A cada três minutos – tempo de um intervalo comercial no horário
nobre da televisão – seis crianças morrem em todo o mundo, vítimas da malária.
Ou uma,
a cada trinta segundos, segundo estatística impessoal, que passa longe
do sofrimento dos doentes, que seguem sem vacina ou remédio eficaz para o
tratamento no dia-a-dia. Mas essa realidade é apenas a “ponta do iceberg” da
tragédia que atinge diariamente mais de
um bilhão de pessoas do planeta, infectadas pelas doenças chamadas
negligenciadas. Três mil pessoas morrem por dia e mais de um milhão por ano,
segundo a Organização Mundial da Saúde, vítimas de malária, doença de Chagas,
leishmaniose, esquistossomose, tuberculose, hanseníase, entre outras. Sem
contar os anos de vida produtivos perdidos pelos sobreviventes que moram, em sua
maioria, em países da África, Ásia e América Latina.
Complicando ainda mais esse “quebra-cabeça” que desafia
cientistas – sejam médicos, economistas ou sociólogos –, apenas 10% dos quase
US$150 bilhões gastos por ano em pesquisas na área da saúde, em todo o mundo, são
aplicados no desenvolvimento de medicamentos para doenças que atingem 90% da
população. Mesmo o Brasil sendo um dos países em desenvolvimento que mais
investem recursos em estudos de novas formas de tratamento para essas doenças
(cerca de R$70 milhões por ano), apenas 1% das medicações lançadas nos últimos
25 anos foram específicas para tratar as doenças dos mais pobres.
A primeira oficina de prioridades
em doenças negligenciadas no Brasil ocorreu em 2006, através de uma parceria
entre os Ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia e a Secretaria de Vigilância
em Saúde. Nesse ano, foram definidas as prioridades do programa em doenças
negligenciadas. Até hoje, entretanto, nenhuma molécula em estudo nos laboratórios
de química medicinal do Brasil, entrou em fase clínica de testes com seres
humanos. Para tentar interferir nessa realidade, pesquisadores brasileiros da área de química
medicinal – que reivindicam mais verbas oficiais e parcerias
público-privadas que assegurem a continuidade das pesquisas básicas
– investem na descoberta de novas moléculas
para o desenvolvimento de medicamentos eficazes e baratos contra as doenças
transmissíveis esquecidas pelos laboratórios farmacêuticos multinacionais, por
razões de mercado.
Gargalos
Tanto o INCT de Biotecnologia Estrutural e Química Medicinal
em Doenças Infecciosas do MCT/CNPq/Fapesp (INBEQMeDI), como o Centro de Referência
Mundial em Química Medicinal para Doença de Chagas da OMS, instalados no
Instituto de Física da USP, de São Carlos, mantêm equipes multidisciplinares à
procura de novas moléculas que funcionem contra doença de Chagas, malária e
esquistossomose, principalmente.
O pesquisador Rafael Guido, especialista em planejamento de
novas moléculas, do INBEQMeDI, acredita que o maior gargalo da pesquisa é
encontrar a molécula com todas as propriedades farmacêuticas, “que seja eficaz,
segura, possa ser ingerida por via oral, sem causar efeito colateral grave”. O Centro de Referência Mundial em Química
Medicinal para Doença de Chagas da OMS, coordenado pelo professor Adriano
Andricopulo, recebe moléculas da OMS que são inibidoras do parasito de Chagas,
que precisam ser otimizadas. Segundo Rafael Guido, o grande diferencial desse
laboratório, que ganhou uma disputa com concorrentes do mundo todo junto à OMS,
“foi o comprometimento e a qualidade com a pesquisa que estava realizando”.
Para ele, é importante que os países do Terceiro Mundo criem políticas públicas
para produzir os novos medicamentos para doenças negligenciadas, enquanto as
grandes indústrias farmacêuticas não atendem às populações pobres. “As indústrias
começam a perceber que investir nas doenças negligenciadas é atrativo não do
ponto de vista financeiro, mas social e, como parte do marketing, faz bem para
a imagem da indústria”.
