No início dos anos 90, frequentei com certa regularidade a Casa do Sol, onde morava Hilda Hilst, usualmente acompanhada de amigos, além das dezenas de vira-latas, que latiam, saltavam e quase sempre sujavam o visitante em sinal de boas vindas, desde a descida do carro até a soleira da casa. Dali para dentro, só os cães mais íntimos ocupavam seus lugares sobre as mesas, as cadeiras e até, modestamente, o chão da sala.
Embora a casa se localizasse numa área semi-rural de Campinas, a cada vez que aparecia por lá, sabia que Hilda me receberia sorridente e divertida, com sua bela voz escandindo perguntas mais ou menos constrangedoras em forma de saudação. Estava sempre vestida com batas longas, soltas e coloridas, que a mim sugeriam inevitavelmente imagens hippies e anacrônicas, mas sem deliquescência ou nostalgia, pois era igualmente incontornável a tremenda usina de força e inteligência que irradiava dela.
Se a casa ficava num ermo, o movimento dentro dela e nos arredores, da maneira como Hilda a vivia e narrava, era de deixar qualquer metrópole arrasada. Havia sempre outros visitantes, muito mais interessantes do que eu, que passavam por ali para lhe anunciar algum evento extraordinário: discos silenciosos e ziguezagueantes a deixar signos no ar; a doce figura da mãe, falecida há anos, envolta num xale, que apenas se descobria para lhe desejar boa-noite ou lhe prognosticar um evento qualquer, logo depois verificado; uma visita do pai adorado, também morto, a lhe relembrar uma antiga proposta; vozes embaralhadas e sopradas entre as árvores; vultos a assomar no portão, uns ternos, outros terríveis... Houve vez que até Camões resolveu alojar-se no claro-escuro do bolor surgido da noite para o dia na parede do banheiro.
O lugar era, portanto, animadíssimo. E mesmo para mim, que costumava ouvir tudo com gosto, mas ceticamente, era evidente que aquelas narrativas tinham imenso interesse e verdade. Eu percebia perfeitamente que a ficção de Hilda ia muito além da que chegava a por no papel. A Casa do Sol, seus habitantes, os eventos extraordinários, tudo era parte de sua gigantesca e totalizante criação, cujo suporte extrapolava a escrita e os livros. O seu corpo, a casa e o que mais, vivo ou morto, rondasse ao redor, era tudo parte de sua invenção. Confesso que eu mesmo sentia medo de ser teletransportado para lá.
Dos tantos relatos incríveis que ouvi de Hilda, repasso um, na qual tive um pequeno papel --, temo que nos dois sentidos do termo “pequeno”. Certo dia, ela me disse que, numa faixa de um disco de John Lennon que ela ouvira casualmente numa rádio local, havia, ao fim da música, sob a camada de sons dos instrumentos, uma voz que dizia em perfeito português de Portugal: “E se eu dissesse que Deus era o Amor”.
Acrescento apenas que era comum Hilda ler poemas em português de Portugal, como fazia, por exemplo, tremendamente bem, com os poemas de “Cantares do sem nome e de Partidas”. Dizia tê-los “recebido” prontos, com sotaque luso, e assim lhe parecia que soavam melhor. De minha parte, eu registrava o fato como se estivesse associado, de alguma forma, à memória viva que Hilda mantinha com a mãe, portuguesa de nascimento.
Mas tornando ao caso: talvez porque me sentisse conhecedor de Lennon, achei que devia investigar o caso da voz portuguesa na música dele: -- Que disco é esse, Hilda? Você lembra ao menos o título da música? – lhe perguntei. Ela se recordava apenas de que chegara a ligar para o DJ da rádio de Campinas pedindo-lhe para tocá-la novamente e que ele lhe explicara que se tratava de um disco que John Lennon fizera em parceria com outro cantor, cujo nome Hilda não se lembrava. Mas acudiu-lhe um pormenor: o locutor lhe dissera que a faixa estava no lado B do LP.
