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Entrevistas
Eugênio Vilaça Mendes

Sistema Único de Saúde (SUS) surgiu em 1988 com o ousado intuito de ser um serviço gratuito e oferecer a todos, sem qualquer distinção, desde atendimentos ambulatoriais simples até procedimentos complexos como cirurgias e transplantes. Nesta entrevista, Eugênio Vilaça Mendes faz um panorama sobre o SUS, suas conquistas, desafios, problemas e soluções possíveis. Mendes é consultor do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, prestou serviços de consultoria a diversas agências e instituições internacionais e nacionais. Foi também professor de saúde pública na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e nas Escolas de Saúde Pública do Ceará e de Minas Gerais. Foi secretário adjunto da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais e consultor na área de desenvolvimento de sistemas e serviços de saúde da Organização Pan-Americana da Saúde. Mendes realizou trabalhos de consultoria em saúde em 20 países, em 24 estados, em mais de 250 municípios brasileiros e em agências internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco Mundial e as Cooperações Britânica, Canadense e Italiana.

Erik Nardini Medina
10/09/2016

Gostaria que o senhor fizesse uma introdução sobre os sistemas de saúde, o público e o de saúde suplementar, para que possamos ter um panorama sobre o assunto.

Nós consolidamos um sistema segmentado público e um sistema privado, constituído por dois subsistemas, o de saúde suplementar o de desembolso direto, que convivem de forma predatória. Eles competem entre si e as pessoas que utilizam o sistema da saúde suplementar utilizam concomitantemente o sistema público. Então, esse sistema segmentado tende, na experiência internacional, primeiro, a ser ineficiente pela competição predatória entre os sistemas e, segundo, ele é muito iníquo. Quando a gente diminui o gasto público, há uma associação inversa entre volume do gasto público em saúde e equidade em saúde.

Por quê?

Porque quando o gasto com saúde é muito baixo, como no Brasil, você aumenta muito o gasto público do (próprio) bolso, que é muito iníquo. Quando comparamos, nas pesquisas de orçamento familiar do Brasil, o gasto das famílias em saúde diretamente do (próprio) bolso, a gente vê que os pobres gastam, em termos de percentual de sua renda total, muito mais do que os mais ricos. Esse problema da segmentação manifesta-se na organização macroeconômica do sistema e isso não é fácil de resolver. Não é fácil porque nós já temos mais ou menos consolidado esse sistema. Isso é uma fonte de ineficiência e de iniquidade muito fortes e há alguns cenários que podem ser revistos.

Pode dar exemplos de cenários possíveis para resolver esse problema de ineficiência e desigualdade?

São diferentes cenários possíveis e com diferentes probabilidades. O cenário mais provável é o que eu chamo de cenário Lampedusa. Eu quero dizer algo como “mudar para não mudar” (Giuseppe Tomasi di Lampedusa é autor de O leopardo, em que um personagem, o príncipe de Falconieri, diz que “tudo deve mudar para que tudo fique como está”). A gente vai empurrar com a barriga, o cenário vai se agravar e o sistema vai se tornar mais ineficiente e mais iníquo até o momento em que o custo de mudar seja menor do que o custo de não mudar. Aparentemente, por alguns anos, o custo de não mudar, especialmente na percepção do setor privado, é menor do que o custo de mudar, já que o setor privado está caminhando para uma crise tão grave ou até mais grave do que o SUS. Esse é o primeiro cenário, e eu acho que vamos conviver com ele por mais uns cinco ou dez anos.

Um outro cenário, também possível mas de menor probabilidade, que chamo de Canadá Tropical, é fazer do SUS um sistema verdadeiramente único de saúde. É esse cenário que pessoalmente defendo, porque há evidências robustas na literatura internacional que demonstram que os sistemas públicos universais são mais eficientes, mais efetivos e mais equitativos que os sistemas segmentados. Significaria, na prática, fazer uma carteira de serviços como o SUS tem hoje, mais clara, comunicada e discutida na sociedade. A partir disso, o setor privado só entraria com o que não tivesse na carteira de serviços oferecidos pelo SUS, ficando para a saúde pública toda a carteira de serviços restantes. E qual o problema disso? Isso retiraria recursos do setor privado na saúde suplementar e, também, de certa forma, especialmente da indústria farmacêutica, porque o maior gasto diretamente do bolso da população é com medicamentos. Não é um cenário de grande probabilidade.

