“Radiodifusão sem autorização é crime federal” e “É livre a expressão
da atividade de comunicação, independentemente de censura ou licença”,
são duas frases que mostram as contradições, confusões e falhas do
princípio legal de comunicação no Brasil. A primeira pode ser
encontrada na definição de rádios comunitárias do Ministério das
Comunicações (MC) e, a segunda, pode ser lida na Constituição (art. 5°
- VIII). A partir desse paradoxo, como explicar as transmissões, por um
número aproximado de 5 mil rádios que funcionam sem concessão, no
Brasil? Afinal, a comunicação em nosso território é livre ou é crime?
No
centro desse debate estão as rádios livres e as rádios comunitárias. A
definição de cada uma é bastante distinta. A primeira, é entendida
pelas autoridades como uma atividade subversiva. Já a outra, é legal,
desde que não contrarie a Lei
9612/98, que estabelece certas regras. Para o MC, uma rádio comunitária
“é um tipo especial de emissora ... deve divulgar a cultura, o
convívio social e eventos locais; noticiar os acontecimentos
comunitários e de utilidade pública; promover atividades educacionais e
outras para a melhoria das condições de vida da população ... não
pode ter fins lucrativos nem vínculos de qualquer tipo, tais como:
partidos políticos, instituições religiosas”. Ao mesmo tempo, não é
possível encontrar uma definição para as rádios livres, tanto nosite do MC, como no site da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), pois essas instituições não reconhecem a legitimidade delas.
Na prática, muitas rádios comunitárias funcionam como pequenas rádios
comerciais, mantêm o mesmo modelo de gestão, com diretores, locutores e
editoriais, e muitas cobram o “jabá” para tocarem músicos locais. As
livres se organizam em coletivos horizontais, isto é, rompem a barreira
entre locutor e ouvinte e funcionam sem fins lucrativos.
Raquel Paiva, coordenadora do Laboratório de Estudos em Comunicação
Comunitária (LECC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
afirma que a comunicação, cada vez mais, será livre, independente de
governos, partidos e grupos empresariais. “Com o advento de novas e
novíssimas tecnologias, vai ficar muito mais difícil a adoção de
políticas e medidas coercitivas. Este é um avanço na nossa era e,
finalmente, conseguiremos superar o obscurantismo da Idade Média que
ainda grassa em países subdesenvolvidos como o Brasil”, critica Paiva.
Para ela, não se percebe, no atual governo, ações efetivas em prol da
democratização das informações. Pelo contrário, as ações adotadas
aumentaram a repressão contra as rádios ilegais e comunitárias, que
aguardam suas concessões. “As ações, apenas reforçam as grandes
empresas já existentes, as famílias que lotearam o sistema de
comunicação nacional e os políticos partidários”, afirma Paiva.
O surgimento das ilegais
A
idéia de rádios piratas, pode confundir-se com a de rádios livres. No
entanto, as piratas, apesar de também operarem sem autorização, são
rádios com algum tipo de apoio comercial ou de associação. É
interessante notar que o governo utiliza o termo pirata para se referir
também às livres.
A
história das rádios piratas é anterior. Segundo Magda Cunha, professora
de radiojornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUC-RS), rádios piratas e rádios livres formam duas frentes de
corrosão do monopólio estatal das telecomunicações, vigente na Europa,
até meados do século XX. Ela explica que nas rádios livres, as faixas
de onda são consideradas propriedade coletiva e cabe à coletividade
usufruir delas. “Nascem no bojo de movimentos políticos contestatórios
e estimulam as pessoas a passarem da condição passiva de ouvintes para
a de agentes ativos de seus discursos e a colocar no ar as suas idéias,
os seus prazeres, as suas músicas preferidas, sem precisar de
autorização para isso”, completa Cunha.
Sayonara
Leal, doutoranda do Departamento de Sociologia da Universidade de
Brasília (UnB), conta que o conceito de rádios livres surge na Europa,
pós II Guerra, para designar as rádios não oficiais, ou seja, não
autorizadas pelo Estado, que atuavam em prol de uma comunicação livre,
em grande medida alimentadas pelo sentido da contra-informação. Depois,
nos anos 1970 e 1980, estiveram engajadas em projetos políticos e
culturais, em geral de esquerda, em defesa de temas ecológicos,
processos migratórios, socialismo, democratização da informação, enfim,
uma outra ordem de informação e comunicação. “No Brasil, algumas rádios
locais se autodenominam livres para tentar preservar esse espírito de
total liberdade e, até certo ponto, eu diria de contra-ordem e
regulação exercida pelo Estado”, explica Leal. Ela continua: “penso que
independente do termo para nomear essas mídias, elas são configurações
do direito à liberdade de expressão inscrito em nossa Constituição”,
defende.
Integrantes da Rádio Muda, a rádio livre que funciona na Unicamp,
criticam o sistema atual de concessões que, segundo afirmam, privilegia
o mercado através de uma ideologia do consumo. “A opção pela
transmissão sem autorização é uma forma de questionar a política
adotada pelo governo”, dizem. De acordo com eles, que preferem o termo
“coletivo”, ao invés de identificações individuais, o regime de uso do espectro
(de ondas de radiodifusão) favorece aos detentores do poder político e
econômico, sob a argumentação técnica de finitude do bem público por
onde trafegam as ondas. “O Estado regula os pontos emissores (e acaba
regulado por estes) onde se identifica pelo menos duas
inconstitucionalidades: 1) não há complementaridade entre os serviços
públicos, educativos e comerciais nos meios de comunicação,
prevalecendo o comércio e; 2) a comunicação social não poderia ser
objeto de monopólio ou oligopólio quando, na verdade, uma única
emissora de televisão é responsável por cerca de 84% da audiência”.
