10/06/2011
Michel Beard, protagonista do romance Solar, é um físico inglês de renome internacional, ganhador do
prêmio Nobel e uma celebridade do mundo científico. Acontece que ele também é humano,
demasiado humano: infiel contumaz, auto-indulgente, viciado em whisky e
qualquer tipo de comida, desonesto e absolutamente entediado com sua vida
profissional. Tendo feito sua principal descoberta – a Conflação de Beard-Einstein
– há mais de vinte anos, se interessa menos pela ciência do que pelas fofocas
do mundo acadêmico ou pelo montante de dinheiro e poder que ainda pode acumular
com sua fama.
Solar foi lançado em 2010, mas seu autor, o inglês Ian McEwan, já havia sido notícia nos jornais quando Atonement (Reparação), de 2002, considerado por muitos sua obra prima, foi adaptado para o cinema em 2007, resultando no filme Desejo e reparação. A origem de Solar foi uma viagem que McEwan fez para o Ártico em 2005, com um grupo misto de artistas e cientistas, para testemunhar ao vivo as mudanças climáticas. Essa viagem do autor é transformada num dos episódios mais engraçados da primeira parte do livro, intitulada “2000”: há, durante o jantar, conversas idealísticas e elevadas sobre como a ciência e a arte podem contribuir para um melhor entendimento do mundo, ao mesmo tempo em que, bem ao lado, na sala das botas, o caos é completo – as pessoas não conseguem cuidar e manter organizados seus equipamentos individuais usados na neve, pegam qualquer bota ou capacete que veem pela frente, perdem luvas e danificam roupas essenciais para protegê-los do frio intenso. Fica clara a intenção do autor de mostrar, de maneira cômica, o descompasso entre todo o conhecimento já acumulado pela ciência sobre as mudanças climáticas e a falta de aptidão do homem para lidar com questões que exigem mudanças drásticas de hábitos e, principalmente, abrir mão de interesses privados e particulares (leia-se econômicos) em prol do bem comum. Vide os fracassos do Protocolo de Kyoto (que expira em 2012 sem um acordo substituto) e das conferências internacionais sobre o clima em Copenhague e Cancun – além do relatório “Global Energy Outlook”, publicado pela Agência Internacional de Energia, o qual atesta que as emissões de dióxido de carbono vindas do setor energético voltaram a bater seu recorde histórico em 2010. “Todo mundo pensa em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo”. A frase creditada a Tolstoy parece ser uma boa síntese para a situação da sala das botas criada por McEwan. Pode-se dizer, então, que o romance sugere que “não é possível existir qualquer investigação intelectual ou científica que não seja ‘contaminada’ por aquilo que somos, por nossa evolução através da história ou por nossa natureza”, diz McEwan numa das inúmeras entrevistas concedidas sobre o livro e que podem ser encontradas no YouTube. Na segunda parte do livro, “2005”, Michel Beard se ilude pensando que um projeto baseado em ideias que foram roubadas de outra pessoa pode vingar. A partir daí, é possível entender que todo o enredo do livro é baseado num projeto científico que se apoia numa mentira. Na vida privada, a ideia de que se entregar a um relacionamento significa aprisionamento e falta de liberdade persegue o protagonista, o qual acredita que estar sempre em movimento, viajando, encontrando várias mulheres e tendo novos casos é o que vai salvá-lo. Mas eis que acontece exatamente o oposto: na terceira parte do livro, “2009”, ele acaba preso numa armadilha de mentiras e enganações que construiu para si próprio. Michel é um anti-herói (figura comum nos livros de McEwan) que, apesar de sua completa falta de caráter, consegue causar no leitor certa empatia – talvez devido ao seu lado B, demasiadamente humano. O narrador em terceira pessoa permite conhecer os pensamentos secretos do protagonista sobre si mesmo, e são seus erros, conflitos amorosos, medos, vícios e contradições internas – ele diz ter “um parlamento dentro do cérebro” – que, de alguma maneira, fazem com que o leitor inacreditavelmente ainda torça para que ele se dê bem no final.
Solar Ian McEwan Editora: Companhia das Letras Ano: 2010 Nº de páginas: 338
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