Não era muita coisa, mas eu não conseguia me lembrar de nenhum álbum inteiro que Lennon houvesse compartilhado com outro cantor, a não ser um, que eu tinha em minha coleção: “Pussy Cats”, de Harry Nilsson. O disco, de 1974, chegou a sair no Brasil em 1981 – época na qual, imagino, deve ter se passado a história. E, de fato, a julgar pela capa, era até difícil saber de quem era o disco, pois Lennon aparecia nela com tanto destaque quanto Nilsson, além de ser creditado como produtor e arranjador da maioria das faixas.
Tão logo deixei Hilda, fui direto para casa e me pus a ouvir o lado B de “Pussy Cats”, com os ouvidos colados no aparelho de som. Não precisei ir longe para levar um susto: já ao fim da primeira faixa do lado B, ouvi uma voz por trás do backing vocal sussurrar qualquer coisa que parecia “Se eu dissesse...”, com sotaque português. Não entendia bem o resto, mas aquele início soava espantosamente português.
Tratava-se do cover de “Save the last dance for me”, um velho R&B de autoria da dupla de compositores Doc Pomus e Mat Shuman, que fizera muito sucesso nas vozes do The Drifters. Manipulando o equalizador, fui tentando separar o som instrumental dessa voz ao fundo, que finalmente se revelou bem clara.
Desgraçadamente, não havia português algum, mas sim as mesmas palavras que davam título à canção, escandidas de um modo particular. “Save the last dance for me” soava foneticamente qualquer coisa como “Sei/di/lés/déns/fer/m´ou”, graças a um “o”, que finalizava a vocalização. A sequência guardava, portanto, algumas coincidências fonéticas com a pronúncia portuguesa de “S´eu/di/sés/deus/ér´/mor”. O que faltava para ser exatamente “E se eu dissesse que Deus era o Amor” era um nada para a fina sintonia de Hilda, acostumada a distinguir frases inteiras nos chiados exasperantes que ocupavam os intervalos do dial onde não se ouvia nenhuma estação de rádio.
No dia seguinte, tomado menos pelo espírito científico do que pelo espírito de porco, fui logo lhe contar a minha descoberta, a qual, a rigor, anulava a dela. Ela ouviu tudo pacientemente, duvidou aqui e acolá, me explicou tudo de novo, como se eu não tivesse ouvido bem, e, enfim, menos desconsolada do que consolando a mim, gentilmente mudou de assunto. Meses depois, ela me contou a mesma história de antes, sem qualquer menção ao meu reparo anterior. Me senti perdoado.
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Um apêndice: Doc Pomus & Wilma Burke
Esse lampejo de memória do caso entre Hilda e Lennon se encerra aqui. Mas ele trouxe consigo, como apêndice, a lembrança da canção que durante muito tempo foi, para muita gente, um autêntico earworm, isto é, um vírus que penetra no ouvido e o faz ouvir mentalmente a canção por dias e dias. Mas não por causa da versão de Nilsson e Lennon, anódina e muito posterior à época em que muitos tinham ouvido falar da história por trás da letra confessadamente autobiográfica de “Save the last dance for me”, de autoria de Doc Pomus.
Pomus, quando menino, como tantos naquela época, tivera poliomielite e apenas conseguia andar com a ajuda de muletas. Acontece que uma namorada com a qual depois se casaria, Wilma Burke, desgraçadamente era dançarina e gostava de ir a bailes. Pomus não se recusava a acompanhá-la, mas evidentemente não podia ser seu par nas danças. Segundo o biógrafo Mick Patrick, somente já na hora de ir embora, ele se arriscava a ir ao meio do salão e simular alguns passos arrastados e constrangidos com Wilma.
Seja mesmo assim ou conversa divulgada para tirar proveito do patetismo da história, o certo é que a canção, gravada pelos Drifters, permaneceu três semanas de outubro de 1960 em primeiro lugar nas paradas americanas. Tamanho sucesso levou a que duas outras canções lhe fossem lançadas em resposta: “You´re having the last dance for me”, de Billy J. Fury, e “I´ll save the last dance for you”, de Damita Jo. Delas, Pomus e Shuman, tiveram notícia, mas não da variação hilstiana. Ou será que – a suspeita acaba de me cruzar a cabeça --, também eles, já falecidos, encontraram o endereço daquele estranho viveiro de almas cultivado por ela?
- Versão original de texto publicado na Folha de S. Paulo em 04/08/2013 acrescido de apêndice inédito
Alcir Pécora é professor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
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