Morosidade estatal e interesses privados
“Tanto faz ser religiosa, livre, comunitária, política... Se não tiver
autorização da Anatel, há o risco de interferência e isso pode ser
perigoso. ... O direito de trabalhar com comunicação precisa ser
feito dentro da lei”, afirmou em entrevista à Carta Maior
o delegado Marcelo Previtalli, responsável pela operação Sintonia, da
Polícia Federal. No início de agosto, 17 emissoras de rádio que
operavam sem autorização foram fechadas em São Paulo por essa operação.
Para
Cicília Peruzzo, professora de comunicação social da Universidade
Metodista de São Paulo (Umesp), a Anatel e a Polícia Federal têm
fechado muitas emissoras. “Algumas delas já pediram autorização há
muito tempo – o que indica que não querem ser ilegais – algumas há dois
anos, outras há sete anos ou mais, mas pela morosidade do Ministério
das Comunicações não têm conseguido repostas aos pedidos”, informa
Peruzzo.
Segundo o artigo
“A democratização da comunicação passa pelo rádio”, de Álvaro
Americano, baseado em dados da Associação Brasileira de Rádio e
Televisão (Abert), em 1996 as rádios livres eram responsáveis por cerca
de 40% da audiência radiofônica do país, em especial no interior. O
artigo traz ainda dados da Associação Brasileira de Radiodifusão
Comunitária (Abraço), que aponta, atualmente, para a existência de
cerca de 5 mil rádios sem concessão funcionando no Brasil.
Álvaro
Americano, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), acredita que a razão para a repressão é
simples e tem a questão econômica como principal motivadora. “Algumas
dessas rádios, que não contam com a permissão do Estado, têm conseguido
índices surpreendentes de audiência e acabam também conquistando
pequenas fatias do mercado publicitário”, informa. Geralmente, as
denúncias de transmissão ilegal partem das rádios comerciais.
As
rádios ilegais encontram muitas barreiras para obter a regularização.
“A verdade é que sempre há muitos interesses ligados à concessão para o
funcionamento de rádios e TVs. Infelizmente continuamos com a notícia
que esses meios continuam servindo de barganha política”, critica
Americano.
Raquel
Paiva, da UFRJ, destaca que não existe diálogo entre governo e
representantes das rádios em situação ilegal. “Temos notícias de que
muitos dos responsáveis pelas emissoras saem algemados. Algumas das
críticas que pairam sobre as emissoras ilegais são de que poderiam ter
ligações com o crime organizado e com o tráfico de armas e drogas”,
explica. Segundo informações da Abraço, as ações da Anatel e da Polícia
Federal têm fechado indiscriminadamente emissoras, mesmo aquelas que
têm processo de pedido de outorga em andamento no MC há anos.
“Infelizmente”, afirma Americano, “há pouco diálogo por parte do
governo federal e uma repressão contínua contra as rádios livres e
comunitárias”.
A escolha do padrão digital e a existência das comunitárias
Uma
questão importante na discussão sobre a mudança para o padrão digital
no sistema de radiodifusão do Brasil é a situação das emissoras
comunitárias e, em geral, das pequenas. Como o padrão ainda não foi
definido, não se pode afirmar, com certeza, as conseqüências. Mas, se
as coisas continuarem caminhando como estão, dificilmente as rádios
comunitárias – e as não comerciais, poderão se integrar à nova ordem
tecnológica.
A implementação do rádio digital no Brasil está em fase de testes. Dois
padrões podem ser escolhidos de acordo com os resultados: o
norte-americanoIn-Band On-Chanel (IBOC) e o europeu Digital Radio Mondiale
(DRM). A Anatel, responsável pela autorização dos testes, afirma que os
sistemas não concorrem entre si, apenas definirão qual modelo se aplica
ao tipo de transmissão utilizada (ondas curtas ou ondas médias).
Magda
Cunha, da PUC-RS, destaca que a escolha está vinculada ao histórico de
exploração do sistema de radiodifusão no Brasil. Segundo afirma, não é
preciso fazer novas licitações ou outorgas, pois não há modificações no
espectro. “O modelo IBOC mantém o status atual das emissoras, além de
preservar a base de ouvintes associada àquele dial”, afirma.
Álvaro
Americano explica que é preciso ficar atento às oportunidades que
surgirão com as novas tecnologias. Apesar de todas as dificuldades
encontradas pelo rádio para sobreviver, é através dele que acontece a
grande frente de batalha pela democratização dos meios de comunicação
no Brasil. Para ele, é através das rádios livres e comunitárias, e não
das comerciais, que uma pessoa ou uma comunidade pode utilizar um
veículo de comunicação para se expressar livremente.
O
DRM é um padrão aberto, desenvolvido por um consórcio constituído por
90 membros (associações, universidades, fabricantes, operadoras) de 30
países. Os testes referentes a esse padrão pretendem avaliar a área de
abrangência, a qualidade do áudio e a robustez do sinal digital em
ondas curtas em relação aos ruídos. Já o IBOC é desenvolvido pelaiBiquity Digital Corporation
e utiliza a mesma freqüência do sinal analógico para as transmissões
digitais. Existem 15 emissoras testando o IBOC. A Faculdade de
Tecnologia da Universidade de Brasília (UnB) e a Radiobrás estão
testando o DRM.
Para
a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) o padrão preferido
é o IBOC. Segundo afirma Daniel Pimentel Slaviero, presidente da Abert
e diretor do Grupo Paranaense de Comunicação (GPP), afiliado ao SBT, o
padrão norte-americano é o preferido das emissoras porque é compatível
com o analógico.
“O importante é não perder o horizonte de que no mundo em que vivemos,
fortemente influenciado pelos meios de comunicação, a democratização
desses meios é uma das condições para a verdadeira democratização da
sociedade”, finaliza Americano.
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