Não é de hoje que as forças armadas brasileiras atuam além de suas obrigações estritamente constitucionais de defesa em face à agressão externa, de manutenção da ordem e da integridade territorial e de preservação do patrimônio nacional. No Brasil, e em todo o mundo, as forças armadas internacionais também são responsáveis por grande parte da ajuda humanitária que populações ameaçadas pela fome ou pelas guerras civis recebem. Um exemplo disso, dentro do território nacional, é o acordo de cooperação técnica que foi firmado no dia 14 de março entre os ministérios da Defesa e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no qual as forças armadas brasileiras se propõem a ajudar a identificar em regiões de difícil acesso, como algumas da Amazônia, famílias que estejam à parte das ações sociais oferecidas pelo governo federal, como o Bolsa Família.
As distribuições de mantimentos, bem como a identificação de possíveis famílias em dificuldades são, certamente, as ações menos controversas dentro da reorientação estratégica que as forças armadas assumiram. Esta aconteceu a partir do fim da bipolaridade política mundial e do advento de uma nova conjuntura, marcada por conflitos urbanos e pelo fantasma do terrorismo em muitas partes do mundo. Já entre as ações mais controversas estão as intervenções em território urbano junto à população civil, como as recentes ocupações militares nas favelas dos morros no Rio de Janeiro.
A esse cenário, soma-se a maior visibilidade que o exército brasileiro atingiu ao assumir o comando da Missão de Paz da ONU no Haiti. Mas não é a primeira vez que tropas brasileiras compõem missões de paz, já que desde 1948 essas ações são efetivas. Durante os governos FHC foram enviados brasileiros para os Corpos de Paz nos Balcãs (Croácia, Macedônia, Eslovênia Oriental, Península de Prevlaka), na América Central (Guatemala), na África (Angola) e na Ásia (Timor Leste). Mas, ao assumir uma posição de comando, a população passou a se perguntar que peso teve a ação para uma efetiva paz no Haiti e se as forças armadas brasileiras estavam realmente preparadas para atuar nesse conflito.
Segundo João Roberto Martins Filho, pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e coordenador do grupo de estudo “Forças Armadas e Política”, desde 1998 as forças armadas consideravam essa possibilidade de intervenção no Haiti e, por isso, estavam preparadas para a missão. “Independente dos interesses de política externa brasileira, a participação nesses tipos de missões tem como objetivo reforçar o prestígio das forças armadas brasileiras no cenário internacional, apresentando-as como forças capazes de desempenhar missões complexas com profissionalismo”, pontuou.
Entretanto, embora o nível de preparação seja, sem dúvida, uma das variáveis de maior importância para julgar a capacidade de enfrentamento em uma dada situação de conflito, no que se refere ao Haiti, a idéia que ficou, tanto na imprensa como na tomada de decisão pelo Congresso, é que o interesse político brasileiro em conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU teve muito mais peso do que a determinação do presidente Lula em atender a solicitação do secretário-geral da ONU para a missão de paz.
O cientista político, Durbens Nascimento, coordenador do projeto Consórcio Forças Armadas Século XXI, na Universidade Federal do Pará (UFPA), diz que é preciso relativizar essa motivação. Segundo ele, a política de cooperação está presente na tradição brasileira, estando também expressa na Nova Política de Defesa Nacional. “As forças armadas estão capacitadas para comandar a força internacional de paz e, pelas informações disponíveis, ainda que se possa duvidar de um ou outro dado, elas estão tendo êxito”, opina.
Mas essa visão não é compartilhada por todos os pesquisadores. Domício Proença Júnior, do Grupo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que é cedo para se avaliar se a operação foi bem sucedida. “Não há estudos que avaliem se houve problemas ou não em determinadas ações ou se a missão foi um sucesso ou um fracasso”, coloca. Já Martins Filho, da UFSCar, considera que o problema é que, no caso específico do Haiti, houve pouco debate no Brasil. “O Congresso participa pouco das questões de defesa. Os riscos da missão não foram bem considerados”, pondera. Há, porém, um consenso de que não basta enviar uma missão de paz: sem a implantação de programas efetivos de reconstrução econômica e social o Haiti continuará sendo um país devastado economicamente, refém de milícias que não separam ações políticas de crimes comuns.
