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Reportagem
A química e as doenças negligenciadas: busca por remédios mais eficazes e seguros
Por Rubens Zaidan
10/07/2011

A cada três minutos – tempo de um intervalo comercial no horário nobre da televisão – seis crianças morrem em todo o mundo, vítimas da malária. Ou uma, a cada trinta segundos, segundo estatística impessoal, que passa longe do sofrimento dos doentes, que seguem sem vacina ou remédio eficaz para o tratamento no dia-a-dia. Mas essa realidade é apenas a “ponta do iceberg” da tragédia que atinge diariamente mais de um bilhão de pessoas do planeta, infectadas pelas doenças chamadas negligenciadas. Três mil pessoas morrem por dia e mais de um milhão por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde, vítimas de malária, doença de Chagas, leishmaniose, esquistossomose, tuberculose, hanseníase, entre outras. Sem contar os anos de vida produtivos perdidos pelos sobreviventes que moram, em sua maioria, em países da África, Ásia e América Latina.

Complicando ainda mais esse “quebra-cabeça” que desafia cientistas – sejam médicos, economistas ou sociólogos –, apenas 10% dos quase US$150 bilhões gastos por ano em pesquisas na área da saúde, em todo o mundo, são aplicados no desenvolvimento de medicamentos para doenças que atingem 90% da população. Mesmo o Brasil sendo um dos países em desenvolvimento que mais investem recursos em estudos de novas formas de tratamento para essas doenças (cerca de R$70 milhões por ano), apenas 1% das medicações lançadas nos últimos 25 anos foram específicas para tratar as doenças dos mais pobres.

A primeira oficina de prioridades em doenças negligenciadas no Brasil ocorreu em 2006, através de uma parceria entre os Ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia e a Secretaria de Vigilância em Saúde. Nesse ano, foram definidas as prioridades do programa em doenças negligenciadas. Até hoje, entretanto, nenhuma molécula em estudo nos laboratórios de química medicinal do Brasil, entrou em fase clínica de testes com seres humanos. Para tentar interferir nessa realidade, pesquisadores brasileiros da área de química medicinal – que reivindicam mais verbas oficiais e parcerias público-privadas que assegurem a continuidade das pesquisas básicas – investem na descoberta de novas moléculas para o desenvolvimento de medicamentos eficazes e baratos contra as doenças transmissíveis esquecidas pelos laboratórios farmacêuticos multinacionais, por razões de mercado.

Gargalos

Tanto o INCT de Biotecnologia Estrutural e Química Medicinal em Doenças Infecciosas do MCT/CNPq/Fapesp (INBEQMeDI), como o Centro de Referência Mundial em Química Medicinal para Doença de Chagas da OMS, instalados no Instituto de Física da USP, de São Carlos, mantêm equipes multidisciplinares à procura de novas moléculas que funcionem contra doença de Chagas, malária e esquistossomose, principalmente.

O pesquisador Rafael Guido, especialista em planejamento de novas moléculas, do INBEQMeDI, acredita que o maior gargalo da pesquisa é encontrar a molécula com todas as propriedades farmacêuticas, “que seja eficaz, segura, possa ser ingerida por via oral, sem causar efeito colateral grave”. O Centro de Referência Mundial em Química Medicinal para Doença de Chagas da OMS, coordenado pelo professor Adriano Andricopulo, recebe moléculas da OMS que são inibidoras do parasito de Chagas, que precisam ser otimizadas. Segundo Rafael Guido, o grande diferencial desse laboratório, que ganhou uma disputa com concorrentes do mundo todo junto à OMS, “foi o comprometimento e a qualidade com a pesquisa que estava realizando”. Para ele, é importante que os países do Terceiro Mundo criem políticas públicas para produzir os novos medicamentos para doenças negligenciadas, enquanto as grandes indústrias farmacêuticas não atendem às populações pobres. “As indústrias começam a perceber que investir nas doenças negligenciadas é atrativo não do ponto de vista financeiro, mas social e, como parte do marketing, faz bem para a imagem da indústria”.

Outro centro de pesquisas de São Carlos em doenças negligenciadas é o do Grupo de Química Medicinal do Instituto de Química da USP. O professor Carlos Montanari, coordenador da equipe, está empenhado em submeter substâncias que atacam os tripanossomatídeos (protozoários que causam a doença de Chagas) a ensaios pré-clínicos. O custo, nessa fase, segundo ele, gira em torno de um milhão de dólares e há necessidade de participação da indústria farmacêutica. Lembra que cada projeto pluridisciplinar exige pelo menos US$10 milhões para entregar de duas a três diferentes classes de substâncias químicas (ou biológicas) para as fases clínicas.

O professor aponta a falta de conexão entre os grupos que trabalham no país na mesma área como mais um problema. “Cada grupo produz resultados em determinadas áreas e não inclui pesquisas fundamentais de outros grupos para avançar o conhecimento, principalmente na busca de novas moléculas pequenas com propriedades bem qualificadas no espaço químico-biológico”. Montanari considera os grupos de pesquisa como grandes ilhas de elevada capacidade técnico-científica, “sem capacidade de agregar, principalmente quando inovação é fundamental. E, inovação, tem que ocorrer na academia”.

Para o químico Roberto Santana, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da USP, um dos motivos para o número elevado de óbitos dos portadores das moléstias negligenciadas, “é a falta de ferramentas adequadas para o diagnóstico e tratamento dessas doenças”. Em trabalho conjunto com o professor João Santana, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, e o químico Douglas Wagner Franco, do Grupo de Química Inorgânica e Analítica da USP de São Carlos, Roberto Santana desenvolveu complexos à base de rutênio e óxido nítrico, contra a doença de Chagas, eliminando parasitas com baixa toxicidade para o organismo. “A química inorgânica tem contribuído para o desenvolvimento desses novos compostos e é uma ferramenta portentosa na modificação estrutural, na disponibilização de sítios específicos para o mecanismo de interação molécula-parasita e na própria alteração do processo bioquímico do parasita”.