Outro centro de pesquisas de São Carlos em doenças
negligenciadas é o do Grupo de Química Medicinal do Instituto de Química da
USP. O professor Carlos Montanari, coordenador da equipe, está empenhado em
submeter substâncias que atacam os tripanossomatídeos (protozoários que causam
a doença de Chagas) a ensaios pré-clínicos. O custo, nessa fase, segundo ele,
gira em torno de um milhão de dólares e há necessidade de participação da indústria
farmacêutica. Lembra que cada projeto pluridisciplinar exige pelo menos US$10
milhões para entregar de duas a três diferentes classes de substâncias químicas
(ou biológicas) para as fases clínicas.
O professor aponta a falta de conexão entre os grupos que
trabalham no país na mesma área como mais um problema. “Cada grupo produz
resultados em determinadas áreas e não inclui pesquisas fundamentais de outros
grupos para avançar o conhecimento, principalmente na busca de novas moléculas
pequenas com propriedades bem qualificadas no espaço químico-biológico”.
Montanari considera os grupos de pesquisa como grandes ilhas
de elevada capacidade técnico-científica, “sem capacidade de agregar,
principalmente quando inovação é fundamental. E, inovação, tem que ocorrer na
academia”.
Para o químico Roberto Santana,
professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da USP, um
dos motivos para o número elevado de óbitos dos portadores das moléstias
negligenciadas, “é a falta de ferramentas adequadas para o diagnóstico e
tratamento dessas doenças”. Em trabalho conjunto
com o professor João Santana, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da
USP, e o químico Douglas Wagner Franco, do Grupo de Química Inorgânica e Analítica
da USP de São Carlos, Roberto Santana desenvolveu complexos à base de rutênio e
óxido nítrico, contra a doença de Chagas, eliminando parasitas com baixa
toxicidade para o organismo. “A química inorgânica tem contribuído para o
desenvolvimento desses novos compostos e é uma ferramenta portentosa na
modificação estrutural, na disponibilização de sítios específicos para o
mecanismo de interação molécula-parasita e na própria alteração do processo
bioquímico do parasita”.
Impasse público-privado
As indústrias farmacêuticas faturaram, em 2010, em torno de
US$850 bilhões em todo o mundo e investiram 10% em pesquisa de desenvolvimento
e inovação, segundo declaração recente do professor Eliezer Barreiro, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao analisar os desafios e as
perspectivas da química medicinal. Para ele, existe uma crise de criatividade
nas empresas farmacêuticas, que passaram a se interessar pelas moléculas
desenvolvidas nas universidades, ”que podem ser capazes de inovar mais que
equipados laboratórios industriais.”
O professor José da Rocha Carvalheiro, da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto, da USP, e pesquisador no Instituto de Saúde,
dirigiu durante quase seis anos na Fiocruz o “Projeto Inovação em Saúde”. Como
membro do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia em Inovação em Doenças Negligenciadas
(INCT-IDN), da Fiocruz, acredita que o Brasil tem melhorado na área de
pesquisas, inclusive fazendo parcerias. O CDTS, por exemplo, tem parceria com
importante laboratório de biotecnologia dos Estados Unidos para desenvolver remédios
contra a doença de Chagas. A parceria é de igual para igual, “pois tanto eles vêm
aqui ver o que fazemos na intimidade do laboratório, como os nossos são
recebidos lá e não são barrados na porta. O que ainda é raro”.
O conceito das doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica,
compartilhado pelas instituições Médicos Sem Fronteira, DNDi e OMS,
dividiu o mundo entre os “have” e os “have
not”. Em meio a um embate ideológico, segundo Carvalheiro, se discute o direito
de patente ou não quando se trata de um bem público. Os Médicos Sem Fronteira
sugerem separar o custo da pesquisa e desenvolvimento do preço da medicação,
que inclui o que a “big-pharma” gasta em marketing. Já o Health Impact Fund
propõe que as grandes indústrias do setor desenvolvam remédios para doenças da
população pobre e, se provar que reduz a incidência da doença, a indústria
teria acesso a um fundo para compensar a venda do medicamento a preço de custo.