Outra hipótese levantada na mídia é a de que as ações no Haiti também teriam tido o efeito de um treinamento para os militares intervirem nas regiões brasileiras de conflito urbano. No episódio ocorrido no Rio de Janeiro em março, 1600 soldados - efetivo maior do que o deslocado para o Haiti - foram mobilizados em nove favelas com o intuito de recuperar armas roubadas de dentro de uma unidade militar. Dentre esses soldados, 150 homens integravam até dezembro a tropa brasileira em missão no país caribenho. O argumento geral, mesmo entre os militares, era que a participação no conflito deu a esses homens mais preparo para a intervenção nas favelas.
Francisco Ferraz, do grupo de Estudos Políticos e Militares Contemporâneos da Universidade Estadual de Londrina (UEL), discorda desse argumento e explica que as ações no Haiti são de natureza diferente das intervenções nas favelas cariocas. “As ações das forças federais regulares em áreas urbanas brasileiras dependem de complexas relações com os governos estaduais e suas forças policiais”, avalia. Segundo ele, a chamada Operação Asfixia, no Rio, teve outros procedimentos operacionais e configurações logísticas e de informações diferentes daquelas características de uma operação de um Corpo de Paz.
É grande o coro de críticos contra esse tipo de ação, pelo fato do exército se dispor a desempenhar a função de policiamento ostensivo, dentro da perspectiva de segurança pública, sem dispor, na visão de especialistas, de capacitação específica, seja em termos de procedimentos e armamentos, seja em termos de diplomas legais que normatizem a sua ação como polícia. “As forças armadas preparam-se para cenários externos de guerra, o que é diferente de uma ação urbana”, coloca Proença Júnior. O desconforto com a utilização do exército nesse papel, exemplificado pelas queixas de moradoras das comunidades ocupadas quanto aos seus filhos terem suas mochilas revistadas no caminho da escola, já levou ex-ministros do antigo estado maior das forças armadas a considerarem esse tipo de ação inapropriado.
Enquanto a marinha já explicitou claramente seu desinteresse por esse tipo de missão, para o exército a questão é mais complexa e parece haver uma certa tendência a ver com bons olhos ações voltadas para a segurança interna. É o caso da atuação no norte do país, em especial na Amazônia, onde o exército também age diretamente nas ações contra o narcotráfico, contrabando, extração ilegal de madeira e desmatamento, mesmo que estes não ocorram exclusivamente na fronteira. Enquanto diversas autoridades saem em defesa do movimento dos militares no âmbito estritamente externo, alguns começam a levantar a bandeira da intervenção.
“Minha opinião é a de que, dada a precariedade das instituições brasileiras, os problemas relativos à intensidade e volume de mercadorias e produtos naquela região e, sobretudo, a pouca transparência das atividades dos órgãos responsáveis pelo cumprimento de suas funções, torna-se inadiável a intervenção das forças armadas diretamente na prevenção e repressão a esses ilícitos”, coloca Durbens Nascimento, da UFPA. O pesquisador desenvolve estudos sobre a presença militar na região amazônica, e diz que eles indicam que os militares, através de projetos amplos e de duração permanente, a exemplo do Calha Norte, têm contribuído e continuam cooperando com o desenvolvimento regional e local na Amazônia.
O Calha Norte é um projeto formado por 14 bases avançadas do exército, e abrange 70 municípios brasileiros, a maioria ao longo dos 5.993 km da faixa de fronteira, nos estados do Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. A área de atuação é praticamente inexplorada, pouco demarcada, fracamente povoada e quase não tem vigilância terrestre. A maioria dos soldados dos comandos e dos pelotões são índios pertencentes às etnias locais, acostumados às dificuldades da floresta. Além do armamento militar, eles usam seus armamentos tradicionais e mais leves, como o arco e a flecha e a zarabatana, cujo dardo pode atingir um alvo a 200 metros.
“As ações realizadas, os projetos implantados, denotam uma preocupação da instituição militar, numa concepção ampla de defesa, com a manutenção da soberania brasileira sobre a região, bem como com os resultados no aspecto do desenvolvimento social com a criação de infra-estrutura básica em vários dos municípios situados, tanto na faixa de fronteira quanto fora dela”, aponta Durbens Nascimento. Muitos observam, entretanto, uma falha do poder civil na orientação de possíveis funções delegadas às forças armadas. “Caberia ao comando civil da nação deixar claro para as forças armadas o que o país quer delas. Se isso não ocorre, mesmo com a criação do ministério da Defesa, elas atuarão com autonomia. Infelizmente, não há uma política militar clara no país”, conclui Martins Filho.
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