Há ainda um terceiro cenário que vou chamar de cobertura universal de saúde. Esse modelo reconhece que existem agentes públicos e agentes privados de saúde suplementar, e que ao invés de uma competição predatória, como tem sido feito hoje, operariam segundo uma competição gerenciada ou um pluralismo estruturado entre os setores – que disputariam entre si a população. As famílias poderiam decidir se ficam no SUS ou se optam por filiarem-se a organizações privadas. Para as pessoas que optarem pelas organizações privadas e não tenham recursos para pagar, o Estado financiaria, dando uma espécie de “bolsa saúde” para quem não quisesse ir ao setor público. Mas, nesse sentido, você ajustaria a participação do setor público e do privado, que competiriam entre si pela clientela. A pessoa pode querer continuar com o SUS através da Secretaria Municipal, mas ela pode também não fazer isso e optar por pagar para ir ao setor privado. Essa população que quiser pode, então, pagar pelo serviço privado utilizando a hipotética “bolsa” de que falamos, mas parte da população que não pode pagar poderia optar pelo serviço público.

O senhor aponta que, em maior ou menor grau, muitos países enfrentam crise em seus sistemas de saúde por terem soluções atrasadas em relação às necessidades atuais. Há uma incongruência entre a situação de saúde do século XXI (que enfrenta problemas crônicos) convivendo com um sistema de atenção à saúde do século XX (desenhado para tratar problemas agudos). Não acompanhamos essa “quebra de paradigmas” das doenças?

Não há nenhum país no mundo livre desse problema. É preciso entender que o sistema fragmentado deu conta das doenças infecciosas, mas como a transição dos problemas de saúde foi muito rápida, somada a uma série de interesses e a uma cultura de não se alterar a forma com que os procedimentos são feitos, o sistema fragmentado é um desastre para as doenças crônicas. Nós operamos um sistema desenhado no final do século passado, que dava conta de enfrentar as doenças infecciosas, porque essas doenças têm cura e podem ser combatidas de forma reativa e episódica. Digamos que a pessoa tenha uma amigdalite ou uma gripe. Ela vai a uma unidade de saúde, toma um remédio e em sete dias está bem. Mas com a diabetes e com todas as doenças crônicas, não funciona assim. A doença vai evoluindo. Por isso, o sistema para tratar essas doenças não pode ser reativo, ele tem que ser proativo. O sistema não pode ser episódico, tem que ser contínuo. E não pode ser fragmentado, tem de ser integrado em redes de atenção à saúde. A realidade é que o Brasil enfrenta a tripla carga de doenças. O grupo 1 é de doenças infecciosas e causas maternas e perinatais, o que chamamos de “a velha agenda da saúde pública” e que responde por cerca de 13% dos problemas. O grupo 2 é o de doenças crônicas que já responde por quase 78% dos problemas. O grupo 3 diz respeito às causas externas, frutos especialmente de violências, com 9%.

O senhor comenta que o SUS foi concebido como um sistema público destinado a oferecer uma generosa gama de serviços básicos, ao mesmo tempo que possibilita que os usuários adquiram, no setor privado, serviços suplementares. De certa forma, isso causa problemas de ordem macroeconômica difíceis de serem remediados. E na escala microeconômica?

No âmbito microeconômico o dilema está entre sistemas fragmentados e sistemas integrados em redes de atenção à saúde. Os sistemas fragmentados, por falta de coordenação, são muito ineficientes e não são efetivos, além de não estarem preparados para enfrentar, com sucesso, as doenças crônicas. As mudanças no âmbito microeconômico devem se dar, concomitantemente e de forma alinhada, nos três componentes dos sistemas de saúde: modelo político (de gestão), modelo técnico (de atenção à saúde) e modelo econômico (de financiamento). Temos que fazer mudanças nesses três componentes. Mudar apenas o financiamento, aumentando o recurso, não vai resolver o problema.

O problema não é apenas dinheiro?

Não é. É preciso mudar não só o modelo de financiamento, mas, concomitantemente, o modelo de atenção e o modelo de gestão. É preciso alinhar os três componentes. Não adianta dizer que o modelo de atenção do SUS é baseado em promoção e prevenção da saúde e pagar por procedimentos. Quando se paga por procedimento, eu indico ao prestador que faça mais serviços, não os mais necessários. E com isso ele ganha mais.

Do ponto de vista do modelo político (ou modelo de gestão), quais são as mudanças necessárias?