Outra proposta, para resolver o impasse, é semelhante aos créditos de carbono:
cada vez que a “big-pharma” investe para desenvolver um produto novo e que tem
mercado, seria obrigada a dar uma parcela aos pesquisadores de doenças
negligenciadas. Carvalheiro lembrou ainda da proposta brasileira, “uma espécie
de CPMF da remessa de lucros”. A indústria farmacêutica estrangeira instalada
no país, que remete lucros, pagaria um pedágio da remessa que seria aplicado em
laboratórios de universidades, instituições de pesquisa ou até laboratórios privados nacionais,
que trabalham no desenvolvimento de remédios de interesse dos “have not”.
Chagásicos criam federação internacional
Portadores da doença de Chagas da
América Latina decidiram se unir para garantir direitos, como o acesso mais fácil
ao diagnóstico e desenvolvimento de medicamentos mais eficientes. A Federação Internacional das Pessoas com a
Doença de Chagas, criada no ano passado em Olinda, alerta governos e comunidade
para o fato das duas únicas medicações existentes terem sido desenvolvidas há
mais de 40 anos. A doença de Chagas provoca 4 mil mortes por ano no Brasil.
Existem até hoje, em todo o país, entre 4 a 6 milhões de brasileiros com a doença.
Já na América do Sul, a estimativa oscila entre 11 a 12 milhões de pessoas. Na
região de Campinas (SP) são quase 4 mil portadores registrados no serviço de
atendimento da doença do Hospital de Clínicas da Unicamp, considerado o único
serviço confiável para tratar e acompanhar os doentes na região.
O presidente da Associação dos
Chagásicos de Campinas e Região, Osvaldo Rodrigues da Silva, ouve queixas
constantes da falta de estrutura nas unidades básicas de saúde de Campinas, uma
das mais desenvolvidas do país. A rede de saúde nem sempre dispõe de medicação
e não cumpre os protocolos de atendimento consolidados para a doença. Aos 58
anos de idade, Osvaldo da Silva não esconde a angústia de ter perdido os pais,
sogros e irmãos com Chagas. Ele também, como toda a família, foi contaminado
pelo “barbeiro” transmissor do infeccioso Tripanozoma cruzi, na zona
rural da pequena Indiaporã , divisa do estado de São Paulo com Minas Gerais e
Mato Grosso. Só que, até hoje, o seu organismo não manifestou a doença. Mesmo
assim, a ansiedade é permanente: ele não pode deixar de monitorar a doença,
porque a ciência ainda não sabe quais pacientes assintomáticos poderão
manifestar complicações cardíacas. Os únicos remédios usados para o tratamento
da doença de Chagas em todo o mundo (nifurtimox e benzonidazol) além de terem
sido produzidos quatro décadas atrás, tem baixa eficácia, provocam efeitos colaterais graves, como hiporexia
(diminuição do apetite), perda de peso, náuseas, vômitos, alergia cutânea e
neuropatia periférica.
Ana Maria de Arruda Camargo,
assistente social do Hospital de Clínicas da Unicamp e integrante do conselho
científico da Associação dos Chagásicos de Campinas, diz que os pacientes
aguardam o surgimento de novas medicações. Ela lembra que com a globalização da
doença, levada por migrantes latinos para os Estados Unidos. Canadá e Japão, os
países mais ricos começam a investir no desenvolvimento de novos medicamentos.
“Os pacientes da fase crônica, por
causa do controle dos sintomas, chegam a envelhecer e precisam não só de remédios
eficazes, mas também de fácil acesso ao diagnóstico, acompanhamento constante,
como em todas as doenças crônicas. Além disso, controle do pré-natal da mãe, e dos bancos
de sangue”, concluiu.
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