 2 é o
de doenças crônicas que já responde por quase 78% dos problemas. O grupo 3 diz
respeito às causas externas, frutos especialmente de violências, com 9%.
O senhor comenta que o SUS foi concebido como um sistema público
destinado a oferecer uma generosa gama de serviços básicos, ao mesmo tempo que
possibilita que os usuários adquiram, no setor privado, serviços suplementares.
De certa forma, isso causa problemas de ordem macroeconômica difíceis de serem
remediados. E na escala microeconômica?
No âmbito microeconômico o dilema
está entre sistemas fragmentados e sistemas integrados em redes de atenção à
saúde. Os sistemas fragmentados, por falta de coordenação, são muito
ineficientes e não são efetivos, além de não estarem preparados para enfrentar,
com sucesso, as doenças crônicas. As mudanças no âmbito microeconômico devem se
dar, concomitantemente e de forma alinhada, nos três componentes dos sistemas
de saúde: modelo político (de gestão), modelo técnico (de atenção à saúde) e
modelo econômico (de financiamento). Temos que fazer mudanças nesses três
componentes. Mudar apenas o financiamento, aumentando o recurso, não vai
resolver o problema.
O problema não é apenas dinheiro?
Não é. É preciso mudar não só o
modelo de financiamento, mas, concomitantemente, o modelo de atenção e o modelo
de gestão. É preciso alinhar os três componentes. Não adianta dizer que o
modelo de atenção do SUS é baseado em promoção e prevenção da saúde e pagar por
procedimentos. Quando se paga por procedimento, eu indico ao prestador que faça
mais serviços, não os mais necessários. E com isso ele ganha mais.
Do ponto de vista do modelo político (ou modelo de gestão), quais são
as mudanças necessárias?
Nesse modelo, nós temos que fazer
mudanças em diversos focos. Um dos problemas que o sistema de saúde tem no
Brasil e em muitos outros países, além de ser segmentado em privado e público,
é que ele é um sistema fragmentado. Isso quer dizer que o modelo de gestão se
baseia num modelo que opera em departamentos que não se comunicam. Existe um
grupo que mexe no hospital, outro grupo que lida com o sistema de atenção especializada,
um outro que atua com a atenção primária à saúde, mais um que trabalha com
laboratórios de patologia clínica, outro com imagens e assim por diante. E
essas pessoas não conversam, não há comunicação. Falta um ente de coordenação
entre esses diversos pontos de atenção à saúde. Outro problema que temos é o
modelo de gestão da oferta que tem foco no prestador de serviço, enquanto
precisamos adotar uma gestão da saúde da população que tenha foco na população
vinculada à atenção primária. Um bom sistema de saúde tem que fortalecer a sua
atenção primária para que ela cadastre toda a população da sua área em
famílias, vincule e estratifique essas famílias por nível sociossanitário e por
riscos biológicos, e planeje todos os fluxos das pessoas ao longo da rede. Isso
fará com que ninguém chegue a um hospital ou a um centro de especialidade sem
antes passar por uma atenção primária, a não ser num evento agudo em que a
pessoa deverá procurar o hospital diretamente. Além disso, a gestão da oferta
trabalha com indivíduos isolados indicadores baseados em padrões de oferta,
enquanto a gestão da saúde da população opera com populações estratificadas por
riscos e com indicadores de necessidades da população.
O que difere a gestão em rede do modelo de gestão tradicional?
A gestão em rede é diferente da
gestão hierárquica, que é a tradicional, aquela em que “um manda e o outro
obedece”. Na gestão em rede, o objetivo é aumentar a cooperação e a
interdependência. O resultado só vai existir em saúde de condições crônicas se
a atenção primária se comunicar com a atenção secundária, que por sua vez se
comunica com a atenção do hospital e assim por diante, como falamos
anteriormente. Além do mais, as decisões devem ser tomadas, sempre que possível,
por consenso. Ou seja, entendendo que nenhum setor é mais importante do que o
outro. Assim é possível gerar um aumento no excedente cooperativo que, segundo
a teoria dos jogos, levaria a melhores resultados sanitários. Outro componente
na gestão de rede é o modelo de financiamento. Quando nós temos rede, não
devemos pagar por procedimentos, mas o SUS paga por procedimentos. Porque
quando pagamos por procedimentos, estamos incentivando os prestadores de
serviços a fazer mais serviços de maior densidade tecnológica para maximizar
sua renda, mas a não fazer os serviços mais necessários às necessidades da
população. Há uma tendência universal de sair do modelo chamado fee for service para o modelo fee for value, ou seja, para modelos de
pagamento que estimulem o trabalho em rede e que são pagamentos que geram valor
para as pessoas. Por exemplo: pagamento por orçamento global, ou pelo ciclo
completo de uma doença, ou pagamento por captação, por pessoa. Esse é o
movimento.
O modelo de rede está funcionando?
Nós tivemos, em 2010, uma
portaria muito boa que define operacionalmente o que é rede. Nós tivemos
depois, em junho de 2011, o Decreto nº 7.508 que também diz que o SUS
vai se organizar em rede. Ou seja, do ponto de vista normativo, nós estamos
bem. Mas o Ministério da Saúde propôs algumas redes prioritárias – a Rede de
Urgência e Emergência, a Rede Cegonha, de Crônicos, de Pessoas com Deficiência
– e começou a implantar isso nos estados. Eu acho que foi uma experiência que
deve ser continuada, mas eu diria que nos falta uma boa avaliação de como isso,
na prática, está operando. Eu viajo muito pelo Brasil e noto muita diferença.
Se você for ao Paraná, vai ver uma rede dessas funcionando muito bem, como a
Rede Mãe Paranaense, mas se você for a outros estados e conhecer, por exemplo,
a Rede Cegonha, verá que ela tem muitas deficiências. O movimento de
implantação das redes deve ter continuidade. Mas precisa ser feita uma
avaliação para reforçar os aspectos positivos e superar as deficiências em sua
operacionalização. Precisa de uma avaliação ampla e o quanto antes isso for
feito, melhor.
Dentro do modelo de rede de atenção à saúde (RAS), um aspecto chama
bastante atenção, que é a humanização. Também vemos diversos relatos na
imprensa de pessoas que sofrem humilhações por profissionais da saúde. Nosso
sistema carece de humanização?
Carece, sim. Um sistema de saúde tem vários
objetivos. Eu mencionei que ele tem o objetivo da efetividade, ou seja, só devo
oferecer à população tecnologias que realmente funcionem; ele tem que ser eficiente,
com custos menores e tem que ter qualidade. E, na dimensão da qualidade, nós
temos diversos aspectos, dentre eles a humanização que se expressa, na
literatura internacional, também com o nome “atenção centrada na pessoa”. E eu
acho que esse termo é melhor para expressar o que queremos dizer, porque o
sistema terá uma relação muito humanizada com cada indivíduo, e também vai
respeitar os valores e as preferências das pessoas. É feito um diagnóstico,
indica-se uma terapêutica, mas que às vezes entra em conflito com os valores
das pessoas, que muitas vezes não está de acordo com as preferências das
pessoas. Eu acho que essa é uma dimensão difusa, porque isso faz parte
intrínseca da relação entre os profissionais de saúde e os usuários.
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