Geografia do país da infância
A infância é um país que não existe, de
onde fomos exilados e para onde todos queremos voltar.
É mais ou menos isso o que escreve Cesare Pavese (1908-1950)
sobre essa utopia regressiva, como são todas as utopias,
situada entre a realidade cronológica de nossa existência
e a fantasia cíclica de nosso imaginário e de nossas
recordações.
Nesse sentido, penso que os países, e, mais que os países,
as nações, que são feitas das pessoas, da
educação e da cultura que nelas e com elas vivem e
convivem, de sua humanidade e de seu humanitarismo, enfim, penso,
pois, que esses territórios de vida material e espiritual têm
também infância e desejos de retorno.
Na infância do Brasil há um traço persistente de
nossa identidade cultural e um chamamento constante ao seu uso e
menção para a individuação do caráter
nacional.
Trata-se do famoso jeitinho brasileiro já tão escondido
e tão cantado em prosa e verso e hoje, ao menos em parte das
elites tecno-progressistas que por aqui gorgeiam como lá, um
tanto malvisto e excerado em textos assépticos de puro
“globalês”, ainda que escritos em português e, no
mais das vezes, em porto-inglês.
Esse traço liga-se a um outro, também de forte presença
na expressão da matriz genética de nosso modo de ser: a
cordialidade. Apontada por Sérgio Buarque de Holanda no seu
papel distintivo do ser brasileiro, a cordialidade passou também,
com os anos, por um processo de desconstrução
qualificada, ou de desqualificação construtiva de tal
maneira que hoje, mesmo entre intelectuais e estudiosos da
brasilidade, o homem cordial anda desprestigiado e sem jeito.
A esses dois traços soma-se um terceiro – o da malandragem – e com os três
pode-se dizer que se obtém uma célula do embrião
da infância de nossa identidade, às vezes confundida com
a identificação de nossa infantilidade.
O jeitinho está ligado à nossa proverbial criatividade
e à busca de soluções rápidas de
problemas de várias ordens. Contrapõe a eficácia
do atalho e do desvio à morosidade do estabelecido e do
burocrático. É no limite, um expediente ingênuo
para resolver uma complicação problemática. Ao
menos na infância da persona social que ele ajuda a configurar.
Durante muito tempo, esse traço teve, pois, um sinal positivo
de distinção. Correspondia, àquele outro
predicado de nossa identidade, já referido acima, o da
malandragem.
Assim como a malandragem, até certo ponto romântica e
estruturada na tensão da dialética da ordem e da
desordem, como mostra Antonio Cândido na análise seminal
de Memórias de um sargento de milícias, de
Manoel Antonio de Almeida, evoluiu para o banditismo na nova ordem
global, o jeitinho, também por injunções
econômico-político-sociais, evoluem para o “por fora”,
para a corrupção.
Ambos os traços perderam a aura. Mantiveram ou mesmo
aumentaram sua eficácia mas já sem o apelo ético
da convivenciabilidade social dos atores nos jogos de antagonismos
que eles põem em funcionamento.
Desfez-se também a regra constitutiva desses jogos de
convivência: a cordialidade que remetia à caracterização
de comportamentos emocionais, impulsivos, para o bem e para o mal,
passou a ser entendida como marca de pieguismo e característica,
agora, de comportamentos só emocionados.
Desse modo, a paixão, presente na cordialidade ancestral, ou
na infância de nossa ancestralidade cultural, cede lugar ao
sentimentalismo vulgar da bondade boba e retórica, cuja
facilidade expõe o seu formalismo e a frieza das relações
que estabelece. Penso também que o ideário da
auto-ajuda tem a ver com essa transformação da paixão
da cordialidade na cordialidade desapaixonada e complacente da
esperteza como expediente de exacerbação da
competitividade individualista em suas características mais
locais, dentro do processo de globalização.
Como nesse sentido metafórico a infância é
utópica, acredito também que é preciso recuperar
o ponto de ruptura desses valores e redirecionar esses predicados
para a sua positividade, importância e distinção
na identidade e na cultura brasileiras: visitar a infância da
terra não como turista da simples curiosidade, mas como
viajante de si mesmo no estranhamento constante da descoberta do
outro.
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