Nesse modelo, nós temos que fazer mudanças em diversos focos. Um dos problemas que o sistema de saúde tem no Brasil e em muitos outros países, além de ser segmentado em privado e público, é que ele é um sistema fragmentado. Isso quer dizer que o modelo de gestão se baseia num modelo que opera em departamentos que não se comunicam. Existe um grupo que mexe no hospital, outro grupo que lida com o sistema de atenção especializada, um outro que atua com a atenção primária à saúde, mais um que trabalha com laboratórios de patologia clínica, outro com imagens e assim por diante. E essas pessoas não conversam, não há comunicação. Falta um ente de coordenação entre esses diversos pontos de atenção à saúde. Outro problema que temos é o modelo de gestão da oferta que tem foco no prestador de serviço, enquanto precisamos adotar uma gestão da saúde da população que tenha foco na população vinculada à atenção primária. Um bom sistema de saúde tem que fortalecer a sua atenção primária para que ela cadastre toda a população da sua área em famílias, vincule e estratifique essas famílias por nível sociossanitário e por riscos biológicos, e planeje todos os fluxos das pessoas ao longo da rede. Isso fará com que ninguém chegue a um hospital ou a um centro de especialidade sem antes passar por uma atenção primária, a não ser num evento agudo em que a pessoa deverá procurar o hospital diretamente. Além disso, a gestão da oferta trabalha com indivíduos isolados indicadores baseados em padrões de oferta, enquanto a gestão da saúde da população opera com populações estratificadas por riscos e com indicadores de necessidades da população.

O que difere a gestão em rede do modelo de gestão tradicional?

A gestão em rede é diferente da gestão hierárquica, que é a tradicional, aquela em que “um manda e o outro obedece”. Na gestão em rede, o objetivo é aumentar a cooperação e a interdependência. O resultado só vai existir em saúde de condições crônicas se a atenção primária se comunicar com a atenção secundária, que por sua vez se comunica com a atenção do hospital e assim por diante, como falamos anteriormente. Além do mais, as decisões devem ser tomadas, sempre que possível, por consenso. Ou seja, entendendo que nenhum setor é mais importante do que o outro. Assim é possível gerar um aumento no excedente cooperativo que, segundo a teoria dos jogos, levaria a melhores resultados sanitários. Outro componente na gestão de rede é o modelo de financiamento. Quando nós temos rede, não devemos pagar por procedimentos, mas o SUS paga por procedimentos. Porque quando pagamos por procedimentos, estamos incentivando os prestadores de serviços a fazer mais serviços de maior densidade tecnológica para maximizar sua renda, mas a não fazer os serviços mais necessários às necessidades da população. Há uma tendência universal de sair do modelo chamado fee for service para o modelo fee for value, ou seja, para modelos de pagamento que estimulem o trabalho em rede e que são pagamentos que geram valor para as pessoas. Por exemplo: pagamento por orçamento global, ou pelo ciclo completo de uma doença, ou pagamento por captação, por pessoa. Esse é o movimento.

O modelo de rede está funcionando?

Nós tivemos, em 2010, uma portaria muito boa que define operacionalmente o que é rede. Nós tivemos depois, em junho de 2011, o Decreto nº 7.508 que também diz que o SUS vai se organizar em rede. Ou seja, do ponto de vista normativo, nós estamos bem. Mas o Ministério da Saúde propôs algumas redes prioritárias – a Rede de Urgência e Emergência, a Rede Cegonha, de Crônicos, de Pessoas com Deficiência – e começou a implantar isso nos estados. Eu acho que foi uma experiência que deve ser continuada, mas eu diria que nos falta uma boa avaliação de como isso, na prática, está operando. Eu viajo muito pelo Brasil e noto muita diferença. Se você for ao Paraná, vai ver uma rede dessas funcionando muito bem, como a Rede Mãe Paranaense, mas se você for a outros estados e conhecer, por exemplo, a Rede Cegonha, verá que ela tem muitas deficiências. O movimento de implantação das redes deve ter continuidade. Mas precisa ser feita uma avaliação para reforçar os aspectos positivos e superar as deficiências em sua operacionalização. Precisa de uma avaliação ampla e o quanto antes isso for feito, melhor.

Dentro do modelo de rede de atenção à saúde (RAS), um aspecto chama bastante atenção, que é a humanização. Também vemos diversos relatos na imprensa de pessoas que sofrem humilhações por profissionais da saúde. Nosso sistema carece de humanização?

Carece, sim. Um sistema de saúde tem vários objetivos. Eu mencionei que ele tem o objetivo da efetividade, ou seja, só devo oferecer à população tecnologias que realmente funcionem; ele tem que ser eficiente, com custos menores e tem que ter qualidade. E, na dimensão da qualidade, nós temos diversos aspectos, dentre eles a humanização que se expressa, na literatura internacional, também com o nome “atenção centrada na pessoa”. E eu acho que esse termo é melhor para expressar o que queremos dizer, porque o sistema terá uma relação muito humanizada com cada indivíduo, e também vai respeitar os valores e as preferências das pessoas. É feito um diagnóstico, indica-se uma terapêutica, mas que às vezes entra em conflito com os valores das pessoas, que muitas vezes não está de acordo com as preferências das pessoas. Eu acho que essa é uma dimensão difusa, porque isso faz parte intrínseca da relação entre os profissionais de saúde e os usuários.