Impasse público-privado

As indústrias farmacêuticas faturaram, em 2010, em torno de US$850 bilhões em todo o mundo e investiram 10% em pesquisa de desenvolvimento e inovação, segundo declaração recente do professor Eliezer Barreiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao analisar os desafios e as perspectivas da química medicinal. Para ele, existe uma crise de criatividade nas empresas farmacêuticas, que passaram a se interessar pelas moléculas desenvolvidas nas universidades, ”que podem ser capazes de inovar mais que equipados laboratórios industriais.”

O professor José da Rocha Carvalheiro, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, e pesquisador no Instituto de Saúde, dirigiu durante quase seis anos na Fiocruz o “Projeto Inovação em Saúde”. Como membro do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Inovação em Doenças Negligenciadas (INCT-IDN), da Fiocruz, acredita que o Brasil tem melhorado na área de pesquisas, inclusive fazendo parcerias. O CDTS, por exemplo, tem parceria com importante laboratório de biotecnologia dos Estados Unidos para desenvolver remédios contra a doença de Chagas. A parceria é de igual para igual, “pois tanto eles vêm aqui ver o que fazemos na intimidade do laboratório, como os nossos são recebidos lá e não são barrados na porta. O que ainda é raro”.

O conceito das doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica, compartilhado pelas instituições Médicos Sem Fronteira, DNDi e OMS, dividiu o mundo entre os “have” e os “have not”. Em meio a um embate ideológico, segundo Carvalheiro, se discute o direito de patente ou não quando se trata de um bem público. Os Médicos Sem Fronteira sugerem separar o custo da pesquisa e desenvolvimento do preço da medicação, que inclui o que a “big-pharma” gasta em marketing. Já o Health Impact Fund propõe que as grandes indústrias do setor desenvolvam remédios para doenças da população pobre e, se provar que reduz a incidência da doença, a indústria teria acesso a um fundo para compensar a venda do medicamento a preço de custo. Outra proposta, para resolver o impasse, é semelhante aos créditos de carbono: cada vez que a “big-pharma” investe para desenvolver um produto novo e que tem mercado, seria obrigada a dar uma parcela aos pesquisadores de doenças negligenciadas. Carvalheiro lembrou ainda da proposta brasileira, “uma espécie de CPMF da remessa de lucros”. A indústria farmacêutica estrangeira instalada no país, que remete lucros, pagaria um pedágio da remessa que seria aplicado em laboratórios de universidades, instituições de pesquisa ou até laboratórios privados nacionais, que trabalham no desenvolvimento de remédios de interesse dos “have not”.

Chagásicos criam federação internacional

Portadores da doença de Chagas da América Latina decidiram se unir para garantir direitos, como o acesso mais fácil ao diagnóstico e desenvolvimento de medicamentos mais eficientes. A Federação Internacional das Pessoas com a Doença de Chagas, criada no ano passado em Olinda, alerta governos e comunidade para o fato das duas únicas medicações existentes terem sido desenvolvidas há mais de 40 anos. A doença de Chagas provoca 4 mil mortes por ano no Brasil. Existem até hoje, em todo o país, entre 4 a 6 milhões de brasileiros com a doença. Já na América do Sul, a estimativa oscila entre 11 a 12 milhões de pessoas. Na região de Campinas (SP) são quase 4 mil portadores registrados no serviço de atendimento da doença do Hospital de Clínicas da Unicamp, considerado o único serviço confiável para tratar e acompanhar os doentes na região.

O presidente da Associação dos Chagásicos de Campinas e Região, Osvaldo Rodrigues da Silva, ouve queixas constantes da falta de estrutura nas unidades básicas de saúde de Campinas, uma das mais desenvolvidas do país. A rede de saúde nem sempre dispõe de medicação e não cumpre os protocolos de atendimento consolidados para a doença. Aos 58 anos de idade, Osvaldo da Silva não esconde a angústia de ter perdido os pais, sogros e irmãos com Chagas. Ele também, como toda a família, foi contaminado pelo “barbeiro” transmissor do infeccioso Tripanozoma cruzi, na zona rural da pequena Indiaporã , divisa do estado de São Paulo com Minas Gerais e Mato Grosso. Só que, até hoje, o seu organismo não manifestou a doença. Mesmo assim, a ansiedade é permanente: ele não pode deixar de monitorar a doença, porque a ciência ainda não sabe quais pacientes assintomáticos poderão manifestar complicações cardíacas. Os únicos remédios usados para o tratamento da doença de Chagas em todo o mundo (nifurtimox e benzonidazol) além de terem sido produzidos quatro décadas atrás, tem baixa eficácia, provocam efeitos colaterais graves, como hiporexia (diminuição do apetite), perda de peso, náuseas, vômitos, alergia cutânea e neuropatia periférica.

Ana Maria de Arruda Camargo, assistente social do Hospital de Clínicas da Unicamp e integrante do conselho científico da Associação dos Chagásicos de Campinas, diz que os pacientes aguardam o surgimento de novas medicações. Ela lembra que com a globalização da doença, levada por migrantes latinos para os Estados Unidos. Canadá e Japão, os países mais ricos começam a investir no desenvolvimento de novos medicamentos.

“Os pacientes da fase crônica, por causa do controle dos sintomas, chegam a envelhecer e precisam não só de remédios eficazes, mas também de fácil acesso ao diagnóstico, acompanhamento constante, como em todas as doenças crônicas. Além disso, controle do pré-natal da mãe, e dos bancos de sangue”, concluiu.